sexta-feira, 23 de maio de 2014

O imperialismo alemão e o saque a Portugal

Com o título «Ajudas a Portugal e Grécia foram resgates aos bancos alemães» publicou o jornal Público, no passado dia 11 de Maio, uma interessante entrevista de Philippe Legrain ([1]), economista neoclássico que foi conselheiro do presidente da Comissão Europeia (CE) Durão Barroso desde Fevereiro de 2011 até Fevereiro de 2014. Philippe Legrain declara na entrevista que tinha uma opinião muito diferente de outros conselheiros da CE sobre as políticas, ditas de austeridade, impostas a Portugal e à Grécia e que «os meus conselhos não foram seguidos». Apesar dos seus «óculos» neoclássicos (atribui as causas da crise apenas ao sector bancário e entende a crise como tendo apenas a ver com as dívidas pública e externa) Philippe Legrain advoga o perdão das dívidas. Produz também várias declarações de interesse, tanto mais que provêm de alguém que conhece o pensamento e modus operandi da troika e suas ligações aos poderes políticos. Podemos agrupá-las da forma que se segue, usando como subtítulos certas ideias-chave que vimos desenvolvendo desde o início do blog:

- O sector financeiro domina os governos da zona euro
Interrogado sobre como se explica que a «gestão da crise do euro» (de facto, crise do capitalismo da zona euro) tenha sido efectuada da forma que conhecemos, diz assim Philippe Legrain (PL) [sublinhados nossos]: «Uma grande parte da explicação é que o sector bancário dominou os governos de todos os países e as instituições da zona euro. Foi por isso que, quando a crise financeira rebentou, foram todos a correr salvar os bancos, com consequências muito severas para as finanças públicas e sem resolver os problemas do sector bancário».
    Portanto, PL, economista neoclássico, reconhece que «o sector bancário dominou [etc.]». De facto, é mais do que «dominou»; é «domina». E é mais do que o sector bancário. É o sector financeiro -- que agrupa, para além dos bancos, as companhias de seguros e as empresas de investimento --, que domina os «governos de todos os países e as instituições da zona euro». A afirmação «sem resolver os problemas do sector bancário» não é correcta. Grande parte dos «problemas» do sector bancário foi resolvida. A começar pelo sector bancário alemão e francês que absorveu biliões de euros provenientes de saques à Grécia, a Portugal, etc. Mesmo o sector bancário de Portugal, conforme vimos em artigos anteriores, foi salvo dos buracos abertos pelas malandragens do grande capital à custa de resgates; directos, do governo português, e indirectos, por mediação do BCE mas também à custa dos trabalhadores, reformados e pensionistas portugueses. Aliás, se grande parte dos «problemas do sector bancário» -- isto é, os «problemas» do capitalismo de casino que explicámos em vários artigos, em especial em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/02/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_22.html -- não estivesse resolvida, a troika não sairia oficialmente de Portugal; os «problemas» que ainda subsistem (o remanescente dos buracos) irão ser resolvidos com a troika à distância mas atenta a que os gestores do capital instalados no governo português não esmoreçam no saque aos trabalhadores, reformados e pensionistas para tapar esses remanescentes. Por mais vinte ou trinta anos, pelo menos.
    Noutra parte da entrevista, PL afirma: «Muitos políticos seniores ou trabalharam para bancos antes, ou esperam trabalhar para bancos depois. Há uma relação quase corrupta entre bancos e políticos»; «os Governos puseram os interesses dos bancos à frente dos interesses dos cidadãos».
    É claro que com «uma relação quase corrupta entre bancos e políticos» -- e PL está a referir-se aos políticos dos governos europeus, isto é, aos políticos dos «arcos da governação» -- não admira que, como diz PL, fossem «todos a correr salvar os bancos».

- O capital é quem mais ordena
Que no capitalismo é o capital quem mais ordena é óbvio. É um axioma. PL fornece um bom exemplo deste axioma quando revela o seguinte (esclarecimentos entre parênteses rectos da entrevistadora): «Como o Tratado da União Europeia (UE) tem uma regra de “no bailout” [proibição de assunção da dívida dos países do euro pelos parceiros] -- que é a base sobre a qual o euro foi criado e que deveria ter sido respeitada -- o problema da Grécia deveria ter sido resolvido pelo FMI, que teria colocado o país em incumprimento, (default), reestruturado a dívida e emprestado dinheiro para poder entrar nos carris. É o que se faz com qualquer país em qualquer sítio. Mas não foi o que foi feito [...]».
    Por conseguinte, o capitalismo europeu -- já vamos ver a seguir que PL se refere aos capitalismos alemão e francês -- violou as suas próprias regras quando estas não serviam os seus interesses imperiais. Quantas vezes não ocorreu já isto ao longo da História?

- O imperialismo alemão-francês
Logo a seguir PL revela quem violou as regras do Tratado da União Europeia: «Mas não foi o que foi feito, em parte em resultado de arrogância [...] mas sobretudo por causa do poder político dos bancos franceses e alemães. É preciso lembrar que na altura havia três franceses na liderança do Banco Central Europeu (BCE) – Jean-Claude Trichet – do FMI – Dominique Strauss-Kahn – e de França – Nicolas Sarkozy. Estes três franceses quiseram limitar as perdas dos bancos franceses. [...] Ou seja, o que começou por ser uma crise bancária que deveria ter unido a Europa nos esforços para limitar os bancos, acabou por se transformar numa crise da dívida que dividiu a Europa entre países credores e países devedores. E em que as instituições europeias funcionaram como instrumentos para os credores imporem a sua vontade aos devedores. Podemos vê-lo claramente em Portugal: a troika (de credores da zona euro e FMI) que desempenhou um papel quase colonial, imperial, e sem qualquer controlo democrático, não agiu no interesse europeu mas, de facto, no interesse dos credores de Portugal. E pior que tudo, impondo as políticas erradas. Já é mau demais ter-se um patrão imperial porque não tem base democrática, mas é pior ainda quando este patrão lhe impõe o caminho errado [...]».
    Portanto: os «bancos franceses e alemães» têm o poder político necessário para colocar as «instituições europeias» a funcionar como «instrumentos» que impõem a vontade aos países devedores.
    Vale a pena gastar algum tempo a ler o seguinte texto: «Em França, a dominação da "oligarquia financeira" [...] adoptou uma forma apenas um pouco diferente. Os quatro bancos mais importantes gozam não do monopólio relactivo, mas "do monopólio absoluto" na emissão de valores. De facto, trata-se de um "trust dos grandes bancos". E o monopólio garante lucros monopolistas das emissões. Ao fazerem-se os empréstimos, o país que os negoceia não recebe habitualmente mais de 90 % do total: os restantes 10 % vão parar aos bancos e demais intermediários. O lucro dos bancos no empréstimo russo-chinês de 400 milhões de francos foi de 8%; no russo (1904) de 800 milhões, foi de 10%; no marroquino (1904) de 62,5 milhões, foi de 18,75%. O capitalismo, que iniciou o seu desenvolvimento com o pequeno capital usurário, chega ao fim deste desenvolvimento com um capital usurário gigantesco. "Os franceses são os usurários da Europa" -- diz Lysis».
    Trata-se de um excerto da famosa obra «O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo» de Vladimir Ilitch Lenine. Excerto que exemplifica, precisamente, o domínio imperial da «oligarquia financeira» sobre países devedores. Em geral, devedores à força porque coagidos aos empréstimos (ver o que dissemos sobre os empréstimos que franceseses e ingleses fizeram à Tunísia e Egipto em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/12/a-primavera-arabe-parte-iia.html e http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/01/a-primavera-arabe-parte-ii-egipto.html ). Ontem como hoje, nada de novo à face da Terra; isto é, à face do capitalismo.
    PL também reconhece o domínio imperial, «quase colonial». Pois é. Como já argumentámos várias vezes, trata-se do imperialismo alemão-francês, de exploração neocolonial. Faz parte do neocolonialismo a asociação submissa dos grandes capitalistas do país neocolonizado aos interesses e ditames das oligarquias estrageiras neocolonizadoras.
    É claro que PL revela várias ingenuidades; como, por exemplo, subsumir um poder imperial com «controlo democrático» ou a existência de um «interesse europeu». Mas aquilo que acertadamente caracteriza como domínio imperial e «quase colonial» é louvável. 
    Noutras passagens PL complementa a ideia, como nesta: «o que aconteceu foi que a zona euro passou a ser gerida em função do interesse dos bancos do centro -- ou seja, França e Alemanha -- em vez de ser gerida no interesse dos cidadãos no seu conjunto». Deparamos aqui com o diagnóstico claro da submissão dos cidadãos da UE ao «centro» imperialista alemão-francês.
    PL também concorda com uma afirmação da entrevistadora de que «os resgates a Portugal e Grécia foram sobretudo resgates disfarçados aos bancos alemães e franceses para os salvar dos empréstimos irresponsáveis». Os «empréstimos irresponsáveis» poderão ser empréstimos a especuladores financeiros (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/02/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_22.html) ou empréstimos forçados em que o país credor convence o país devedor a assumir um empréstimo, por exemplo na construção de infra-estruturas ou aquisição de equipamento sofisticado (submarinos, por exemplo). O «convencimento» fica a cargo da burguesia do país devedor, a troco de luvas pelo bom convencimento do respectivo povo. Portugal também teve disso. Sobre este tipo de empréstimos recomendamos vivamente a leitura do livro de John Perkins, «Confessions of an Economic Hit Man», Plume, 2005 (de muito baixo custo e descarregável grátis da Internet).

