terça-feira, 25 de setembro de 2012

Por uma solução de esquerda da crise portuguesa

A crise do euro em Portugal foi por nós apreciada em estudo anterior (ver neste blog «A Crise do Euro»). Os media têm-se esforçado por difundir o mito de que os culpados da crise foram todos os portugueses devido ao consumismo e à «empresa Estado» (serviços públicos) como lhe chama Medina Carreira. É esta a tese que interessa aos grandes capitalistas divulgar ad nauseam. Vimos, entretanto, que o único culpado da crise é o grande capital e seus serventuários (políticos e técnicos), com especial destaque para os capitalistas ligados à banca.
Comecemos por sumariar, completando, as causas da crise que apontámos no citado estudo, causas essas que justificam a nossa afirmação de que o único culpado da crise é o grande capital:
1                    Perdas avultadas dos bancos devido à especulação financeira, perdas essa directa ou indirectamente resgatadas (pagas) pelo governo
- Caso BPN: 1,8 biliões (*) de euros de dívida segundo estimativa de 2011; em Setembro de 2012 o governo ainda não sabia a parcela do empréstimo a conceder ao BPN pelo orçamento de Estado.
- Casos BCP: governo Passos Coelho anunciou em Junho um resgate (eufemisticamente denominado recapitalização) com dinheiros europeus: 1,65 biliões de euros para a CGD, 3,5 biliões de euros para o BCP e 1,5 biliões de euros para o BPI. Total: 6,65 biliões de euros.
Entretanto, a banca continua alegre e impunemente a especular. Em Dezembro de 2011 o índice de alavancagem da banca portuguesa era superior a valores homólogos de todos os anos anteriores: 19,8. Isto é, os capitais próprios da banca representavam apenas 5,1% dos activos. O volume de transacções em derivativos representou em 2011 162% do PIB (277,5 biliões de euros).
2                    Especulação do BCE
Quando o BCE entrega resgates a Portugal está no fundo a financiar a banca para continuar impunemente no seu jogo especulativo. De facto, enquanto a banca tem praticado uma taxa de juro de 6,87% a 5,5%, entre 2008 e 2010, o BCE pratica uma taxa de juro de 1% na compra de títulos de dívida aos bancos. No período de 2008 a 2010 o total de lucros da banca obtidos por este processo foi de 3,8 biliões de euros. Atenção: estes 3,8 biliões de euros são pagos pelos contribuintes dado que têm que pagar as medidas de austeridade por forma ao BCE emprestar aos bancos.
3                    Destruição do Sector Produtivo
De 1997 a 2010 o Valor Acrescentado Bruto do sector produtivo desceu 9%, ou seja 3,6 biliões de euros. Embora se possa assacar parte desta descida a causas exógenas (por exemplo, crise nos países para os quais exportamos), grande parte deste montante deve-se também às fugas de capitais do sector produtivo, como referimos no ponto seguinte.

4                    Entrega (privatizações) de empresas produtivas ao capital estrangeiro

As privatizações de mão beijada (praticamente os serventuários políticos pagam com fundos públicos para que o capital estrangeiro fique com as empresas) têm sido um escândalo sistemático em Portugal. Há capital português que lucra com estes conluios. A acrescentar a isso existem as falências fraudulentas e a transferência de capitais para o sector financeiro e para offshores. Resultado: as transferências de fundos para pagar juros e lucros no estrangeiro foram em 2009 de 16 biliões de euros; no período de 2004 a 2009 o total de transferências ascende a 95,47 biliões de euros ([1]).

5                    Parcerias público-privadas (PPP)

Em 2008 estimava-se um peso das PPPs na despesa pública da ordem de 50 biliões de euros pagos escalonadamente pelos orçamentos de Estado até 2050.
6                    Evasão e fraude fiscal (**)
- Em 2009 e 2010 a banca portuguesa não pagou 491 milhões de euros de impostos (correspondendo a cerca de 12% dos lucros).
- O total de evasão no IVA entre 2008 e 2010 é estimado em 6,1 biliões de euros ([2]). A perda de receita fiscal devido a benefícios fiscais atingia 2,5 biliões de euros em 2010 e 15,6 biliões de euros período 2005-2010.
A fraude e evasão fiscal do grande capital disparou em Portugal com a crise. Ainda no passado 18 de Maio era noticiado o desmantelamento, pelo DCIAP, de uma rede de evasão fiscal que gerou uma fraude de um bilião de euros Em causa uma empresa suíça cujos três sócios foram detidos por serem suspeitos de ajudar portugueses em práticas de evasão fiscal e branqueamento de capitais (entre eles Duarte Lima (***)).

