sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Uma vitória da Ministra das Finanças?

A ministra das Finanças assegurou ontem (23/1/2014) que o défice do Orçamento de Estado (OE) em 2013 ficaria abaixo de 5,5%, mas que só em final de Março saberia dizer o valor exacto. Motivo de enorme júbilo do governo PSD-CDS que aproveitou para desancar a oposição, de não quererem ver a «realidade».
   O principal motivo avançado para o brilharete da ministra, por todos os meios de comunicação social, foi o grande aumento na cobrança do IRS: um aumento de 35,5% (!) correspondente a um total cobrado de 12.307,7 M€ (milhões de euros). Por comparação, a cobrança do IRC apenas aumentou de 18,8% (perto de metade) com um total de 5.083,8 M€. Estes valores são as melhores estimativas actuais. Por outras palavras, o brilharete da ministra foi conseguido através do acréscimo da enorme carga de austeridade sobre as famílias; menos do que sobre as empresas.
   
Mas será que os aumentos do IRS e IRC contam toda a história? Vamos ver que não.
   
   Comecemos por lembrar que, no nosso artigo sobre a situação económica do passado Novembro (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/11/austeridade-em-portugal-ponto-da.html), onde analisámos previsões de vários indicadores, referimos que a ministra das Finanças, o BdP e o FMI estimavam em 5,5% o défice de 2013 [1]), embora a previsão da Comissão Europeia fosse de 5,9%. Referíamos também que em Setembro o Conselho das Finanças Públicas, tendo em conta o «buraco» de 700 milhões de euros do Banif, apontava para 6,4% ([2]). 
  Ora, precisamente o que a ministra e os meios de comunicação não contam, são os seguintes dois aspectos:
   
1) O «buraco» do Banif -- resultado do programa de «recapitalização», eufemismo para designar o empréstimo-"roubo aos contribuintes" de 1100 M€ para «ajudar» os banqueiros do Banif ([3]). O «buraco» de 700 M€ parece ter entrado nas contas de 2013, depois do Eurostat ter rejeitado a proposta da ministra que queria transferir o «buraco» do OE para a dívida pública ([4]). Dizemos «parece» porque não encontrámos nada que confirme tal transferência. Vamos dar o benefício da dúvida à ministra; assumamos que sim, que foram contabilizados no défice deste ano. Mas, dos restantes 450 M€ em dívida, o Banif ainda só devolveu 150 M€ ao Estado ([5]). Restam 300 M€ que deveriam ser contabilizados como défice do OE de 2013.
  
2) Os perdões de dívidas fiscais e à Segurança Social não foram contabilizados no défice do OE de 2013. O perdão destas dívidas foi bem comentado por Arménio Carlos da CGTP: «Continua-se a perdoar a quem não paga impostos e não se investe em quem quer trabalhar. Para onde é que vamos?». O Estado, com o perdão, apenas arrecadou 16,1% do valor total em dívida, continuando 6,5 mil milhões de euros por cobrar ([6]; a dívida seria, portanto, de 6,5/0,839 = 7,747 B€). De qualquer forma, o que o Estado perdeu em juros compensatórios e de mora devia entrar como défice do OE. Ao entrar apenas com o que cobrou esquece-se assumidamente o que não se cobrou; a parcela negativa cujos efeitos são (foram) sentidos por todos os contribuintes, principalmente pelos mais dependentes das obrigações sociais do Estado. A nossa estimativa (que pensamos ser por defeito) do que o OE de 2013 perdeu com o perdão é de 828 milhões de euros (para detalhes, ver [7]).
   
   A estimativa actual do défice do OE feita com os números do governo é de 5,33% do PIB, estimado por sua vez em 165.830 M€.
  A tabela abaixo mostra esta estimativa e o resultado de tomar em conta os dois aspectos acima mencionados.
   

% do PIB
M€
PIB estimado em 2013

165.380
Défice do OE sem benesses ao Capital (*)
5,33
8.815
Buraco por cobrar do BANIF
0,18
300
Juros não cobrados dos «perdões»
0,50
828
TOTAL
6,01
9.943
(*) Contas segundo dados do governo de Paulo Trigo Oliveira; "Público" 24/1/2014.
   
   Conclusão: entrando em conta com as duas parcelas não contabilizadas, as nossas contas levam-nos a um défice de 6%; próximo dos tais 5,9% já previstos pelo Conselho das Finanças Públicas no passado Outubro.
   Os «abaixo de 5,5%» só se obtêm torcendo as regras. Tal como a ministra já queria fazer quando se preparava para retirar do défice do OE o «buraco» dos 700 M€ do Banif.
   
   Para as sumidades da economia convencional ao serviço do capitalismo, quando as regras incomodam e não dão os resultados desejados, o remédio é simples: mudam-se as regras!
   
*    *    *
   Não é só a ministra das Finanças que muda as regras. Os abencerragens da UE começam a sentir-se preocupados com os protestos populares e «mortinhos» por mostrar números beatíficos do crescimento do PIB nos países da UE. Vai daí, mudaram as regras de contabilidade! Agora, as despesas de cada país com investigação e desenvolvimento (I&D), em vez de serem contabilizadas como consumo (o que de facto são), são contabilizadas como «formação bruta de capital fixo»; entram na mesma rubrica que as maquinarias e edifícios (e outros activos tangíveis) usados no processo produtivo. Por esta óptica a investigação em astronomia, por exemplo, devia ser cancelada; não produz nenhum «capital fixo», quer bruto quer líquido.
   Qual o motivo de tão disparatada resolução? Bom, é que entrando as despesas de I&D no «capital fixo», «produzido», o PIB (a riqueza produzida num ano) aumenta. Espera-se, por exemplo, que com esta artimanha o PIB de Portugal aumente 2% em 2014 ([8]). Aos que têm falta de pão a UE se calhar recomendará que se dirijam, por exemplo, aos astrónomos, para que estes lhes dêem a comer uma nova estrela descoberta; perdão, produzida.

Notas

[1] JN 8/10/2013.
[2] JN 3/10/2013.
[3] O valor do «buraco» do Banif foi noticiado em vários jornais. Ver também: "Banif falha devolução do empréstimo ao Estado" http://www.esquerda.net/artigo/banif-falha-devolu%C3%A7%C3%A3o-do-empr%C3%A9stimo-ao-estado/28101.
[4] "Governo assume défice de 5,9% para este ano, acima da meta da troika", 15/10/2013,  http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/governo_assume_defice_de_59_acima_da_meta_da_troika.html .
[6] Valores noticiados, por exemplo, em "Há 6,5 mil milhões em dívidas ao Fisco e à Segurança Social", DN, 5/1/2014.
[7] Os 16,1% de dívida perdoada correspondem a 0,161x7.747 = 1.247 M€. Estas dívidas já se arrastam há muito tempo. Por exemplo, o documento em http://www.rmtjconsultores.com/pt/articles/arquivo/dividas-ao-fisco-e-seguranca-social-valem-28-mil-milhoes, mencionava que "Desde 2011, ano em que a troika entrou em Portugal, as dívidas à Segurança Social e às Finanças aumentaram mais de quatro mil milhões de euros e já ascendem a 28 mil milhões". Vamos ser modestos e assumir que metade da dívida cobrada se referia a um período de 1 ano e a outra metade a 2 anos; a primeira, vencendo juros compensatórios que, de acordo com https://sites.google.com/a/pttax.net/iva/iva/6---fiscalizacao/iva-artigo-89 , são à taxa básica de desconto do BdP [3,25%], acrescida de cinco pontos percentuais [8,25%] sendo os juros contados dia a dia; a segunda, vencendo, para além dos juros compensatórios, juro de mora à taxa de 6,112% (http://www.pwc.pt/pt/guia-fiscal/2013/coimas.jhtml ). Note-se que não distinguimos entre o regime de cobrança de dívidas ao fisco e à Segurança Social. Aplicando as fórmulas de juro composto às duas parcelas obtém-se 2.047 M€. Logo, o perdão de dívida corresponde à falta de cobrança de 2.047 – 1247 = 828 M€.
[8] JN 22/1/2014

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O Sector Financeiro. VI: Jogos com derivados (3)

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Neste artigo:
Respeitabilidade e segurança?
Opções e o passeio aleatório
Opções e a fórmula de Black-Scholes
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Respeitabilidade e segurança?
   