- No imperialismo alemão-francês o comparsa dominante é o alemão. E a CE o seu tentáculo.
Diz PL: «E o maior credor, a Alemanha, assumiu um ponto de vista particular. Claro que isto não absolve a Comissão, porque antes de mais, muitos responsáveis da Comissão, como Olli Rehn [responsável pelos assuntos económicos e financeiros], partilham a visão alemã. Depois, porque o papel da Comissão é representar o interesse europeu, e o interesse europeu deveria ter sido tentar gerar um consenso de tipo diferente, ou pelo menos suscitar algum tipo de debate. Ou seja, a Comissão poderia ter desempenhado um papel muito mais construtivo enquanto alternativa à linha única alemã»
    Para além do reconhecimento do domínio imperialista alemão, voltamos a deparar com a visão idealista de um abstracto «interesse europeu» que a CE poderia consubstanciar em oposição ao interesse e poder imperial alemão!
    Noutra parte da entrevista diz assim PL: «Houve orientação política, só que vinha da Alemanha. E a Alemanha aconselhou mal, em parte por causa da forma particular como os alemães olham para a economia, por causa da ideologia conservadora, e porque agiu no seu próprio interesse egoísta de credor em vez de no interesse europeu alargado. A UE sempre funcionou com a Alemanha integrada nas instituições europeias, mas aqui, a Alemanha tentou redesenhar a Europa no seu próprio interesse. É por isso que temos uma Alemanha quase-hegemónica, o que é muito destrutivo».
    Quando PL diz «Alemanha» devemos ler «o grande capital alemão». E o «Alemanha aconselhou mal» depende da perspectiva. Do ponto de vista de «o grande capital alemão» a «Alemanha» aconselhou bem. Quanto ao «Alemanha tentou redesenhar a Europa no seu próprio interesse» é evidente que o imperialismo alemão não só tentou mas tem vindo efectiva e obviamente a neocolonizar os países mais fracos da Europa no seu interesse. Com o apoio da França. E, como tem vindo a ser plenamente demonstrado, não só da França de Sarkozy como da França de Hollande. Uma França que, pelo domínio da extrema-direita e aliança submissa à Alemanha, evoca os tempos da França de Vichy. Na França como em Portugal e noutros países os partidos da Internacional dita Socialista sempre estiveram e estão ao serviço do grande capital.

- A falsa ideia de uma UE como comunidade voluntária entre iguais
Em dada parte da entrevista PL faz a seguinte afirmação (chavetas nossas): «{A política imposta pelos alemães} Transformou a natureza da UE, que passou de uma comunidade voluntária entre iguais para esta relação hierárquica entre credores exercendo o seu controlo sobre os devedores. Uma coisa é Portugal e outros, numa altura de desespero, aceitarem termos injustos, outra completamente diferente é aceitar numa base duradoura este sistema anti-democrático. Se nas próximas eleições for eleito um Governo diferente do actual e o sucessor de Olli Rehn for à televisão dizer que é preciso manter exactamente as mesmas políticas do governo anterior, naturalmente que os portugueses vão ficar escandalizados porque acabaram de eleger um novo Governo, pessoas diferentes e quem diabo é este comissário europeu não eleito que me diz que decisões sobre despesas e receitas é que tenho de tomar? Isto não é politicamente sustentável».
    Passemos por alto a formulação idealista de «Portugal» aceitar «termos injustos». É sempre o grande capital português que aceita termos injustos e usa as máquinas de controlo das consciências atrasadas para as convencer que os termos são justos. E um novo governo português do «arco da governação» pode impunemente (ou quase) continuar a fazer isso. Apesar de PL assumir e bem que muitos portugueses poderão interrogar-se «quem diabo é este comissário europeu não eleito que me diz que decisões sobre despesas e receitas é que tenho de tomar?». Concentremo-nos na primeira parte, sublinhada, da declaração.
    A UE nunca foi nem uma comunidade voluntária nem uma comunidade entre iguais. Que os países que fazem parte da UE não são iguais -- e o que importa aqui é avaliar a capacidade económica e as relações de dependência económica -- é de uma evidência gritante. Quanto ao voluntariado, assinale-se que, no caso de Portugal, não houve qualquer referendo sobre a entrada na CEE-UE e que, como muito bem analisou Álvaro Cunhal no seu livro «A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril», a entrada de Portugal na CEE foi feita por Mário Soares e PS, com apoio de toda a direita; para consolidar e aprofundar a contra-revolução, contra «Abril», de restauro dos monopólios e latifúndios, que nos conduziu onde estamos.
    Já vimos, por outro lado, que não se trata de uma simples «relação hierárquica entre credores exercendo o seu controlo sobre os devedores», decorrente de regras democraticamente determinadas, regulando o funcionamento hierárquico. Trata-se de um domínio imperial, em que o diktat dos imperiais credores é imposto aos devedores à força da forma que o próprio PL noutra parte da entrevista qualifica de «quase colonial».

- Depois do programa da troika, Portugal está agora pior do que estava
Diz PL: «As pessoas elogiam muito o sucesso do programa português, mas basta olhar para as previsões iniciais para a dívida pública e ver a situação da dívida agora para se perceber que não é, de modo algum, um programa bem sucedido. Portugal está mais endividado que antes por causa do programa, e a dívida privada não caiu. Portugal está mesmo em pior estado do que estava no início do programa. [...] Há quem pense que o que eu digo é uma loucura, alegando que os mercados estão a emprestar a Portugal a taxas muito baixas e que por isso a crise acabou, blá, blá, blá, mas isso simplesmente não é verdade. [...] Neste momento tem havido entrada de liquidez, que está a tapar os problemas subjacentes, mas essa liquidez pode inverter-se se o BCE, como penso que vai acontecer, nos desiludir da ideia de que poderá haver um Quantitative Easing (injecção de liquidez). Mas a situação vai mudar na mesma, porque as taxas de juro americanas vão subir, o que afectará todas as taxas de juro no mundo inteiro, incluindo em Portugal»
    É esta realidade, que PSD-CDS têm sistematicamente deturpado, que temos vindo constantemente a esclarecer com base em dados sólidos.

- Soluções reformistas
Na entrevista PL não deixa de propor algumas soluções reformistas para evitar futuras «crises do euro», algumas também propostas pelos nossos políticos: «BCE [como] credor de último recurso dos governos [...] em vez do actual mecanismo temporário e condicional [OMT]»; «restaurar a regra do “no bailout”»; «Comissão Europeia [...] muito mais controlada no plano democrático»; «ligar o debate em Bruxelas com o que está a acontecer nos Estados membros». Algum benefício poderia talvez decorrer de tais medidas... até à próxima crise. A questão relevante é que nenhuma destas medidas toca no essencial: o poder imperial do capitalismo alemão-francês. PL também propõe «A longo prazo, será preciso criar um tesouro da zona euro, com algum poder de tributação fiscal e de contrair crédito, que responda democraticamente perante o Parlamento Europeu e os parlamentos nacionais»; uma proposta do tipo «fuga p’rá frente» que só iria consolidar ainda mais o imperialismo alemão-francês e, provavelmente, afastar a Inglaterra da UE. 