Se somarmos os montantes acima indicados, obtemos:

                        Montantes em biliões de euros
Rubrica 1              8,45 (1,8+6,65)
Rubrica 2              3,8
Rubrica 4            95,47
Rubrica 5            50
Rubrica 6            22,19
TOTAL           179,91

Ora, 179,91 biliões de euros correspondem a 104,2% do PIB em 2010 (172,67 biliões de euros). Isto é, apesar de toda a imprecisão dos números acima (mas que pecam por defeito, porque não contabilizámos despesismo inútil, perdas na economia paralela, fraude fiscal que se sabe ser elevada embora ninguém saiba dizer quanto, perdas devidas à corrupção galopante, etc.). Por outro lado, a dívida pública em 2010 ascendia segundo os dados oficiais a 93,3% do PIB. Conclusão inescapável:
Se desde 2004 o grande capital não andasse a defraudar a economia portuguesa Portugal não teria agora dívida pública.

Tendo em conta o panorama que expusemos acima quais as medidas de carácter económico que uma política consequente de esquerda ([3]) deveria optar?
Parece-nos óbvio que deveriam ser as seguintes:

1                    Nacionalização da banca
Acabar com o jogo de casino dos banqueiros e colocar a banca ao serviço do povo trabalhador.
Alterar totalmente a direcção, política e objectivos do Banco de Portugal.
Instituir comissões de trabalhadores de acompanhamento da gestão bancária.
Só permitir bancos estrangeiros que aceitem regras muito estritas de supervisão pelo BdP.
Quaisquer outras medidas que fiquem aquém das anteriores, medidas de simples regulamentação (advogadas por certos sectores, como por exemplo pelo Congresso das Alternativas), serão a breve trecho inúteis, porque não transcendem em nada a lógica neoliberal que caracteriza o actual capitalismo-financeiro ([4]). Os banqueiros sempre encontrarão formas de continuar as suas especulações («jogar no casino») procurando ganhar dinheiro para eles e amigos à custa do nosso .
2                    Responsabilização directa dos actuais banqueiros pela especulação
A especulação bancária é um jogo muito especial. Se um banqueiro fosse ao casino jogar na roleta e perdesse, teria de assumir as perdas. Na banca, quando o banqueiro perde nas operações especulativas – um jogo como qualquer outro – os governos ao serviço do capital entendem que são os contribuintes que devem pagar! Mas há mais: é que os banqueiros não jogaram (não especularam) com o dinheiro deles, mas sim com o dinheiro de outros (!!!) o que noutro cenário corresponderia a crime de peculato.
Parafraseando o princípio de «utilizador pagador» tão caro à direita, deve, portanto, instituir-se o princípio «especulador pagador».
Banqueiros e seus associados na especulação devem ser julgados e os seus bens apropriados pelo Estado a fim de resgatar as dívidas dos bancos aos depositantes. Só tais resgates são legítimos; caso contrário, estão os inocentes a pagar pelos culpados.
3                    Impostos especiais sobre transacções financeiras e as grandes fortunas
Quanto às transacções financeiras, estamos de acordo com as propostas recentemente divulgadas pela CGTP-IN (novo imposto, com uma taxa de 0,25%, a incidir sobre todas as transacções de valores mobiliários, criação de uma sobretaxa média de 10% sobre os dividendos distribuídos, incidindo sobre os grandes accionistas, [5]). Parece-nos também que as grandes fortunas deveriam ter um imposto especial.
4                    Suspender todas as privatizações
5                    Auditar todas a PPPs e rever os contratos
A auditoria e revisão teriam como objectivo reverter todos os procedimentos em curso lesivos do interesse público.
6                    Rever acordos com a União Europeia
Na revisão do entendimento de resgate com a troika dever-se-ia: defender o alargamento do prazo de cumprimento; defender a transferência de fundos de resgate para o BdP (renovado) e não para bancos privados; defender a redução substancial do montante da dívida, com remissão de parte dela (detida por bancos europeus).
Caso a troika não aceite estes pontos dever-se-ia caminhar decididamente para o incumprimento (solução que os bancos da Alemanha, França e Holanda não terão interesse em aceitar). No passado já houve incumprimentos de muitos países sem qualquer tragédia. Pelo contrário; a Argentina ficou bem melhor depois do incumprimento da dívida que tinha com os EUA. Tragédia é, sim, o agravamento diário da dívida portuguesa e da vida dos trabalhadores portugueses sem qualquer perspectiva de resolução. Ainda ontem (24 de Setembro) foi noticiado que as despesas públicas têm aumentado mais do que a receita. Alguns efeitos negativos do incumprimentos teriam de ser analisados por forma a serem menorizados.
Quanto à saída do euro, que alguns advogam parece-nos ter mais desvantagens que vantagens. Para começar, observe-se duas coisas: por um lado, e no cenário de incumprimento, nenhum dos tratados da zona euro contempla a expulsão de um estado membro ou a aplicação de medidas sancionatórias no caso de desafectação unilateral; por outro lado, o problema da culpa da crise não é a moeda que se usa. Se usássemos escudos em vez de euros poderíamos estar hoje com os mesmos problemas. (Já no passado anterior ao euro o governo português recorreu ao FMI.) Saindo do euro passaríamos a um escudo desvalorizado. Na altura em que tal fosse implementado dar-se-ia uma corrida dos capitalistas aos bancos para enviarem enormes fundos em euros, fundos não desvalorizados, para fora do país. Isto é, a saída do euro implicaria obrigatoriamente a nacionalização da banca. A desvalorização do escudo implicaria que muitas dívidas de particulares aos bancos teriam também de ser desvalorizadas para que não caíssem na miséria; entretanto, um número considerável de firmas e particulares com dívidas em euros ao exterior depararia com dificuldades acrescidas. A única vantagem seria o aumento de competitividade das exportações portuguesas. Esta vantagem, contudo, poderia esbater-se no prazo de alguns anos.