   Um dos aspectos mais curiosos dos jogos com derivados é a retórica com que rodeiam o tema os peritos da área (designadamente da matemática financeira), consciente ou inconscientemente ao serviço da especulação do grande capital financeiro. Procuram suportar o tema com toda a espécie de aparato matemático. Aparato esmagador para o leigo que se sente rendido face à «ciência» dos peritos. Já mais de uma vez tivemos ocasião de alertar o leitor deste blog que a matemática, só por si, não faz a ciência. É perfeitamente possível (e muitas vezes simples!) elaborar construções matemáticas correctas, interessantes e elegantes, mas conduzindo a conclusões falsas quando aplicadas à realidade. O aspecto mais comum de tal desempenho não científico é a incorporação de falsas assunções nessas construções matemáticas (ver uma boa exemplificação e discussão disso mesmo na nota 11 do nosso artigo http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/11/o-homem-que-ganhou-o-premio-nobel-por.html ; note-se que alguns investidores estão conscientes disso [21]). De facto, até para a astrologia seria possível construir uma teoria matemática!
   Com um aparato matemático de monta e a coberto de palavras mistificadoras como «produtos» e «instrumentos» financeiros -- como se os derivados fossem bens de consumo «produzidos» para a satisfação de necessidades correntes --, assim se empresta um ar de «respeitabilidade» e «segurança» aos jogos com derivados. Assim se enganam os tolos.
   O aparato matemático de monta nos derivados ocorre nas opções e motivou a entrega de dois prémios Nobel. Já tínhamos referido em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/11/o-homem-que-ganhou-o-premio-nobel-por.html como os preconceitos ideológicos têm pautado as decisões dos comités que atribuem os prémios Nobel de economia. No presente artigo vamos mostrar (e, em determinado aspecto, demonstrar) a fraude que se esconde por trás desses aparatos matemáticos. E vamos fazê-lo matematicamente (embora em termos simples).
   Respeitabilidade e segurança? Nenhumas.

Opções e o passeio aleatório
   
   Suponhamos que Maria e José jogam o seguinte jogo: cada um lança à vez uma moeda ao ar; se sair «cara» Maria paga a José 1 €, se sair «coroa» José paga a Maria 1€. A figura abaixo mostra várias curvas possíveis da evolução dos ganhos de um dos jogadores com o número de jogadas. É claro que podemos sempre impor um tempo fixo por jogada; seja, 30 segundos. Então o eixo horizontal do gráfico é uma escala temporal. Por exemplo, o valor 3001 da escala dir-nos-ia que já decorreram 1500 minutos (25 horas) desde o início do jogo.



   Cada uma das possíveis evoluções do jogo -- logo, cada uma das curvas da figura acima -- diz-se ser uma realização do passeio aleatório ([21]). Muitos teóricos da área de finanças usam o passeio aleatório como modelo matemático na avaliação de activos financeiros, incluindo preços de opções. De facto, não usam exactamente o modelo acima, mas sim um outro, no qual as excursões para cima (incrementos) ou para baixo (decrementos) em vez de estarem limitadas a +1 e -1 podem tomar qualquer valor, com uma distribuição de probabilidade regida pela chamada lei normal ([23]). Em termos simples:  a lei de probabilidade que rege os ganhos é a mesma que rege as perdas (a lei normal é simétrica); a probabilidade de um ganho ou perda diminui com o seu valor absoluto e, além disso, valores excedendo duas vezes o desvio padrão, são raros, ocorrendo com menos de 5% de probabilidade («caudas curtas» da distribuição de probabilidade). As diferenças entre os dois tipos de passeios aleatórios são pouco importantes já que o segundo é um caso limite do primeiro.
   Os teóricos financeiros usam a versão contínua do passeio aleatório como modelo do preço de activos financeiros. Concretamente, designemos por S(t) o preço de um activo num certo instante de tempo, t; então, a menos de uma simples transformação linear, esses teóricos modelizam o logaritmo de S(t) como um passeio aleatório ([24]).
   
   Porque razão é usado o modelo do passeio aleatório? Fundamentalmente, porque é simples e tem um tratamento matemático bem conhecido. É uma «receita» que é usada; e usada, em geral, sem grandes preocupações sobre se faz ou não faz sentido ([25]).
   
   Mas, é claro, que o «ser simples» não garante de forma alguma que o modelo seja adequado. Vamos ver que, de facto, não é adequado; quer do ponto de vista empírico quer do ponto de vista teórico.
   Comecemos por observar, na figura abaixo, a evolução temporal do logaritmo neperiano (também dito natural) da cotação rublo/libra.

   Será que se parece com a evolução que esperaríamos de uma realização do passeio aleatório? Comparemos com as evoluções da figura anterior. Há logo um aspecto que salta à vista: há excursões no logaritmo da cotação rublo/libra de valor significativo, que sobressaiem do «ruído» aleatório da evolução; pelo contrário, nas realizações do passeio aleatório os incrementos ou decrementos não parecem variar muito ([26]).
   O gráfico abaixo mostra, com barras vermelhas, quantas excursões entre valores sucessivos da cotação rublo/libra têm um valor dentro de certo intervalo; por exemplo, inspeccionando a figura, vemos que existem 87 excursões cujo valor se situa entre 0,15 e 0,3. Se as excursões do logaritmo da cotação rublo/libra seguissem a lei normal -- de forma equivalente, se pudessem ser bem modelizados pelo passeio aleatório -- esperaríamos obter um gráfico de barras vermelhas próximo da curva azul (que representa a lei de probabilidade normal com a mesma média e desvio padrão das barras vermelhas); seria isto que aconteceria com as curvas da primeira figura. Claramente tal não se verifica. As barras vermelhas parecem aproximar-se mais de uma dupla exponencial (curva a preto) aproximando melhor as «longas caudas» da evolução das barras vermelhas ([27]).

   Mas há ainda um outro problema! Se o modelo do passeio aleatório fosse adequado encontraríamos um valor constante do desvio padrão das excursões em sucessivos intervalos temporais de igual largura: o desvio padrão da lei normal subjacente. Ora, como a figura abaixo mostra (para sucessivos intervalos temporais de 12 dias de largura) o desvio padrão das excursões do logaritmo da cotação rublo/libra está muito longe de ser constante! Revela, pelo contrário, uma forte não estacionaridade (idem, para outras larguras intervalares).

   O modelo do passeio aleatório é manifestamente inadequado para a cotação rublo/libra. Será que só em certos casos é inadequado? Não. Em mais de uma vintena de séries temporais que observámos a inadequação era empiricamente manifesta. Mas a observação empírica não basta. Teremos também de analisar a questão do ponto de vista teórico. Teremos de perguntar: que condições deverão satisfazer as excursões de uma série temporal por forma a poder ser modelizada pelo passeio aleatório? Esta pergunta tem uma resposta bem conhecida dos matemáticos. Devem satisfazer obrigatoriamente a duas condições: 1) deverão ser variáveis aleatórias independentes; 2) deverão reger-se pela mesma lei normal. São duas condições praticamente impossíveis de satisfazer pelas séries temporais económicas relativas a variáveis de mercado, sobre as quais incidem os derivados. A condição 1 exigiria que cada ocorrência diária de um mercado fosse uma ocorrência estanque; isto é, que num dado dia os participantes humanos no mercado agissem como se não soubessem o que se passou nos dias anteriores. Só assim estaria garantida a independência das excursões das variáveis. Um absurdo. A condição 2 implicaria que qualquer que fosse o dia do mercado todas as influências sobre a variável em causa fossem de tipo aditivo e exactamente as mesmas; isto é, que não existisse história. Outro absurdo.
   Na realidade, há já bastante tempo que alguns economistas viram o absurdo da modelização pelo passeio aleatório (ver, p.ex., [28]). Contudo, os economistas convencionais continuam impávidos e serenos a ensinar absurdos e a assobiar para o lado. (Este é um tema que temos vindo a esclarecer desde o início do blog.)
Dissemos que as séries temporais económicas sobre que incidem os derivados não são modelizáveis por passeios aleatórios. Será que existem outros modelos possíveis? Se por modelos possíveis entendermos modelos capazes de efectuar predições de interesse, a resposta é absolutamente e inequivocamente não ([29]).