*    *    *

    PL termina a entrevista da seguinte forma: «É preciso ligar o debate em Bruxelas com o que está a acontecer nos Estados membros. Porque este tipo de sistema quase imperial sem controlo democrático não é sustentável. Isto não vai mudar com as próximas eleições. Mas vai ser preciso, nos próximos cinco anos, construir uma democracia europeia a sério, mudar a natureza da Europa. Ou seja, precisamos de uma Primavera Europeia.»
    Não acreditamos que a construção de «uma democracia europeia a sério» vá acontecer. E muito menos por eleições. Quanto a isto, parece que o próprio PL não tem dúvidas (pelo menos quanto às próximas eleições). Não existe um único exemplo na História de um domínio imperial reformado por eleições. E, se por «Primavera Europeia» PL entende apenas protestos e sublevações por direitos democráticos em alguns países, deixando intocável o sistema capitalista e a ligação à UE -- e deve ser isso que PL como economista neoclássico entende --, então, uma vez digeridos em curto tempo os novos «direitos» pelos políticos e burocratas ao serviço do «centro», voltaremos a ter mais do mesmo.

[1] Isabel Arriaga e Cunha, «Ajudas a Portugal e Grécia foram resgates aos bancos alemães», Público, 11/5/2014. Aparentemente, Philippe Legrain divulga na entrevista opiniões que expressa em maior detalhe no seu livro “European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess”.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Daniel Bessa, o amante das multinacionais

Portugal dispõe de uma riqueza considerável de economistas lamentáveis. Formados e conformados na escolástica da economia convencional, em particular da última versão neoliberal, a sua submissão aos interesses do grande capital é maiúscula. Além disso, o escolasticismo anquilosante que os caracteriza é claramente inibidor de qualquer sentido crítico. Seguem cegamente o que há de mais ultrapassado na escolástica neoliberal com um soberano desprezo e ignorância por qualquer «dissidência» da sua «ciência». Quando o grande capital diz «mata!» logo aparecem vários destes economistas lamentáveis a dizer «esfola!». Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque são epígonos recentes desta classe. Um outro exemplar da mesma classe é João César das Neves, comentador querido dos media. Numa entrevista na TSF teve a lata de dizer que «a maior parte dos pensionistas estão a fingir que são pobres» e que «subir o salário mínimo é estragar a vida aos pobres». (Uma «carta aberta a um mentecapto» analisando este exemplar correu na web.)
    Mas a «doença» escolástico-inibidora não afecta só estes exemplares da Direita. De facto, no que a eles se refere não se trata de uma doença; é o corolário da sua participação assumida dos interesses económicos do grande capital. Mas que dizer quando os mesmos sintomas estão presentes em figuras que alguns conotam com a «esquerda», como é o caso de Daniel Bessa, professor universitário e figura conhecida do PS? Será porque é também administrador e consultor de várias empresas? Configurando, talvez, um lambe-capital não-assumido?
    Desde já uma chamada de atenção: economistas desinibidos, que não abdicam de usar o cérebro para colocar perguntas incómodas e propôr respostas inovadoras, podem encontrar-se em vários quadrantes do pnsamento económico. Um exemplo é o keynesiano Steve Keen cuja obra analisámos num conjunto de artigos anteriores. Um outro exemplo é Philippe Legrain, ex-conselheiro de Durão Barroso e economista convencional, de que analisaremos uma entrevista num próximo artigo. Como estes muitos outros exemplos podem ser apresentados, de economistas que usam de forma inteligente os cerca de 20 W de energia diários gastos pelo cérebro. Infelizmente o artigo que calhou lermos no Expresso de 15 de Junho de 2013, da autoria de Daniel Bessa, não nos permite dizer o mesmo do seu autor.
    Com o título «As Multinacionais» começa assim o artigo: «As multinacionais são um dado das economias modernas. Em si mesmas, não- são boas nem são más; são o que são.» Esta das «economias modernas» não lembra ao diabo. Na época histórica actual existem essencialmente dois tipos de economias: capitalista, baseada na propriedade privada dos meios de produção, e socialista, baseada na propridade social dos meios de produção. Não existe nenhuma categoria de «economia moderna». Na realidade, o adjectivo «moderno» -- muito na moda, tal como o substantivo «modernidade» -- não diz nada de profundo sobre a economia (o tipo de propriedade dos meios de produção) e, consequentemente, sobre o tipo de relações sociais que se formam e o móbil da sua formação (prossecução do lucro ou satisfação de necessidades sociais?). É usado muitas vezes com o significado de «avançado». Diz-se, por exemplo, «economia capitalista moderna» no sentido de «economia capitalista avançada». Mas «moderno» e «modernidade» escondem um sentido perverso: a ideia de que uma série de modernidades de espavento são testemunho de um status social e político elevado. Assim, o Qatar, com as suas torres espantosas, os seus arranha-céus topo de gama, as suas pistas de desporto de inverno em pleno deserto, é a quintessência da modernidade; não importa que tenha um regime brutalmente autoritário e obscurantista, e que explore como escravos centenas de milhares de emigrantes asiáticos e africanos. (Quando aqui dizemos escravos não se trata de uma força de expressão.) A Alemanha de Hitler também exibia espantosas modernidades, como as primeiras auto-estradas do mundo; sabe-se o que era do ponto de vista político e social. Usando a perspectiva de Daniel Bessa, Cuba, por exemplo, que nessa perspectiva tem a infelicidade de não ter multinacionais, não é moderna; o facto de ter saúde e habitação grátis, não ter desemprego, ter uma enorme participação popular nas decisões políticas, ter um elevado índice de desenvolvimento humano (ONU, 2012), superior ao de países como México, Sérvia, Brasil, Turquia, etc., é irrelevante. Para Daniel Bessa só há uma economia moderna: a capitalista e com multinacionais. Quanto ao «Em si mesmas, [as multinacionais] não- são boas nem são más; são o que são» poder-se-ia tomar como uma risível verdade de La Palice, aceitável como algo óbvio pelo leitor superficial, não fosse a perversa mensagem subliminar: a ideia de que não há nada a fazer senão aceitar as multinacionais porque elas são o que são. Inevitáveis. Como as moscas.