Para além de medidas de carácter económico ter-se-ia de instituir medidas de carácter político e jurídico, muitas delas relacionadas com o sistema de justiça e o código penal, tendo nomeadamente em vista o combate firme à corrupção, o combate à evasão e fraude fiscal, colocando um ponto final no clima de impunidade de que têm gozado os grandes capitalistas em Portugal.

[1] Eugénio Rosa (2010) Juros e lucros transferidos para o estrangeiro levam uma parcela crescente da riqueza líquida nacional. Estudo 26.9.2010 (www.eugeniorosa.com).
[2] Eugénio Rosa (2009) Orçamento de Estado 2010. A evasão e a fraude fiscal em Portugal explicam mais de 3.000 milhões de euros do défice de 2009 – e não vai diminuir em 2010.  http://resistir.info/ e_rosa/evasao_fraude_injustica_fiscal.html.
[3] De facto, é nossa convicção (ver também o nosso estudo «A Crise do Euro») que no capitalismo não há saída efectiva da crise. A queda de rendibilidade dos sectores produtivos é inexorável. Mesmo que a lógica neoliberal seja atenuada ou até abandonada, mesmo que à custa dos sacrifícios impostos aos povos se verifique alguma recuperação temporária da rendibilidade, as características actuais do capitalismo nos países desenvolvidos são tais que, no nosso entender, poderá assistir-se a melhorias temporárias logo seguidas de novas e mais profundas crises de cada vez mais difícil e longa recuperação (distinguindo-se, neste aspecto, das crises do passado). As medidas que propomos não transcendem o quadro capitalista, mas vão no sentido de transcender o quadro neoliberal e preparar uma situação transicional de democracia avançada «a caminho do socialismo», estabelecendo uma ligação com o que julgamos ser a vontade popular de momento. O povo trabalhador é sempre o construtor definitivo da História.
[4] As medidas que aqui propomos foram também propostas por economistas de esquerda de várias nacionalidades para países como a Grécia, Irlanda e Portugal.
[5] As quatro medidas anunciadas pela CGTP-IN pecam, a nosso ver, pela excessiva suavidade. Mesmo que fossem todas cumpridas a crise continuaria.


(*) Usamos a nomenclatura anglo-saxónica e do português do Brasil: 1 bilião = 109 (mil milhões); 1 trilião = 1012
(**) No nosso estudo «A Crise do Euro» não demos a devida importância a este aspecto que é, de facto, no caso português (e também no caso grego) de grande importância. Completamos agora.
(***) Na notícia do jornal Sol é reportado que a dita empresa, Akoya Asset Management, tinha como função gerir e fazer aplicações de fortunas de clientes portugueses (empresários, advogados e alguns políticos), mas, alegadamente, agenciavam clientes em bancos suíços e os sócios da Akoya actuavam como «testas de ferro», criando empresas offshore onde seria guardado o dinheiro. Desta forma havia evasão fiscal e branqueamento de capitais.