Opções e a fórmula de Black-Scholes
   
   Os economistas Fischer Black e Myron Scholes ganharam o prémio Nobel em 1997 por um trabalho de 1973, em que desenvolveram uma fórmula para calcular o preço de opções. A fórmula foi desenvolvida com base no modelo do passeio aleatório; de facto, os ditos economistas adaptaram trabalhos já existentes sobre o passeio aleatório ([30]) a um modelo de preços de activos proposto em 1965 pelo economista convencional Paul Samuelson.
   A fórmula de Black-Scholes pareceu trazer a «respeitabilidade» teórica que faltava ao mercado de opções. Como diz o artigo da wikipedia «A fórmula levou a uma subida em flecha nas transacções de opções e legitimou cientificamente as actividades da Bolsa de Opções de Chicago e de outros mercados de opções em todo o mundo». Já discutimos esta questão de legitimidade científica dos modelos (ver também o que dissemos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/11/o-homem-que-ganhou-o-premio-nobel-por.html). Podemos sintetizar assim: as teorias cientificamente validadas usam frequentemente modelos; mas um modelo, seja simples ou complexo, por si só, não pode ser legitimado cientificamente. É necessário que consiga explicar a realidade e que assente em assunções também conformes com a realidade. A história da ciência regista um enormíssimo número de modelos -- por vezes de complexidade matemática não trivial, como o da fórmula Black-Scholes -- que tiveram de ser descartados porque, ou não descreviam adequadamente observações empíricas, ou assentavam em assunções não realistas ([31]), ou ambos.
   Podemos facilmente compreender que toda a arquitectura matemática imponente subjacente à fórmula de Black-Scholes, impressione o leigo e pareça dar «respeitabilidade científica» à dita fórmula. O que é certo é que a fórmula não evitou uma série de desastres aos que jogam com opções. Conforme também diz a wikipedia: «O modelo de Black-Scholes discorda da realidade de muitas formas, algumas delas significativas. É largamente usado como aproximação útil, mas a sua aplicação adequada requer que se compreendam as limitações -- guiar-se cegamente pelo modelo expõe o utilizador a riscos inesperados». É claro que ninguém sabe o que significa «aplicação adequada» de um modelo que «discorda da realidade de muitas formas», nem a que corresponde na prática compreender as «limitações». E, à boa maneira da economia convencional, o artigo da wikipedia prossegue dizendo, entre outras coisas, que a fórmula é usada porque «é fácil de calcular» -- dá vontade de dizer que o fácil tal como o barato pode sair caro -- e que apesar da volatilidade de activos financeiros não se comportar como nas assunções do modelo, ainda assim é útil usá-la porque «o número errado na fórmula errada pode produzir o preço certo»! Incrível afirmação que se sente ser da escola irracional de Milton Friedman.
   É claro que a fórmula de Black-Scholes não retira em nada a natureza de jogo do mercado de opções. Mas será que contribuirá para uma maior «segurança» do mercado? Isto é, será que usando a fórmula de Black-Scholes perdas e ganhos são do menor montante possível? Se assim fosse estaria justificada a utilização da fórmula para fins de «cobertura» («hedging») do risco. Contudo, não existe um único resultado teórico que demonstre a optimalidade da fórmula de Black-Scholes; nem mesmo na situação em que todas as assunções em que se baseia são fielmente cumpridas.
   Aplicámos a fórmula de Black-Scholes à situação de subscritor de opções de compra  a 90 dias sobre a cotação dólar/libra, tal como no caso da Allied-Lyons que descrevemos no artigo anterior. O período em causa vai de 1 de Setembro de 1989 a 2 de Outubro de 1991. Concretamente, considerámos que o contrato da primeira opção, celebrado em 1 de Setembro de 1989, vencia em 30 de Novembro de 1989, e que a partir daí todos os meses era contratada nova opção, com a vigésima-sexta e última, celebrada a 2 de Outubro de 1991, vencendo em 31 de Dezembro de 1991. Usámos como preço de exercício a taxa forward a 90 dias. Usando a fórmula de Black-Scholes o preço das opções depende de seis parâmetros ([32]); obtivemos valores para as 26 opções que variaram entre 0,0002$ e 0,36$ o que, para montantes transaccionados de 10 M$ (milhões de dólares) como no caso da Allied Lyons, corresponde a prémios pagos no momento do contrato entre 2 e 360 mil dólares. Obtivemos também uma perda total 9,223 M$. Pois bem, se em vez dos preços variáveis calculados pela fórmula de Black-Scholes com base em seis parâmetros, tivéssemos simplesmente usado um preço constante de 0,051$ obteríamos, não um prejuízo, mas sim um ganho de 61 mil dólares. Um exemplo de quão longe pode estar a fórmula de Black-Scholes de uma minimização de risco num caso real.
   Para terminar: Myron Scholes juntamente com outro prémio Nobel da Economia, Robert Merton, levaram à ruína um fundo de investimento: Long-Term Capital Management (LTCM). Deram um rombo à LCTM de 4,6 biliões (milhares de milhões) de dólares jogando com opções e outros derivados. Não lhes serviu de nada a fórmula para cobrir riscos. O próprio Scholes teve problemas com a justiça dos EUA por evasão fiscal e outras malandragens ([33]). O neoliberal Alan Greenspan, que foi presidente do Federal Reserve Bank, caracterizou-os de «jogadores compulsivos».
   Hoje em dia parece que a fórmula passou a ser apenas uma capa pudica para emprestar respeitabilidade ao capitalismo de casino epitomizado pelos derivados. Como dizia um artigo do The Guardian ([34]): «A fórmula de Black-Scholes foi a justificação matemática para as transacções que mergulharam a banca mundial na catástrofe», e ainda «Apesar da sua suposta sapiência [pelo uso de fórmulas] o sector financeiro não tem melhor desempenho que a decisão ao acaso».
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Próximo artigo:
Swaps
Swaps e o caso da Procter & Gamble
Os famigerados CDOs e CDSs
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Notas:
[21] Benjamin Graham, perito em investimentos e conselheiro do milionário Warren Buffet, dizia (citado em [9]): «a combinação de fórmulas precisas com assunções imprecisas pode ser usada para estabelecer, ou melhor para justificar, praticamente qualquer coisa que se deseje… A matemática empresta à especulação o aspecto enganador de investimento».