    Mas depois de ter afirmado que as multinacionais «não- são boas nem são más», logo a seguir Daniel Bessa contradiz-se ao dizer: «Caso a caso, dependendo do tema em discussão, cada uma delas poderá apresentar-se mais como activo ou como passivo, como oportunidade ou como ameaça, do lado da solução ou do lado do problema.» Ora, algo que se pode apresentar como oportunidade ou como ameaça, como solução ou como problema (Bessa não diz de quê), e não é bom nem é mau, é, no mínimo, confuso. Mais à frente Daniel Bessa aprofunda (e resolve) a contradição ao dizer: «Não ignoro o quanto Portugal deve a muitas multinacionais. A Volkswagen Autoeuropa constituirá um ícone desta dívida, tendo contribuído em muito [...] para alterar a indústria portuguesa, nos últimos vinte anos. [...] a ninguém podendo escapar os contributos que nos estão a ser dados por empresas como a Siemens e a Nokia-Siemens, ou o mérito de uma iniciativa como a tomada, semanas atrás, por uma empresa como a Cimpor [...]» Agora, sim, Daniel Bessa começa a confessar-se. As multinacionais são boas já que Portugal lhes deve muito e estão a dar muitos contributos. Também já se percebeu que Daniel Bessa não está a pensar em quaisquer multinacionais, mas sim em grandes conglomerados de perfil monopolista: o grupo Volkswagen (marcas Volkswagen, Audi, Seat, Škoda, Bentley, Bugatti, Lamborghini, Porsche, Ducati, Scania e MAN) é um dos maiores fabricantes de carros a nível mundial e o maior da Europa; a Siemens é o maior (gigantesco!) conglomerado a nível mundial em dispositivos eléctricos e electrónicos em muitas áreas de aplicação (electrodomésticos, saúde, energia, infraestruturas, automação, máquinas industriais, etc.); a CIMPOR é actualmente um conglomerado de dimensão mundial da área dos cimentos, com grande parte de capitais estrangeiros.
    Portanto, Daniel Bessa acha que as multinacionais são boas. Não apresenta um único exemplo de uma má multinacional. Para Daniel Bessa, Portugal deve-lhes muito e estão a dar muitos contributos ao país. Até parece que as multinacionais são entidades altruístas que decidiram dar muitos contributos a «Portugal», ao «país». Sendo Daniel Bessa um professor de economia esperar-se-ia, pelo menos, uma curta frase dizendo quanto dos lucros destas multinacionais foram para o estrangeiro e quanto foi pago ao Estado português e aos trabalhadores; e, já agora, alguma comparação da prática das multinacionais em Portugal e em outras paragens. Uma comparação salarial, por exemplo, mesmo que muito sucinta, seria certamente de interesse. (Embora colher estes dados dê trabalho.) Nada disso. É como se Daniel Bessa desconhecesse a existência de lucros, salários, capitalistas, investidores e trabalhadores. Surpreendente para um professor de economia!
    Logo a seguir diz esta coisa espantosa: «Não se ouvirá da minha boca uma palavra contra nenhuma das multinacionais que operam no nosso país.» Agora a confissão é clara. O amor de Daniel Bessa por todas as multinacionais que operam em Portugal é afirmado com todas as letras. À sua confissão de amor acrescenta depois umas boas intenções de que o «Governo e [...] opinião pública» devem estar informados «sobre o modo como cada multinacional se posiciona, de múltiplos pontos de vista, para a resolução dos nossos problemas.» Esta de cada multinacional informar o Governo e a opinião pública (!) de como, segundo «múltiplos pontos de vista» (!), as multinacionais irão contribuir «para a resolução dos nossos problemas» é de ir às lágrimas! O amor de Daniel Bessa pelas multinacionais afirma-se aqui como mais do que amor. É um amor cego.
    Daniel Bessa prossegue com o seguinte texto: «Não me peçam que fique grato quando os centros de decisão são mudados para Madrid. Não me peçam que fique grato quando os representantes de nível mais elevado em Portugal são desqualificados (com tudo o que isso implica). Não me peçam que fique grato quando o país é visto sobretudo como um centro de custos (que se pretendem os mais baixos possível) ou como um mero mercado (onde se procura vender o máximo, ao preço mais elevado possível). Não me peçam que fique grato quando a força de trabalho usada internamente é desqualificada e pior remunerada. Não me peçam que fique grato quando as compras são feitas cada vez mais a fornecedores estrangeiros, com progressivo afastamento dos fornecedores nacionais. Não me peçam que fique grato quando a resposta é sistematicamente não, ao pedido de envolvimento em qualquer das nossas causas, pública ou da sociedade organizada.»
    Daniel Bessa vê-se aqui a si próprio como um avaliador das decisões das multinacionais; vê-se como um Daniel Bessa a quem pedem que se pronuncie sobre decisões das multinacionais. E a única pronúncia que produz é de que não está «grato». Não sabemos quem pede a avaliação de Daniel Bessa: o Governo, a opinião pública, as próprias multinacionais? Mas uma coisa sabemos: é que para as multinacionais e seus associados no Governo a decisão puramente moral de Bessa, a sua ausência de sentimento «gratificante», é totalmente irrelevante.
    Note-se que aqui Daniel Bessa reconhece -- mas não é isto trivialmente reconhecido por muitos trabalhadores que não são professores de economia? -- que as multinacionais, os grandes conglomerados monopolistas, mudam-se para outras paragens mais prometedoras (menor custos de mão-de-obra, menos direitos e obrigações fiscais) sempre que querem, desqualificam pessoal de salários elevados sempre que as razões do lucro impõem, bem como vendem ao preço mais elevado possível, pagam aos piores salários possíveis, substituem fornecedores nacionais por outros que lhes são mais vantajosos e, finalmente -- surpresa das surpresas -- estão-se a marimbar para «qualquer das nossas causas, pública ou da sociedade organizada.»
    Daniel Bessa reconhece isso. Reconhece a existência daquelas características que são próprias do capitalismo, mesmo que não «moderno». Mas também reconhece que as multinacionais são boas. Reconhece nelas enormes virtudes para Portugal, para o país. Que «país» é esse que colhe sempre benefícios das multinacionais, enquanto «pessoal de salários elevados», «trabalhadores» e «fornecedores nacionais» podem não colher? Bessa pudicamente não diz. Dizemo-lo nós. É a pequeníssima parte da população constituída pelos grandes capitalistas associados às multinacionais. É essa a parte de que Daniel Bessa gosta, embora pudicamente o esconda. Quanto aos outros, Bessa não tem nada a oferecer, do alto da sua sapiência económica, senão mostrar-se não grato («não me peçam que fique grato»!) por as multinacionais fazerem certas malfeitorias que ele bem conhece. As do costume. Ele não está contra as multinacionais, contra os grandes conglomerados monopolistas que controlam Portugal -- de facto, ama-os -- mas fica pesaroso por eles, em busca do lucro, se poderem mudar para outras paragens, desqualificarem pessoal, venderem ao preço mais elevado possível, pagarem aos piores salários possíveis, substituirem fornecedores, etc. Isto é, fica pesaroso por as multinacionais serem o que são: que bom seria se houvesse capitalismo moderno sem os males do capitalismo moderno! O pesar de Bessa, talvez muito comovente para os seus pares, é totalmente hipócrita -- Bessa sabe perfeitamente que multinacionais sem as malfeitorias que aponta não existem -- e só pode ser entendido como uma manifestação de má consciência. De qualquer forma, também para os trabalhadores portugueses o pesar de Bessa é totalmente irrelevante.
    Que miséria de pensamento económico de um professor universitário de economia e ainda por cima socialista!

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Marxismo e Ciência. I – Introdução

Atentemos no seguinte texto:
   
«O motivo do lucro, acrescentado à competição entre capitalistas, é o responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização de capital que conduzem a depressões cada vez mais severas. A competição ilimitada conduz a um enorme desperdício de mão-de-obra e à mutilação da consciência social dos indivíduos [...]
Estou convencido que só há UMA maneira de eliminar estes graves males, nomeadamente o estabelecimento duma economia socialista acompanhada dum sistema educacional orientado para fins sociais. Numa economia desta espécie, os meios de produção são propriedade da própria sociedade e utilizados dum modo planificado. Uma economia planificada, que ajustasse a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a fazer-se entre os que pudessem trabalhar e garantiria meios de vida a todos os homens, mulheres e crianças.»

    Este texto não é de Marx, nem de Engels nem de qualquer outro marxista notório. É de Albert Einstein, cientista bem conhecido.
   Trata-se de um excerto do artigo que Einstein escreveu em 1949 com o título de «Mas Socialismo Porquê?» ([1]). E escreveu-o não para qualquer publicação professoral ou de «gente fina» mas para uma revista do movimento operário americano ([2]). Em 1949 vivia-se nos EUA em plena histeria anti-comunista do início da guerra fria, incendiada pelo senador Joseph McCarthy, criador do Comité de Actividades Anti-Americanas de combate à «subversão comunista». Einstein, porém, não teve dúvidas em defender o socialismo no citado artigo, terminando o artigo do seguinte modo:
   
«Nesta época de transição que é a nossa é do mais alto significado que sejam bem claros os objectivos e os problemas do socialismo. Como nas circunstâncias actuais a discussão livre e sem obstáculos destes problemas está sujeita a um tremendo tabu, considero a fundação desta revista um serviço público da maior importância.»
   