[22] O nome provém do facto de se poder interpretar cada curva como um passeio constituído por excursões aleatórias, para cima ou para baixo, de um salto de uma unidade (numa certa escala de medida). Para uma exposição não técnica, ver: J. Marques de Sá, “O Acaso. A Vida do Jogo e o Jogo da Vida”, Ciência Aberta n.º 154, Gradiva, 2006.
[23] Trata-se do «passeio aleatório gaussiano», também conhecido por movimento browniano. A versão contínua deste passeio é o processo estocástico de Wiener-Levy.
[24] O modelo usado é: lnS(t) = lnS(0) + m.t + s.W, onde m e s são valores constantes e W um processo de Wiener-Levy. Subtraindo a lnS(t) a recta lnS(0) + m.t e dividindo por s, obtém-se o passeio aleatório W. Neste modelo m é a média dos incrementos logarítmicos e s é a volatilidade. Já vimos, em [14], que na prática é indiferente usar incrementos logarítmicos ou incrementos relativos.
[25]  É isto que é dito por exemplo num curso universitário irlandês sobre activos financeiros http://www.4c.ucc.ie/~aholland/bordgais/BG_Ch6.pdf ): «O passeio aleatório pode-se escrever como "receita" para gerar Si+1 de Si [o próximo valor do activo a partir do anterior]». Em geral, em muitos documentos de cursos superiores que lemos na web, os autores alheiam-se sobre se o modelo é ou não adequado, transmitindo a convicção de que «é assim porque é assim».
[26] O mesmo acontece no passeio aleatório contínuo usado pelos teóricos financeiros. As excursões entre valores sucessivos são quase sempre pequenas dado precisamente as «caudas curtas» que caracterizam a distribuição normal.
[27] Logo, a considerável probabilidade de grandes excursões face à média.
[28] AW Lo, AC MacKinlay, "Stock market prices do not follow random walks: evidence from a simple specification test", The Review of Financial Studies (1988) 1 (1): 41-66. http://rfs.oxfordjournals.org/content/1/1/41.abstract
[29] De facto, têm sido propostos outros modelos, de difícil utilização prática. Nenhum deles pode obviamente garantir contra uma perda arbitrariamente grande no jogo com derivados, dada a complexa não estacionaridade das séries económicas. Num dado dia podem sempre entrar novas variáveis no mercado ou as antigas comportarem-se de forma totalmente diferente. O mercado é um fenómeno eminentemente caótico. Quando muito dispomos de métodos para caracterizar essa caoticidade; sem garantias quanto ao risco de predições. O leitor treinado em matemática poderá achar interessante a leitura de Steve Pincus, Rudolf Kalman "Irregularity, volatility, risk, and financial market time séries", PNAS vol. 101, 38:13709-13714, 2004.
[30] Nomeadamente, o integral de Itô, desenvolvido em 1945 pelo matemático japonês Kiyoshi Itô
[31] Pode-se objectar que a mecânica quântica -- uma das mais bem validadas teorias da física -- assenta em assunções não realistas. Quando Max Planck introduziu a assunção de que a energia era radiada em pacotes discretos -- os quanta -- esta parecia ser algo imposto «em desespero». Só mais tarde a realidade dos quanta veio a ser compreendida, em particular como consequência da interacção do observador sobre o observado (e decorrente princípio da incerteza). Na área macroscópica da economia não temos de nos preocupar com tais dificuldades. A exigência de assunções realistas, no sentido habitual do termo, é absoluta.
[32] A aplicação da fórmula de Black-Scholes ao mercado forex faz-se através da fórmula de Garman-Kohlhagen (ver, p. ex., http://en.wikipedia.org/wiki/Foreign-exchange_option), calculando primeiro as seguintes quantidades:
onde S0 é o valor da cotação no momento do contrato, E o valor contratado, s a volatilidade e T o período do contrato (para 90 dias o valor normalizado do tempo é de 90/365=1/4,056); rd e rf são, respectivamente, as taxas de juro doméstica e estrangeira. Suponhamos que em 1 de Janeiro de 1990 era celebrado o contrato e as taxas de juro eram respectivamente rd=14,875% e rf =10,5%. Para s = 0,125, S0 = 1,603 $/£ e E = 1,746 $/£ (a taxa forward no momento do contrato) o leitor pode verificar que d1 = -0.437 e d2 = -0,499.
A fórmula de Garman-Kohlhagen calcula o preço da opção a partir dos valores de d1 e d2:
onde N é a função de distribuição de probabilidade normal, de média nula e desvio padrão unitário. Para os valores acima de d1 e d2 obtém-se p = 0,02 $. Noventa dias depois verifica-se que S = 1,643 $/£. Dado que S > E, o detentor não exerce o contrato e o subscritor ganha neste caso p(1+rf/4,056) = 0,021 $ por cada dólar do montante contratado. 
[33] Para além de outros artigos que relatam o caso vale a pena ler também Adolph L. Reed Jr, "The Road to Corporate Perdition" The Progressive (http://progressive.org/node/1474). Adolph L. Reed Jr. é um Professor de Ciências Políticas na Faculdade de Ciência Social e Política (New School, Nova Iorque).
[34] "The mathematical equation that caused the banks to crash", 12/2/2012 http://www.theguardian.com/science/2012/feb/12/black-scholes-equation-credit-crunch

domingo, 12 de janeiro de 2014

O Sector Financeiro. VI: Jogos com derivados (2)

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Neste artigo:
Estacionaridade
Seguros e Derivados
Opções e o caso da Allied Lyons
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Estacionaridade
   
   Vimos no artigo anterior (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/01/o-sector-financeiro-vi-jogos-com.html ) que éramos capazes de prever bastante bem a evolução futura da esperança de vida (EV) baseados em poucos valores do passado, mas o mesmo não se podia dizer quanto à previsão de futuras taxas de câmbio JPY/USD; ainda que usássemos informação de outras variáveis económicas (taxas de juro de empréstimo bancário) a previsão era frequentemente muito má.
   A grande diferença entre as evoluções temporais de EV e de JPY/USD é que, enquanto a primeira é bastante regular, a segunda é bastante irregular. Procuremos objectivar o que se entende aqui por «regular», começando por observar abaixo o gráfico da EV (traço preto).
   
    Claramente a EV evolui, em termos médios, linearmente. Se subtrairmos à EV uma recta que «suba» à taxa de 0,137 anos de esperança de vida por ano, obtemos uma recta horizontal situada no valor de 15,1 anos. (O leitor pode comprovar este e outros resultados usando os dados de EV do artigo anterior.) Isto é, a menos do crescimento de 0,137 anos/ano, a média dos valores de EV é constante e igual a 15,1 anos; não varia com o tempo.
   Verifica-se que os desvios face à evolução linear são pequenos e a sua variabilidade também. Quanto á variabilidade, é usual (por várias razões) medi-la pela raiz quadrada da média dos quadrados dos desvios; o chamado desvio padrão ([10]). Pois bem, o desvio padrão de todos os desvios é apenas de 0,2 anos. Mas não é o desvio padrão de todos os desvios que mais nos interessa. Na figura abaixo de uma falsa EV o desvio padrão de todos os desvios também é de 0,2 anos, embora se verifique claramente uma transição de baixa variabilidade para elevada variabilidade.
   
   A fim de poder detectar diversos regimes de variabilidade, podemos fazer o seguinte: calcular os sucessivos valores do desvio padrão num certo número de anos, por exemplo 6 anos ([12]). A primeira figura acima mostra, a traço azul, o resultado obtido para os desvios da EV. O valor para 1979 é o desvio padrão para os anos de 1975 a 1979; para 1980 é o desvio padrão para os anos de 1976 a 1980; e assim sucessivamente, até ao conjunto dos últimos seis anos. O gráfico não evidencia uma transição entre diferentes regimes de variabilidade; o desvio padrão varia, com pequenas excursões, em torno de cerca de 0,12 anos (escala vertical da direita). Para efeitos práticos podemos considerar que o valor do desvio padrão é independente do tempo.
   Variáveis que evoluem no tempo mantendo sempre a mesma média e o mesmo desvio padrão dizem-se estacionárias. (Esta definição é suficiente para os nossos propósitos; ver [13].)
   Conseguimos jogar sempre bem o jogo forward com a EV (ver artigo anterior: http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/01/o-sector-financeiro-vi-jogos-com.html) porque se tratava de uma evolução praticamente estacionária (depois de remover a evolução linear). Não conseguimos jogar bem o jogo forward com a cotação JPY/USD (ver gráfico no artigo anterior) porque a respectiva evolução temporal não é estacionária. Claramente a curva JPY/USD não é rectificável por transformação simples. O desvio padrão dos valores diários da cotação durante um mês varia conforme mostra a figura abaixo (traço preto); a curva de tendência a azul revela dois regimes de alta variabilidade até meados de 1991, seguidos de um regime de baixa variabilidade. Em finanças usa-se muito a chamada «volatilidade» como medida de variabilidade; trata-se do desvio padrão dos incrementos relativos de uma dada variável (ver [14]); o gráfico da volatilidade é parecido com o gráfico abaixo e as conclusões são as mesmas.
   