    Einstein, além de cientista, era cidadão de corpo inteiro, sem palas nos olhos limitadoras de atenção exclusiva à sua área de especialização. São dele as seguintes palavras dirigidas aos que trabalham em ciência ([3]):
   
«A preocupação com o homem e o seu destino deve ser sempre o principal interesse de todos os avanços da técnica. Nunca se esqueçam disto quando estiverem às voltas com os vossos diagramas e equações.»
   
    Einstein opôs-se à bomba atómica. Opôs-se também à sentença de Julius e Ethel Rosenberg, acusados de serem espiões ao serviço da URSS e como tal executados em Junho de 1953, sem qualquer evidência no caso de Ethel; como medida puramente aterrorizante pelo facto de serem comunistas; outros espiões posteriores de maior gabarito não foram executados. Na altura Einstein escreveu a favor do casal Rosenberg ao presidente Truman. Ainda na Alemanha, em 1919, Einstein teve a coragem de assinar um telegrama pedindo o indulto do dirigente comunista Eugen Leviné, líder da República Soviética Bávara, preso e mais tarde executado pelas tropas encabeçadas pelos futuros dirigentes nazis Rudolf Hess, Ernst Röhm e Heinrich Himmler enviadas pelos sociais-democratas alemães para massacrar as milícias operárias.
    Era Eintein marxista e comunista? É impossível dizer. Algumas frases do citado artigo (e de outros trabalhos) deixam supor que conhecia algo das teses marxistas, embora outras passagens evidenciem afastamento do marxismo ([5]). Na monografia [3] lê-se o seguinte: «O FBI tinha um ficheiro desde 1940 com cerca de 1.500 páginas sobre Einstein, considerado “elemento subversivo”, onde constava nomeadamente que “Einstein foi membro, patrocinador e simpatizante de 34 frentes comunistas entre 1937 e 1954”. O infame senador McCarthy considerava Einstein “inimigo da América”. Outros diziam simplesmente que Einstein era ingénuo em política. Não é essa a opinião de John Stachel, que editou uma colectânea com artigos de Einstein, onde, discordando da ideia de “ingenuidade”, elogia, pelo contrário, a habilidade de Einstein para meter a direito por entre “complicações inextricáveis até ao que considerava ser o cerne da questão”.»
*    *    *
    Depois de um período de expansão do socialismo, a implosão em 1989 da URSS e da «Europa de Leste», e a evidente deriva da China para o capitalismo, voltaram a colocar na ordem do dia, como no tempo de Einstein, «a discussão livre e sem obstáculos» do marxismo e do socialismo sujeita «a um tremendo tabu». Com esta diferença, porém: enquanto do pós-guerra até meados dos anos setenta o «tabu» era agressivamente imposto por um capitalismo em recuo, face a um socialismo triunfante, actualmente um capitalismo triunfante tem procurado inculcar a ideia de que o marxismo e o socialismo são ideias «ultrapassadas», moribundas ou mortas.
    Deu brado, em 1992, o livro do «cientista e economista político» Francis Fukuyama, intitulado «O Fim da História e o Último Homem» onde defende que o capitalismo seria o apogeu da evolução humana, o «Fim da História», indo perdurar eternamente, enquanto o marxismo estaria morto. Fukuyama foi contribuidor da «Doutrina Reagan» e é figura de proa do chamado «neoconservadorismo»... Designação, entre outras, de velhas doutrinas bolorentas, destinadas a justificar a exploração do homem pelo homem, servidas em novas embalagens com o lacinho de enfeite dado pelos prefixos «neo» ou «pós». Para voltar a enganar o incauto.
    A ideia de perenidade do capitalismo é, hoje em dia, sustentada sem contestação por praticamente todos os meios de comunicação social. Também é constantemente martelada a ideia de que o socialismo é uma utopia. Veja-se, por exemplo, o artigo do «filósofo político» da nossa praça, Pulido Valente, cheio de prosápia, que comentámos em [6].
    Perenidade do capitalismo, morte ou irrelevância do marxismo, são ideias que granjeiam, por enquanto, apoio em grande parte da população, incluindo trabalhadores, e que se alimentam em doses maciças nos erros e aberrações -- reais e imaginários -- cometidos em países socialistas. Apoiam-se, também, nas políticas de embuste da social-democracia, que tem conseguido ocultar de grandes massas de trabalhadores, em particular os de «colarinhos brancos», a consciência da natureza exploradora do capitalismo, difundindo a ideia de que já não existe proletariado e burguesia -- apenas uma homogénea classe média  que partilha interesses comuns e reivindicações comuns --, e de que é possível reformar o capitalismo neo-liberal e restabelecer, senão um «Estado Social», pelo menos um paradisíaco «Estado de Participação» ([7]). Causas e ideias que também têm alimentado desconcertos de muitos partidos de esquerda incluindo os comunistas.
*    *    *
    Está o marxismo morto? Se o marxismo fosse apenas uma mera doutrina, um mero conjunto de ideias brotadas dos cérebros de alguns «iluminados», provavelmente já estaria morto e enterrado. Como muitas outras doutrinas do passado. Mas o marxismo não é nada disso. O marxismo é uma metodologia científica de análise da realidade social, com vista à sua transformação progressista. O marxismo está para os estudos sociais como o darwinismo está para a biologia. Na realidade, a metodologia de análise marxista tem, como veremos, muitos pontos em comum com a metodologia darwinista.
    Sobre o marxismo pronunciou-se assim o médico e revolucionário Ernesto «Che» Guevara ([6]):
   
«[...] é preciso introduzir aqui um posicionamento geral diante de um dos elementos mais controvertidos do mundo moderno: o marxismo. Nossa posição quando nos perguntam se somos ou não marxistas é a mesma que teria um físico a quem perguntassem se é “newtoniano”, ou um biólogo indagado se é “pasteuriano”.
Existem verdades tão evidentes, tão incorporadas ao conhecimento dos povos, que já se tomou inútil discuti-las. Deve-se ser “marxista” com a mesma naturalidade com que se é “newtoniano” em física ou “pasteuriano” em biologia, considerando que, se novos factos determinam novos conceitos, nunca perderão sua parte de verdade os que já aconteceram. É o caso, por exemplo, da relatividade einsteiniana ou da teoria dos quanta de Max Planck com relação às descobertas de Newton; isso, contudo, absolutamente nada tira da grandeza do sábio inglês. Foi graças a Newton que a física pôde avançar até atingir os novos conceitos de espaço. O sábio inglês foi o degrau necessário para isso.
    Podem-se apontar em Marx, pensador e pesquisador das doutrinas sociais e do sistema capitalista que lhe coube viver, determinadas incorrecções. Nós, os latino-americanos, podemos, por exemplo, não concordar com sua interpretação de Bolívar ou com a análise que ele e Engels fizeram dos mexicanos, inclusive admitindo determinadas teorias das raças e nacionalidades hoje inadmissíveis. Mas os grandes homens, descobridores de verdades luminosas, vivem apesar de suas pequenas faltas, e estas servem apenas para nos demonstrar que são humanos, isto é, seres que podem incorrer em erros, mesmo com a clara consciência da grandeza atingida por esses gigantes do pensamento. É por isso que reconhecemos as verdades essenciais do marxismo como incorporadas ao acervo cultural e científico dos povos e o tomamos com a naturalidade que nos dá algo que já dispensa discussões.
     Os avanços na ciência social e política, como em outros campos, pertencem a um longo processo histórico cujos elos se encadeiam, somam-se e se aperfeiçoam constantemente. Inicialmente havia uma matemática chinesa, árabe ou hindu; hoje a matemática não tem fronteiras. Em sua história, cabe um Pitágoras grego, um Galileu italiano, um Newton inglês, um Gauss alemão, um Lobatchevski russo, um Einstein, etc. Da mesma forma, no campo das ciências sociais, desde Demócrito até Marx, uma longa série de pensadores acrescentaram suas pesquisas originais e acumularam um corpo de experiências e de doutrinas.
    O mérito de Marx é que produz imediatamente na história do pensamento humano uma mudança qualitativa; interpreta a história, compreende sua dinâmica, prevê o futuro, mas, além de prevê-lo, e aí cessaria sua obrigação científica, expressa um conceito revolucionário: não basta interpretar a natureza, é preciso transformá-la. O homem deixa de ser escravo e se converte em arquitecto de seu próprio destino. Nesse momento, Marx converte-se em alvo obrigatório de todos aqueles que têm interesse especial em manter o velho, da mesma forma que ocorrera antes a Demócrito, cuja obra foi queimada pelo próprio Platão e seus discípulos, ideólogos da aristocracia esclavagista ateniense.»
   
    Marx e Engels, pela primeira vez, propuseram, aplicaram e testaram uma metodologia científica de análise dos fenómenos históricos e sociais: o materialismo dialéctico. Os que trabalham nas ciências naturais são, na sua área de trabalho, espontaneamente materialistas -- admitem a existência de uma realidade concreta fora do cérebro humano -- e dialécticos -- sabem que na natureza não há categorias fixas, imutáveis, mas, pelo contrário, tudo está em permanente modificação. Mas esta metodologia que é «instintiva» e passa despercebida nas ciências da natureza, de tal forma está enraizada na prática experimental -- os cientistas da natureza praticam o materialismo dialéctico geralmente sem o saberem e por vezes até negando que são materialistas --, está longe de ser evidente na análise dos fenómenos sociais. Ainda hoje em dia abundam os historiadores que encaram a história como um conjunto de decisões individuais, subjectivas, de personalidades eminentes. É a mesma atitude dos meios de comunicação que se limitam a apresentar notícias políticas como factos avulsos, sem qualquer determinação concreta e conexão objectiva. A história e a política são apresentadas como meros folhetins, como lutas constantes entre «bons» e «maus», sendo os «bons» sempre os mesmos, imutáveis e predestinados.
    Mas, para além da metodologia científica, as contribuições de Marx e Engels são muito mais vastas e imorredoiras, em particular na investigação e esclarecimento de como funciona o capitalismo. «O Capital» de Marx, baseado na metodologia do materialismo dialéctico, inclui uma série de resultados ainda hoje válidos: a teoria do valor; os ciclos de negócios e a tendência da queda da taxa de lucro; a concentração do capital (conforme se assinala em [9], no tempo de Marx as grandes firmas eram uma excepção, o que realça a previsão de Marx que na época parecia improvável); o crescimento do proletariado (conforme se exemplifica em [9] -- um de muitos exemplos possíveis --, em 1820 a percentagem daqueles que nos EUA eram trabalhadores independentes em quintas ou pequenos negócios era de 75%; em 1940 esta percentagem tinha caído para 21,6% e actualmente é menos de 10%); a conversão, no capitalismo, de tudo em mercadorias -- trabalho, natureza, saúde, ciência, arte, etc. -- na busca de lucro. O marxismo ensina a colocar as perguntas certas e a procurar as respostas certas, materialmente determinadas. Concordamos inteiramente com as seguintes afirmações de Michael Parenti em [9]: «Repetidamente descartada como uma “doutrina” obsoleta [10], o marxismo retém uma qualidade contemporânea, já que é menos um corpo de afirmações fixas e mais um método de olhar para além das aparências imediatas, de ver as qualidades internas e as forças que actuam na conformação das relações sociais e de muito da própria história. Conforme notou Marx: “Toda a ciência seria supérflua se as aparências externas e a essência das coisas coincidissem directamente”. De facto, talvez a razão pela qual muita da moderna ciência social parece supérflua é devida ao facto de que se limita a descrever as aparências externas.»
    Quer isto dizer que tudo que os marxistas dizem ou disseram está ou estava correcto? Claro que não. Marx e Engels, juntamente com Lénine, enganaram-se redondamente, por exemplo, quando supuseram que a construção do socialismo começaria pelos países desenvolvidos (Alemanha, França, Inglaterra, etc.). De facto, começou em países bem menos desenvolvidos (Rússia, China, Cuba, Vietname). Para além dos erros -- e nenhum progresso científico é isento de erros --, mesmo os resultados certos têm de ser vistos como verdades relativas, sempre em vias de ser complementadas à luz de novas observações e análises; tal como apontado acima no texto de Che Guevara, a propósito das contribuições de Newton e Max Planck, etc. Marx e Engels não podiam, obviamente, prever os desenvolvimentos posteriores do capitalismo. Coube a Lénine complementar os resultados de Marx e Engels por observações e análises do capitalismo na sua fase superior do imperialismo; a fase do tempo de Lénine. Lenine por sua vez já não assistiu à fase neocolonialista do actual imperialismo. A qualidade relativa da verdade científica, elo de uma cadeia de verdades relativas e provisórias em progressão para uma verdade mais abrangente, também se verifica nas ciências naturais. Einstein também não deixou de cometer alguns erros (por exemplo, quando defendeu a natureza determinística dos fenómenos quânticos) e algumas das suas verdades sabemos agora com segurança que eram relativas e sabemos caracterizar em que medida o eram (por exemplo, a questão da constante cosmológica).
*    *    *
    É a ciência de Marx ainda relevante? Sem qualquer dúvida. Segundo um estudo recente da prestigiada revista Nature ([11]) Karl Marx é o investigador mais influente de sempre, de acordo com um sistema de classificação de citações científicas desenvolvido recentemente por uma equipa de investigadores da Universidade  Bloomington de Indiana, EUA. O sistema dispõe actualmente de classificações de 35.000 investigadores. Marx aparece no topo da área de história, com uma classificação 22 vezes superior à média da área; surge também nos lugares cimeiros na área de economia, com uma classificação 11 vezes superior à média da área. Em comparação, na área de física surge Edward Witten (considerado um dos maiores físicos actuais) com uma classificação 13 vezes maior que a média da sua área. A posição de destaque de Karl Marx foi também divulgada pelo Smithsonian Institute ([12]).
*    *    *
    Em próximos artigos propomo-nos analisar o tema «Marxismo e Ciência». Note-se que, num sentido estrito, o título do tema é inapropriado. É como se disséssemos «Einsteinismo e Ciência». Usamo-lo por facilidade de referência e como concessão àqueles que ainda não sabem ou têm dúvidas de que marxismo «é» ciência.
   
Referências
[1] Albert Einstein, «Mas Socialismo Porquê?», Ed. Afrontamento (1974?).
[2] O artigo "Why Socialism?” foi artigo de abertura da “Monthly Review, an Independent Social Magazine” publicada em Nova Iorque.
[3] Peter D Smith, «Einstein». Editora Texto, 2011.
[4] Citado no livro: Isabel Loureiro, «A Revolução Alemã [1919-1923]», Editora da Universidade Estadual de São Paulo, 2005.
[5] Por exemplo, no trabalho [1] Einstein explica as formações socio-económicas em termos de lutas entre conquistadores e conquistados e não em termos de classes sociais caracterizadas pela sua posição face aos meios de produção. Mas não desconhece totalmente o papel das classes sociais. Noutras partes de [1] Einstein revela também concepções idealistas.
[8] Ernesto Che Guevara «Notas para o estudo da ideologia da Revolução Cubana», Outubro de 1960. In: Che Cuevara «Textos Revolucionários» (4.ª ed.), Global Editora, São Paulo, 2009.
[9] Michael Parenti, “Blackshirts & Reds”, City Light Books, 1997.
[10] O trabalho de Joel Ang, Karl Marx is the "Best Scientist of Them All" (http://www.marxist.com/karl-marx-bes-scientist-of-all.htm, 24/1/2014), expõe de forma pertinente o seguinte: «Há mesmo um portal web dedicado a pulverizar o cadáver do bárbaro barbudo: www.marxisdead.com. Este libelo incessante e implacável contra um homem que morreu há mais de um século é bastante peculiar, e suscita uma importante questão: se o indivíduo está morto e é irrelevante porque razão estão sempre a recordar-nos isso? Não nos recordam incessantemente a irrelevância de Franz Joseph Gall [criador da frenologia do século XVIII, que dizia que a forma do cérebro determinava o carácter, personalidade, etc.], Mikhail Bakunin [destacado anarquista], Martin Fleischmann [defensor da fusão nuclear a frio], e Stanley Pons [idem], pois não? Com escassas excepções as teorias deles desapareceram do discurso público e da pesquisa científica -- sem serem acompanhadas de uma torrente de ataques. A razão deste facto é evidente: as ideias deles foram sistematicamente destruídas pela marcha da ciência e da história».
[11] Richard van Noorden “Who is the best scientist of them all?”, Nature, 6 November 2013, http://www.nature.com/news/who-is-the-best-scientist-of-them-all-1.14108.
[12] Colin Schultz  Karl Marx Is the World’s Most Influential Scholar. When compared on equal footing, Marx stands out above the crowd”, November 6, 2013http://www.smithsonianmag.com/smart-news/karl-marx-is-the-worlds-most-influential-scholar-180947581/#ixzz2sH6xRxoU