Seguros e Derivados
   
   Existem muitos exemplos de variáveis quase estacionárias. Eis dois deles:
 

   Evoluções (séries) temporais tais como taxas de mortalidade por morte natural ou por acidentes, prejuízos causados por incêndios, por furtos, por inundações, e, de uma forma geral, todas as séries de eventos que caem na alçada das Companhias de Seguros, são quase estacionárias a menos de uma dada transformação simples (remoção de uma tendência linear em (a) e de uma tendência exponencial em (b)). As Companhias de Seguros podem, com bastante segurança, jogar o jogo forward: prever montantes expectáveis de indemnizações e, assim, os preços dos seguros.

   Vejamos, agora, alguns exemplos de séries não estacionárias:
   

   Taxas de juro, cotações cambiais, cotações de valores mobiliários (acções, títulos de dívida, etc.) e preços de matérias-primas como metais e petróleo, caracterizam-se por evoluções não estacionárias. Nos exemplos acima vê-se claramente que não existe um regime constante de média e variabilidade. Para além disso, não é possível aplicar transformações simples que confiram estacionaridade às séries transformadas.

   
   Fazer previsões com tais tipos de variáveis é sempre um jogo arriscado. Nenhuma Companhia de Seguros joga este tipo de jogos; bom, até certo ponto... Estamos no domínio dos jogos com derivados. No domínio da especulação financeira.
   
   Na realidade, existe toda uma larga teoria matemática que alguns entendem como conferindo alguma «respeitabilidade» e «segurança» aos jogos com derivados. No próximo artigo discutiremos este tema.

Opções e o caso da Allied Lyons
   
   Uma opção é um contrato que confere a um contratante – dito o detentor (ou comprador) da opção -- o direito (mas não a obrigação) de comprar (no caso da opção de compra, call option) ou de vender (no caso da opção de venda, put option) ao outro contratante -- dito  subscritor (ou vendedor) -- uma quantidade especificada de um activo, a determinado preço, num data futura (opção europeia). Para usufruir do direito conferido pela opção o detentor paga ao subscritor um prémio no momento do contrato.
     
   Exemplo: A companhia inglesa XY vai ter de efectuar um vultuoso pagamento em dólares. Aparentemente para se proteger de uma apreciação do dólar, XY entra numa opção de compra a 90 dias com o banco UV, pela qual paga a UV um prémio de 500 mil dólares com a possibilidade (mas não a obrigação) de poder exercer a opção no montante de 10 milhões de dólares (10 M$) ao câmbio de 1,6$ = 1£ (1,6$/£).
   O câmbio acordado é o chamado preço de exercício, preço da libra estipulado para o termo do contrato. O prémio corresponde a uma avaliação da opção -- preço da opção. Suponhamos que o contrato estipulava 0,05$/£. Com vista a usufruir do direito de comprar os 10 M$ o detentor paga ao subscritor, na data de assinatura do contrato, 0,05x10 M$ = 500 mil dólares, 0,5 M$ (não entrando com o juro dos 90 dias, para simplificar).
   Suponhamos que 90 dias depois a libra vale 1,7$/£. Como este valor é superior ao preço de exercício, XY exerce o contrato: obtém 10 M$ tendo ganho com a opção 10x(1,7-1,6) – 0,5 = 0,5 M$. UV perdeu a mesma quantidade. Se a libra valesse 1,5$ XY não exerceria a opção, gastando apenas o prémio de 0,5 M$, que UV ganharia. XY livrava-se, assim, de ter de pagar mais 10x(1,6-1,5) = 1 M$.
   
   Note-se que uma opção -- como aliás todos os derivados -- é também uma aposta sobre o futuro. Sobre o futuro de algo não estacionário, logo largamente imprevisível!
   
*    *    *
   
   Em 17 de Março de 1991 a Allied-Lyons anunciou o espantoso prejuízo de 269 M$, cerca de 20% dos lucros projectados para 1991. A Allied-Lyons era um grande conglomerado britânico do sector alimentar que se meteu na especulação no mercado forex. Para tal, constituiu um departamento financeiro específico encabeçado por um especialista com anos de experiência no Crédit Suisse. Obteve retornos consideráveis comprando forwards em dólares.
   Em Setembro de 1989, dada a elevada volatilidade do preço do dólar, o departamento financeiro da Allied-Lyons iniciou a subscrição de opções de compra em libras. Por exemplo, em 1/6/1989 a Allied-Lyons subscreveu uma opção de compra a 90 dias de um montante de 10 M$ pelo preço de exercício de 1,57$/£ e um preço de opção de 0,05$. Vejamos o que isto significa. Como subscritor, a Allied-Lyons recebe logo de início o prémio de p = 10x0,05x(1+0,06/4) = 507.500$, onde no prémio incluímos já a valorização do dólar à taxa de juro de 6% por um período de 90 dias (para simplificar as contas tomámos ¼ do ano). Suponhamos que passados 90 dias a cotação nesse momento é de 1,5$/£. Então, ao detentor da opção não interessa exercê-la (a cotação do dólar em libras está mais baixa do que o contratado na opção; mais vale comprar dólares no mercado cambial normal). Logo, a Allied-Lyons fica a ganhar o prémio; e era com isto que a Allied-Lyons especulava: apreciação do dólar face à libra implicaria embolsar prémios. Mas, suponhamos, que a cotação ao fim de 90 dias é de 1,67$/£. Então, o detentor exerce a opção e o subscritor, Allied-Lyons, tem de pagar os 10 M$ perdendo com isso (face ao câmbio do momento) 10x(1,67-1,57) = 1M$. Descontando o prémio a Allied-Lyons perde 1 – 0,5075 M$ = 492.500 $. Mas o pior de tudo deste jogo especulativo da Allied-Lyons é que as respectivas perdas podem ser (em princípio) arbitrariamente elevadas! (Ver [21] para mais detalhes.) O jogo da Allied-Lyons era um jogo especulativo de altíssimo risco. Na realidade, as opções da Allied-Lyons eram algo mais complexas devido a cláusulas extra que acabaram por penalizar ainda mais a Allied-Lyons.
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Próximo artigo:
Respeitabilidade e segurança?
Opções e o passeio aleatório
Opções e a fórmula de Black-Scholes
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Notas

[11] O desvio padrão para os seis primeiros desvios (ver tabela do artigo anterior) é calculado assim: 1) os desvios de EV para a recta 15,1+0,137x(ano-1974) são -0,444, -0,382, -0,019, -0.257, 0,106, 0,168, com média -0,138; 2) A soma dos quadrados das diferenças para a média é (-0,444+0,138)2+…= 0,334; 3) o desvio padrão é a raiz quadrada de 0,334/6 = 0,236 (de facto devia dividir-se pelo número de valores menos um, isto é, por 5 e não por 6; a razão e a relevância disto são, aqui, sem qualquer importância). O valor 0,236 é o primeiro valor da curva a azul.

[12] A chamada «janela temporal» usada no cálculo do desvio padrão em sucessivos instantes de tempo deverá ter uma «largura» temporal adequada. A discussão deste aspecto não é aqui importante.
[13] A estacionaridade é definida para processos estocásticos: distribuições probabilísticas de um número arbitrário de observações de séries temporais. Estamos aqui a considerar apenas a estacionaridade estatística, avaliada numa janela temporal que percorre uma única observação de uma série temporal, tal como acontece com as séries económicas. Além disso, estamos a limitar-nos à chamada estacionaridade restrita, apenas da média e do desvio padrão (ou de medida alternativa associada ao momento corrente de segunda ordem da série temporal).
[14] A volatilidade num dado período de tempo é definida em finanças como o desvio padrão dos incrementos relativos de uma variável económica nesse período: stdev((Vi+1Vi)/Vi), onde Vi e Vi+1 são valores consecutivos da série temporal (respectivamente, no instante de tempo i e no instante seguinte, i+1) e stdev representa o desvio padrão. Quando se trata de valores sempre próximos de Vi e Vi+1, como é frequente em séries diárias, também se obtém praticamente o mesmo valor da volatilidade usando stdev(ln(Vi+1/Vi)), onde ln designa o logaritmo neperiano. De facto, se Vi+1 >= Vi, temos que Vi+1/Vi = 1 + a, com a pequeno (muito inferior a 1); do mesmo modo, se Vi+1 < Vi, temos que Vi+1/Vi = 1 - a, com a pequeno. No primeiro caso, ln(Vi+1/Vi) = ln(1+ a), que por desenvolvimento em série de McLaurin se pode escrever: ln(Vi+1/Vi) = ln(1+ a) = a a2/2 + a3/3 - …≈ a, para a pequeno. De forma semelhante, ln(Vi+1/Vi) = ln(1- a) = -a a2/2 - a3/3 - …≈ -a. Ora, a no primeiro caso e –a no segundo caso são simplesmente os incrementos relativos: (Vi+1Vi)/Vi.
Seja s a volatilidade num longo período de tempo, de forma a poder considerar-se a volatilidade intrínseca da série, e seja sT a volatilidade num período limitado de tempo, T. Então, o modelo do passeio aleatório determina que sT = sxsqrt(T), onde sqrt designa a raiz quadrada. Por aqui se vê que o passeio aleatório é não estacionário (sT varia com T). Num próximo artigo veremos também que esse modelo, tão caro aos que trabalham na área de apreçamento de valores mobiliários, é um modelo largamente inaplicável.
[16] Traffic Fatalities based on historical nhtsa and fhwa data http://www.saferoads.org/federal/2004/TrafficFatalities1899-2003.pdf
[21] A posição do subscritor de uma opção de compra, como no caso da Allied Lyons, é mostrada no gráfico abaixo. O gráfico da posição do detentor é simétrico em torno do eixo horizontal.


Quando o preço no termo do contrato (S) é inferior ou igual ao preço de exercício, E = 1,57$, o subscritor ganha o prémio correspondente a 0,05x(1+0,06/4) = 0,5075 (que o detentor perde). Quando S > E o ganho do subscritor diminui e torna-se uma perda logo que S > 1,57+p =1,62 $ (aproximadamente). Com S crescente as perdas são arbitrariamente grandes. A posição de subscritor de opções (quer de compra quer de venda) é sempre uma posição claramente especulativa (mais detalhes em [9]).
 

domingo, 5 de janeiro de 2014

O Sector Financeiro. VI: Jogos com derivados (1)



-- Compreendo -- interrompeu-o Mason. -- O senhor zela pelos interesses legislativos dos estabelecimentos de jogo.
-- Entre outras coisas -- redarguiu Fenwick. -- Sabe, Mason, há muita gente que gosta de atacar o jogo, mas, no fim de contas, não há nada de mal nessa actividade. Jogar é um escape para as emoções. Todos jogam, é universal. Não se pode acabar com o jogo, pura e simplesmente. [...] Digo-lhe ainda mais uma coisa, Mason. Jogar é bom! Faz circular o dinheiro, encoraja a sociabilidade e é um excelente negócio para qualquer comunidade. Veja o que sucede, por exemplo, aqui em Rowena. Ficaria surpreendido com a quantidade de dinheiro que entra nesta cidade proveniente do jogo! Vem gente de toda esta região fazer um joguinho de cartas... e deixa cá dinheiro.
-- Presumo que os jogadores nunca acabam de jogar empatados, quero dizer, com o dinheiro que começaram -- observou o advogado.
Fenwick atirou a cabeça para trás e desatou a rir à gargalhada.
-- O senhor é um ponto, Mr. Mason! Mas esse é precisamente o princípio do jogo organizado! O cliente não empata. Com a breca, ele não quer tal coisa! Se quisesse ficaria em casa, não se daria ao trabalho de ir a uma casa de jogo. É essa a filosofia do jogo. Às vezes, o cliente tem lucro; o explorador do jogo tem sempre lucro. O explorador não tem uma casa para perder. Há os que ganham, há os que perdem, e embora os segundos sejam em número maior do que os primeiros, os que ganham, ganham muito. [...] Por outro lado, o explorador de uma casa de jogo sabe que, embora uma pessoa possa ganhar mil e quinhentos dólares no decorrer de uma semana, a maioria das pessoas que participam no jogo contribuirão para lhe pagar. É disso que ele vive. Acredite, Mr. Mason, jogar é uma coisa boa para a comunidade.
Erle Stanley Gardner "O Caso do Revólver Trocado"
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Neste artigo:
Introdução
Jogos com forwards
Forwards e o caso da Showa Shell
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Introdução
   
   Imaginemos que a ministra das Finanças aceitava jogar o seguinte jogo com o leitor: 
   Se em 31 de Dezembro de 2014 o défice orçamental for superior a 4,5% do PIB, conforme o governo (e a troika) se propõem atingir, a ministra paga-lhe em 1 de Janeiro de 2015 retroactivos correspondentes a todos os cortes praticados até 2014 (respeitantes a ordenados/ pensões e subsídios). Se for igual ou inferior aos 4,5% a ministra mantém todos os cortes.
  Para evitar esquecimentos da ministra, o leitor passa hoje -- digamos, 31 de Dezembro de 2013 -- a escrito os termos do jogo num contrato devidamente datado e assinado por ambas as partes, legalmente vinculativo.
   
Este contrato é um derivado.
   
   Vejamos a definição mais geral: derivado (ou derivativo, como dizem os brasileiros traduzindo literalmente do inglês «derivative») é um contrato entre duas partes que estabelece futuras entregas de activos, com base no valor assumido por uma variável, tal como o preço de um outro activo (acções, títulos de dívida, metais, petróleo, etc.) ou o valor de qualquer variável com significado económico ([1]).
    No caso do exemplo, existe a entrega de activos -- retroactivos correspondentes a cortes -- numa data futura: 1 de Janeiro de 2015. A variável com significado económico é o défice orçamental.
   A designação «derivado» provém do facto do valor do contrato «derivar» do preço de um activo ou do valor de uma variável económica. (Não tem nada a ver com o significado da palavra «derivada» na Matemática.)
    Desde logo se vê, pelo exemplo acima, que um derivado é uma aposta no futuro posta em contrato. Daí a sua natureza intrínseca de jogo.
   
   Mas porquê perder tempo com jogos deste tipo? Qual a relevância deste tema?
   
  Para vermos que o tema «derivados» tem uma enorme, uma gigantesca relevância, no actual sistema capitalista, basta atentar nisto:
   
Segundo os peritos, o volume global do mercado de derivados é mais de 1.200 triliões de dólares: 1.200.000.000.000.000 dólares: 20 vezes mais que a riqueza criada em todo o planeta durante um ano!
   
   E como os derivados são jogos e todos os jogos têm um vencedor e um perdedor; e como, além disso, assentam em apostas largamente especulativas sobre riqueza futura, portanto, largamente fictícia, é fácil entender que o mundo capitalista assenta actualmente sobre uma enorme bolha especulativa, um autêntico barril de pólvora. Isso mesmo é reconhecido por quase todos os economistas, incluindo alguns convencionais ([2]). (Outro barril de pólvora do actual sistema capitalista é a astronómica dívida pública americana.)
   Aliás, tivemos um exemplo recente e flagrante do barril de pólvora: a Grande Recessão iniciada em 2008 e despoletada pela «explosão» dos derivados de crédito (à habitação, etc.).
Será que este é só um problema das grandes economias, como as dos EUA e do Japão? Não. Veremos mais tarde que toda a Europa tem uma enorme quota no mercado de derivativos, incluindo Portugal. Aliás, o recente caso dos swaps já faria desconfiar disso mesmo.
   Mas, para podermos compreender a natureza do jogo com derivados, e em que contexto eles surgem, necessitamos primeiro de algumas noções. Procuraremos fazê-lo de forma simples e omitindo o jargão técnico ([3]). Procuraremos, também, revelar aquilo que não é revelado, incluindo pelos peritos; procuraremos também desfazer um sem-número de mitos e afirmações incorrectas que circulam em artigos dos media e na web.