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A História Que Ficou Por Contar: Os Khmers Vermelhos

A queda do atroz regime dos khmers vermelhos, em 1979, revelou um dos piores genocídios do século XX. Os media «ocidentais» divulgaram, e bem, em maior ou menor grau, as terríveis imagens desse genocídio. Aproveitaram, contudo, para incutir a ideia de que era só mais uma matança levada a cabo por comunistas. «Esqueceram-se» de dizer que:
   
    - A ideologia dos khmers vermelhos nada tinha de comunista, embora se chamassem a si próprios comunistas;
     - O genocídio praticado pelos khmers vermelhos, que roubou a vida a mais de dois milhões de pessoas, foi antecedido pelo genocídio praticado pelos americanos que roubou a vida a entre 500 mil a 750 mil pessoas. De facto, este último foi causa próxima do primeiro;
   - O fim do genocídio, a libertação do Camboja do pesadelo dos khmers vermelhos, deveu-se, essencialmente, à intervenção dos comunistas vietnamitas;
    - Após a libertação do Camboja os governos dos EUA e do Reino Unido foram, juntamente com a China, grandes apoiantes dos «comunistas» khmers vermelhos. Apoiantes dos assassinos em todos os âmbitos: militar, económico e diplomático.
   
    É sobre estas questões importantes da tragédia cambojana – questões que os media «ocidentais» sempre esconderam do cidadão comum – que nos iremos debruçar.
   
A ideologia dos khmers vermelhos
   
    Comecemos por lembrar que desde os trabalhos de Marx e Engels os comunistas têm colocado como objectivo político essencial o desenvolvimento da actividade produtiva, particularmente da produção industrial, com vista ao maior bem-estar da sociedade como um todo (não só para alguns). Friedrich Engels dizia assim, já em 1847 (ênfase nosso): «Pelo facto de a sociedade retirar das mãos dos capitalistas privados o usufruto de todas as forças produtivas e meios de comunicação, [...] serão eliminadas, antes do mais, todas as consequências nefastas que agora ainda se encontram ligadas à exploração da grande indústria. As crises desaparecerão; a produção alargada que, para a ordem actual da sociedade, é uma sobreprodução e uma causa tão poderosa da miséria, já não será então suficiente e terá de ser alargada ainda muito mais. Em vez de ocasionar a miséria, a sobreprodução assegurará, para além das necessidades imediatas da sociedade, a satisfação das necessidades de todos, e criará novas necessidades e, ao mesmo tempo, os meios para as satisfazer.» ([1]).
    A afirmação de Engels não era uma simples ideia «caída do céu aos trambolhões». Era fruto de muito trabalho de análise histórica e económica; análise comparativa e evolutiva das diversas formações socio-económicas desde os alvores da humanidade: comunismo primitivo (comunidades tribais) --> esclavagismo --> feudalismo --> capitalismo --> socialismo. O socialismo (e o comunismo como fase avançada do socialismo) tal como o conceberam Marx, Engels, Lenine e outros, surge, assim, como uma culminação progressista. Os comunistas (e não só) querem andar para a frente nessa evolução, no sentido do progresso. Os reaccionários querem andar para trás.
    (Assinale-se que os comunistas «querem andar» e, sempre que podem, andam: a URSS deu o maior salto registado na História, na produção material e científica, e nas condições de vida dos trabalhadores, em poucos anos. Pelo contrário, com o regresso ao capitalismo em 1990, a Rússia regrediu. Outros exemplos se podem apontar de progresso real do socialismo face ao capitalismo.)
    Voltemos aos khmers vermelhos. Em que direcção queriam andar e andaram os seus dirigentes?
   Pol Pot, Khieu Sampan e Ieng Sary ([2]) foram os dirigentes máximos dos khmers vermelhos. Encontraram-se em Paris e fundaram em 1951 um círculo marxista de estudantes khmer. Quando, mais tarde, regressaram ao seu país, fundaram o Partido Comunista do Kampuchea (PCK). O círculo marxista era, de facto, um círculo maoísta; Pol Pot sempre se afirmou como admirador de Mao Tsé-Tung.
    Conforme é amplamente demonstrado por declarações e actos dos dirigentes a ideologia dos khmers vermelhos era uma mistura eclética que combinava elementos (de facto, frases soltas) do marxismo, com nacionalismo extremo e xenofobia.
    Na vertente política, defendiam uma sociedade puramente agrária, «anti-industrialista», como a do comunismo primitivo. Para os khmers vermelhos o ideal social eram as tribos das montanhas cambojanas que se encontravam nesse estado. Queriam regredir a esse «[ideal] de uma sociedade totalmente comunista sem perder tempo com etapas intermédias», conforme Pol Pot afirmou aos chineses em 1975.
    Na vertente nacionalista, idealizavam o Império Angkor e consideravam-se «arianos entre os asiáticos», superiores aos vietnamitas e chineses.
    Como se vê, a ideologia do PCK era uma salgalhada extremamente reaccionária; logo, absolutamente anti-comunista.
    Quando os khmers vermelhos tomaram o poder em 1975 deram, de imediato, início à criação da «sociedade comunista»; de repente, sem passar por «etapas intermédias», à boa maneira voluntarista do «comunismo» maoísta. Instauraram em 1975 -- que declararam ser o «Ano Zero» -- uma sociedade sem classes. Isto é, uma sociedade em que todos teriam de ser camponeses, praticando uma agricultura de subsistência como as tribos nordestinas, o ideal de referência dos khmers vermelhos. Nesse imenso salto para trás na História, o maior salto reaccionário que a História regista, os khmers vermelhos foram consequentes ([3]):
     - Fecharam e/ou destruiram fábricas, bancos, hospitais, escolas e universidades;
    - Removeram em massa as populações das cidades (consideradas corrompidas pelo capitalismo) para os campos;
    - Acabaram com todos que tinham educação superior (médicos, engenheiros, professores, juristas, etc.), obrigando-os a trabalhos forçados ou liquidando-os fisicamente em campos de extermínio; o ódio dos khmers vermelhos pelos intelectuais era profundo – os únicos intelectuais possíveis, porque detentores da «verdade», eram os líderes;
    - Profissionais e operários qualificados, considerados uma permanente ameaça ao regime, tiveram sorte idêntica à dos intelectuais;
    - Ieng Sary, por exemplo, «via conspirações e traidores em todo o lado. Conduzia sessões de denúncia que redundavam em histeria colectiva. Jovens esposas denunciavam os maridos sem evidências, crianças denunciavam os pais. Todos os filhos de trabalhadores eram [considerados] revisionistas e membros do KGB soviético.» ([4]);
    - Proibiram tudo que destoasse do comunismo primitivo: dinheiro, música, rádios, televisão, maquinaria, tecnologia;
    - Baniram a religião, a liberdade de escolha de cônjuge, a liberdade de circulação, todos os direitos civis e a liberdade de falar qualquer idioma que não fosse o cambojano.
   