Jogos com forwards
   
   Os contratos com derivados assentam em previsões; tal como outras actividades, quer sejam jogos -- como quando procuramos prever as cartas do adversário na sueca, poker, etc. -- ou não -- como na previsão de fenómenos naturais. São os derivados jogos ou não? E, no caso afirmativo, que tipos de jogos são?
   
Previsão da esperança de vida
   
   A figura abaixo mostra a evolução da esperança de vida (EV) das mulheres portuguesas aos 65 anos (dados do INE). Esta evolução é praticamente linear (rectilínea): a EV -- média dos anos de sobrevivência acima dos 65 anos -- tem aumentado a uma taxa de 0,15 anos (cerca de 55 dias) por ano, no período considerado: 1975 a 2011.
  
  
   Suponhamos que o leitor só conhece os valores da EV de 1975 (14,8) e de 1976 (15) e aceita participar no seguinte jogo: prever qual o valor da EV em cada ano seguinte, até 2011. Com a informação disponível do passado, e tendo em conta que a EV tem uma tendência crescente (embora desconhecendo a taxa de crescimento e se a evolução é ou não linear), pode tentar o seguinte ([4]): somar ao último valor conhecido o incremento entre esse valor e o anterior. Por exemplo, para 1977 a previsão seria 15+(15-14,8) = 15,2 anos. O valor exacto foi de 15,5 anos. As previsões assim obtidas, para o período considerado, constam da seguinte tabela:
  
Ano
EV exacta
EV prevista
Ano
EV exacta
EV prevista
Ano
EV exacta
EV prevista
Ano
EV exacta
EV prevista
1976
15
-
1985
16,7
16,6
1994
17,8
17,9
2003
18,9
18,8
1977
15,5
15,2
1986
17
16,9
1995
18,1
17,9
2004
19,1
19,1
1978
15,4
16
1987
17,2
17,3
1996
18,1
18,4
2005
19,4
19,3
1979
15,9
15,3
1988
17,2
17,4
1997
18,2
18,1
2006
19,6
19,7
1980
16,1
16,4
1989
17,6
17,2
1998
18,4
18,3
2007
19,7
19,8
1981
16,2
16,3
1990
17,1
18
1999
18,5
18,6
2008
19,7
19,8
1982
16,7
16,3
1991
17,2
16,6
2000
18,6
18,6
2009
20
19,7
1983
16,4
17,2
1992
17,5
17,3
2001
18,6
18,7
2010
20,2
20,3
1984
16,5
16,1
1993
17,7
17,8
2002
18,7
18,6
2011
20,3
20,4
  
   Todas as diferenças entre os valores exactos e os previstos são reduzidas, inferiores a um ano (entre -0,9 e 0,6 do ano). A soma das diferenças é de apenas -0,1 do ano. O método de previsão é bastante bom.
De facto, continua a ser bom quando, em vez de prever um ano à frente, prevemos 3 anos à frente, usando o último valor disponível e a média dos dois incrementos anteriores. Por exemplo, para prever o valor para 1978 dispomos do valor de 1977 (15,5) e calculamos a média dos dois incrementos anteriores: (0,2+0,5)/2 = 0,35. A previsão é de 15,85. Se fizermos isto para todos os anos obtemos desvios entre -0,7 e -0,5 do ano; a soma de todos os desvios é de apenas -0,4 do ano.
   
Previsão da cotação JPY/USD
   
   A cotação do iene face ao dólar (JPY/USD), de 1989 ao final de 1994, é mostrada a traço preto no gráfico abaixo.
   
  
   A evolução de JPY/USD é claramente irregular. Se aplicássemos o método anterior para prever a cotação do dia seguinte obteríamos várias vezes desvios significativos entre os valores exactos e os valores previstos; entre -6,66 e 4,80 Y (iene). Normalmente, não é a previsão para o dia seguinte que interessaria em aplicações económicas, mas sim a previsão a 90, 180 ou 360 dias (ou trimestre, semestre e ano).
   Seja a previsão a 90 dias. Não interessa aplicar aqui o anterior método do incremento médio porque claramente não estamos perante uma evolução linear. Suponhamos que usávamos simplesmente o valor do trimestre anterior. Por exemplo, a 1 de Abril de 1989 a cotação é de 1$ = 132,6Y. É este o valor que usamos para «prever» a cotação em 30 de Junho de 1989. De facto, quando chegamos a esta data verifica-se que a cotação é de 143,8Y. Um desvio de -11,1 Y. Se repetirmos para todos os meses (primeiro dia de cada mês), obtemos desvios que variam entre -16Y e 17,25Y e somam 112,5Y. Não se podem considerar desvios pequenos!
   De facto, os que negoceiam no mercado cambial (mercado forex, de «foreign exchange market») dispõem de um outro método mais complexo de previsão; baseia-se na chamada taxa ou cotação forward (explicada em [5] se o leitor tiver curiosidade), construída à custa das taxas de juro de empréstimos bancários (neste caso, do Japão e dos EUA), e mostrada a azul no gráfico acima ([6]). Infelizmente, neste caso, a taxa forward ainda tem pior desempenho que o método simplista que tínhamos usado: os desvios da cotação forward face à cotação oficial variam entre -20,2Y e 28,1Y somando 176,4Y!
   O gráfico abaixo mostra os desvios relativamente à taxa forward. Até Janeiro de 1991 a taxa forward tem tendência para se situar abaixo do verdadeiro valor, no ramo ascendente da cotação oficial: desvios negativos. Mas, no longo ramo descendente, apesar de alguns episódios ascendentes, a taxa forward está quase sempre acima do valor oficial: os desvios são quase sempre positivos.
   
  
Forwards e o caso da Showa Shell
   
   Os jogos anteriores estão relacionados com um tipo muito simples de derivados: os forwards.
   Um forward é um contrato juridicamente vinculativo entre duas partes que obriga à futura compra ou venda de um activo por uma quantidade, preço e data acordados no momento do contrato. Juridicamente vinculativo significa que é exercida uma penalização em caso de incumprimento.
   
   Exemplo: As firmas XY e UV assinam em 13/4/2013 um forward a 90 dias pelo qual a XY compra à UV 25 M$ (milhões de dólares) ao câmbio de 0,9€ = 1$.
Quantidade = 25 M$
Preço = 0,9 € por 1$
Data de entrega = 17/7/2013
   Em 17/7/2013 (90 dias depois) o contrato é executado: a UV entrega 25 M$ à XY e esta paga-lhe 25x0,9 = 22,5 M€, independentemente do preço do dólar em 17/7/2013, no termo do contrato ([7]). Se em 17/7/2013 o câmbio for 1€ = 1$, o comprador XY ganha 2,5 M€ e o vendedor UV perde a mesma quantidade. Se for 1€ = 0,85$, XY perde 1,25 M€ e UV ganha a mesma quantidade. (Alguns pormenores mais em [8].)
   
   Semelhantes aos forwards são os futuros:
   Um futuro é um contrato parecido com um forward (obriga à futura compra ou venda de um activo por uma quantidade, preço e data acordados no momento do contrato) mas com padronização de quantidades e datas: só certas quantidades e certas datas, ambas fixadas por uma instituição oficial, como por exemplo uma Bolsa.
   Os futuros são, pois, menos flexíveis que os forwards. Além disso, geralmente os contratantes têm de pagar um «seguro» à instituição oficial, seguro esse que serve de garantia de cumprimento. Ao contrário dos futuros, os forwards são contratos feitos de acordo com os desejos dos contratantes, no chamado «mercado de balcão» (OTC = «over-the counter») em firmas de investimento, de corretagem, departamentos financeiros de bancos e de outras instituições ou companhias. No mercado de balcão a exposição dos contratantes ao risco de incumprimento é significativa.
   
*    *    *
   No início de 1993 a Showa Shell Sekiyu K.K. (que designaremos simplesmente por Showa), subsidiária da Royal Dutch Shell (Shell), declarou perdas de 125 biliões de ienes (mais de 1 bilião de dólares!) em transacções de divisas. Tratava-se de uma soma de tal modo elevada que na sede da Shell não queriam acreditar e perguntaram mais de uma vez à Showa se não seria milhões em vez de biliões! (Este exemplo é de [9]. Usamos a palavra «bilião», como sempre temos vindo a fazer, com o significado de mil milhões.)
   A Showa comprava petróleo em bruto e pagava em dólares à Shell e a outros fornecedores. Processava-o e vendia os produtos resultantes aos clientes japoneses que pagavam em ienes. O preço de petróleo não variava muito; já o mesmo não se podia dizer do preço do dólar em ienes (o câmbio). A Showa comprava todos os meses 25 milhões de barris por 300 milhões de dólares (M$). Em Setembro de 1989 a Showa decidiu «proteger-se» da depreciação do iene contratando um forward a 90 dias com um banco. Estamos no nosso exemplo acima.
   A 30 de Setembro o câmbio era 1$ = 145Y. Nesse dia o contrato foi assinado nos seguintes termos: 90 dias depois a Showa entregava ao banco 300 M$ x 145Y/$ = 43,5 BY (biliões de ienes) e o banco entregava à Showa 300 M$ (independentemente do câmbio do momento).
   Este é um de muitos exemplos de derivados do mercado forex.
   Em 31 de Dezembro de 1989 a Showa entregou os 43,5 BY e recebeu 300 M$. Nessa altura o câmbio era 1$ = 140Y. O dólar tinha-se depreciado e a Showa perdeu com o forward 300x(140-145) = -1,5 BY ([10]).
   A Showa tinha outras alternativas para se proteger das flutuações do dólar. Podia ter, muito simplesmente, criado num banco uma conta em dólares, sujeita à taxa de juro do dólar que na altura era de 6%. Para dispor de 300 M$ ao fim de um trimestre bastava ter depositado 300/(1+0,06/4) = 295M$. Como o câmbio em 30 de Setembro era de 147 Y, teria então de obter um empréstimo em ienes de 295x147 = 43,448 BY com um custo final, dada a taxa de juro anual do Japão de 3%, de 43,448x(1+0,03/4) = 43,774 BY. Face ao forward a Showa teria de pagar mais 43,774 – 43,5 = 0,724 BY mas não sofreria a perda de 1,5 BY. (Segundo o autor de [9] a Showa escolheu o forward porque não deixa traços na folha de contabilidade; é um contrato off-balance sheet, característica tão apreciada pelos especuladores financeiros.)
   Num curto período inicial em que o dólar se apreciou a Showa ganhou com isso. Mas, depois desse curto período, o dólar manteve-se a depreciar (ver gráfico e exemplo acima) e os corretores da Showa, em vez de pararem às primeiras perdas e mudarem de estratégia, continuaram com os forwards, sempre à espera de uma apreciação do dólar que, num simples golpe, anulasse as perdas já acumuladas! De facto, isto não é mais do que o comportamento típico de um jogador, conhecido por «falácia do jogador». Julgar que, pelo facto de ter sempre saído «cara» em lançamentos consecutivos de uma moeda, então na próxima vez é maior a probabilidade de sair «coroa». (A probabilidade mantém-se sempre a mesma.)
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Estacionaridade
Seguros e Derivados
Opções e o caso da Allied Lyons
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Notas: 
[1] Existem derivados sobre as condições climáticas. Neste caso, o que está em jogo é a influência das condições climáticas sobre variáveis de interesse económico: más colheitas, consumo excessivo de energia, etc.
[2] Washington's Blog "Top Derivatives Expert Estimates Size of the Global Derivatives Market at $1,200 Trillion Dollars … 20 Times Larger than the Global Economy”, Global Research, 20 May 2012, http://www.globalresearch.ca/financial-implosion-global-derivatives-market-at-1-200-trillion-dollars-20-times-the-world-economy; Peter Cohan “Big Risk: $1.2 Quadrillion Derivatives Market Dwarfs World GDP”, Daily Finance, Jun 9th 2010, http://www.dailyfinance.com/2010/06/09/risk-quadrillion-derivatives-market-gdp/
[3] Os EUA e Reino Unido foram os grandes criadores de derivados aquando da imposição de políticas económicas neoliberais (Reagan e Thatcher). O jargão técnico é, por isso, anglo-saxónico e mais do que isso: assente na gíria dos corretores de bolsa desses países. Trata-se dum palavreado muito colorido e muito evocativo desse grupo profissional. Quando usado noutros países, como o fazem muitos peritos e jornalistas em Portugal, o único mérito desse palavreado é tornar incompreensível aquilo que é muito simples.
[4] Há outras abordagens mais sofisticadas; todas conduzindo às mesmas conclusões básicas.
[5] A taxa forward baseia-se na teoria da «Paridade da Taxa de Juro» que explicamos assim:
A firma japonesa ABC quer investir 100 MY (milhões de ienes) durante 1 ano. Pode fazê-lo sem grande risco em Y à taxa de juro praticado pela banca japonesa, seja 3%. Obtém ao fim de um ano 100x(1+0,03)=103MY. De uma forma geral, para um investimento de A ienes obtém A(1+i) onde i é a taxa de juro nacional. A firma ABC tem também outra possibilidade: a de aproveitar uma taxa de juro mais elevada numa divisa estrangeira, p. ex., o dólar. Pode fazer o seguinte: comprar dólares ao câmbio do momento, seja 145Y/$. Compra, portanto, 100/145 M$. Em geral, representando por S o câmbio actual, obtém A/S $. Investe estes dólares num banco americano à taxa aí praticada, maior que a japonesa; seja 6%. Ao fim de um ano obteria 100/145x(1+0,06) = 0,731 M$. Em geral, A/S(1+i*) onde i* é a taxa de juro estrangeira. Mas a ABC não espera um ano; no mesmo dia em que converte A em $ e coloca num banco americano vende um forward a um ano no valor de A/S(1+i*) para assegurar o valor do investimento do iene. Designemos por F o valor do câmbio a usar no forward de forma a obter o mesmo que obteria se tivesse investido no banco japonês. Então, deverá ser: A(1+i) = AF/S(1+i*) ou seja F = S(1+i)/(1+i*). No caso do exemplo, F = 145(1+0,03)/(1+0,06) = 140,9 Y.
[6] Usámos no cálculo os dados históricos das taxas de juro trimestrais publicadas pelo Federal Reserve Bank dos EUA e pelo Ministério das Finanças do Japão.
[7] Conhecido por «spot price» no jargão da área.
[8] A figura mostra a situação de um comprador de um forward. (No jargão da área, a parte que compra diz-se que detém uma posição longa; a que vende diz-se que detém uma posição curta.) O eixo horizontal corresponde ao preço efectivamente existente no termo do contrato, quando é executado (spot price), que designámos por S. O valor de 0,9 € foi, no exemplo, o preço contratado (strike price), que designámos por E. O eixo vertical corresponde ao retorno (payoff) para o comprador. Para o comprador, o retorno é uma simples recta a 45º: se S > E o retorno do comprador é um lucro (p. ex., para S = 1,1, o lucro é de 1,1-0,9 = 0,2 € por dólar); se S < E o comprador tem prejuízo. O gráfico para o vendedor é simplesmente o simétrico em torno da horizontal (quando um tem lucro o outro tem prejuízo e vice-versa).
[9] Laurent L Jacque, “Global Derivative Debacles. From Theory to Malpractice”, World Scientific Pub. Co., 2010.
[10] Os valores de [9] têm discrepâncias relativamente aos que tivemos acesso. As conclusões não dependem disso. O aspecto essencial é o comportamento dos desvios para a cotação forward que mostrámos.