    Nesta parafernália de extremo reaccionarismo – onde não faltou retirar as crianças aos pais logo que atingiam sete anos de idade, a imposição da indumentária diária e de refeições comunais – os «comunistas» khmers vermelhos foram muito mais longe que os mais radicais talibãs.
    No seu delírio xenófobo os khmers vermelhos perseguiram chineses e vietnamitas, levando a cabo campanhas de limpeza étnica. Eis uma peroração de um quadro khmer vermelho a uma multidão ([5]; tradução nossa): «Como sabem, durante o regime de Lon Nol os chineses eram os parasitas da nação. Eles aldrabavam o governo. Faziam dinheiro à custa dos camponeses cambojanos… Agora o Alto Comité Revolucionário quer separar os infiltradores chineses dos cambojanos, para ver que truques têm na manga. A população de cada povoado será separada num sector chinês, num vietnamita e num cambojano. Portanto, se não sois cambojano, levantai-vos e abandonai o grupo. Lembrai-vos que os chineses e vietnamitas têm uma aparência totalmente distinta dos cambojanos».
   
Os primórdios dos khmers vermelhos
   
    Os khmers vermelhos iniciaram actividades guerrilheiras, em meados dos anos sessenta, entre pequenas tribos de montanheses habitando as florestas do nordeste cambojano, nas províncias limítrofes de Ratanakiri, Mondolkiri, Stung Treng, e Kratie. Segundo [6] os núcleos iniciais de Pol Pot e Ieng Sary engrossaram com opositores ao governo de Sihanouk, beneficiando do ressentimento das tribos com medidas governamentais (p. ex., deslocações forçadas impostas pelos plantadores de borracha).
    O principal apoio internacional dos khmers vermelhos provinha da China (armas e munições) e, moderadamente, do Vietname do Norte (RDV-República Democrática do Vietname). O «comunismo agrário» do PCK era ideologicamente próximo do maoísmo e, além disso e mais do que isso, convinha à China ter um contrapeso «à mão» contra os comunistas vietnamitas, cujo aliado principal era a URSS. Recordemos que em 1972 a China abriu as portas aos americanos (visita de Nixon), que ficaram satisfeitíssimos pelas oportunidades de negócio oferecidas e por terem encontrado um inesperado aliado contra a URSS (no âmbito da dissensão sino-soviética). Isso não impediu, porém, que em várias épocas os khmers vermelhos recebessem apoio dos comunistas vietnamitas. Aliás, os khmers vermelhos procuraram mesmo obter apoio da URSS no que não tiveram êxito. (O artigo [7] explica as complexidades da política regional.)
    As tribos que acolheram os khmers vermelhos estavam num estado primitivo. Segundo um testemunho de 1978 do próprio Pol Pot os montanheses eram «indivíduos completamente analfabetos sem a menor ideia de cidades, automóveis e parlamento». Várias entrevistas de montanheses recrutados para a guerrilha no período de 1964 a 1970 (apresentadas em [6]), são reveladoras do «trabalho ideológico» dos khmers vermelhos, combinando noções simplistas e a coerção aterrorizadora:
    - «No início as pessoas estavam muito interessadas na ideologia de Pol Pot [...] Sabíamos que os khmers vermelhos queriam construir uma sociedade forte e substituiriam os líderes que actuassem mal»;
    - «Ieng Sary era nessa época o grande chefe em Ratanakiri. Conhecíamo-lo como "Van". Era um homem grande, alto como um “barang” [francês]. Caminhava como um “barang”.  Ele instou-nos a opormo-nos aos Estados Unidos e a fazer uma revolução contra os que invadissem o Kampuchea. Eu só conhecia a cara dele, não me podia aproximar dele. Eu era uma pessoa miúda, uma pessoa vulgar, e ele era o líder. Nessa altura ninguém ousava falar a Ieng Sary. Tínhamos medo dos líderes.»;
    - «falaram-nos na luta dos pobres contra os ricos. Disseram-nos que iriam ganhar a guerra e ocupar todo o país. Acreditámos neles.»;
    - «Gostar ou não gostar [dos khmers vermelhos]… é irrelevante. Receávamos que nos matassem. É complicado. Levavam-nos com eles e não nos davam comida suficiente. Víamos um ou dois abatidos por dizerem qualquer coisa errada, ou por se oporem a eles. Vemos uma pessoa abatida e então não nos atrevemos a dizer nada. Mantemo-nos calados e cumprimos ordens». 
   
    Alguns elementos tribais eram promovidos:
   - «No povoado chamavam uma pessoa para uma reunião. Era o Tnak Loeu (Nível Superior); mas ninguém sabia onde a pessoa ia, ou sobre o que era a reunião. [...] Todas as ordens do Tnak Loeu vinham de uma ou duas pessoas que tinham ido às reuniões. A tribo fazia o que lhe pediam, sem realmente pensar. Se, por exemplo, nos pedissem para fazer 500 estacas afiadas de bambu por dia e por pessoa, nós fazíamo-las sem argumentar, sem perguntar qual a finalidade»;
    - «Foi a mim que chamaram ao “posto”. Chamavam quem confiavam [...] De volta ao povoado ensinei os aldeões como fazer estacas afiadas de bambu e balestras para defender o povoado, e também lhes expliquei sobre a luta de classes. As pessoas sentavam-se à minha volta à noite e ouviam-me».
   
    Seria interessante conhecermos como é que um elemento tribal explicava a «luta de classes»!
    De vez em quando os chefes organizavam conferências. Em 1964 Ieng Sary organizou uma durante três dias para várias centenas de pessoas. Em 1967 Pol Pot organizou uma reunião durante um mês para 50 líderes dos montanheses. Um deles disse mais tarde: «As nossas impressões de Pol Pot eram muito boas. O povo adorava-o. Ele viveria e morreria com o povo. Ele comportava-se muito bem. Ninguém pensava que as coisas se tornassem como se tornaram.» O «comunismo» dos chefes era muito relativo. Pol Pot e Ieng Sary não eram quaisquer Che Guevara compartilhando as mesmas dificuldades dos seus camaradas. Eles e suas mulheres eram transportados em padiolas através das florestas. Eis um testemunho: «Transportámos Pol Pot porque ele era um grande homem. Ele deitava-se na padiola e não caminhava. Mais de 10 ou 20 pessoas por dia transportavam-no montanha acima e abaixo. Quando o transportavam, se o roçavam contra um ramo eles batiam no carregador.». Um outro testemunho no mesmo sentido é reportado em [6].
    A força dos khmers vermelhos até 1974 foi sempre muito reduzida. Num recontro dos guerrilheiros contra forças governamentais de Sihanouk, em 1969, Pol Pot afirmou na altura que as suas forças eram de 150 homens mas que só menos de metade podiam lutar porque os outros não tinham armas ([8]). Isso não impediu Pol Pot de dizer que tinha havido uma grande vitória contra 18 batalhões (!) e, mais tarde, em 1977, quando os khmers vermelhos estavam no poder, apresentar o recontro como um evento glorioso da «guerra popular» dos anos sessenta. Outro estudo ([7]) também reconhece que no período de 1968-1970 as operações dos khmers vermelhos contra as forças governamentais falharam, com perdas elevadas, sem a «mínima esperança de chegar ao poder».
    Muitos dos elementos tribais que constituíram o «proletariado» de Pol Pot nada lucraram com isso. Apesar da retórica de Pol Pot o modo de vida tradicional das tribos foi destruído quando os khmers vermelhos tomaram o poder ([9]). Muitos deles também acabaram torturados e/ou executados na sinistra prisão de Tuol Sleng em Phnom Pehn.
   
Lon Nol e o genocídio praticado pelos EUA
   
    A postura dúbia de Sihanouk face à guerra movida pelo imperialismo ianque contra as forças patrióticas dos comunistas vietnamitas, valeu-lhe a remoção do poder num golpe de estado orquestrado pela CIA em Março de 1970 ([10]). Foi substituído pelo reaccionário general Lon Nol, uma marionete da administração americana.
    Em menos de dois meses o Camboja foi invadido por uma força de 30.000 soldados americanos e 40.000 sul-vietnamitas. Depois de alguns ataques a bases guerrilheiras efectuados pelos americanos com helicópteros, os conselheiros militares americanos pressionaram Lon Nol a retirar todas as forças militares das províncias nordestinas ([6]). Os americanos desejavam flagelar com bombardeamentos as rotas cambojanas de abastecimento do vietcong procurando fazer de Phnom Penh um baluarte militar com essa finalidade. Eram as vias de abastecimento do vietcong que preocupavam os EUA; não as diminutas forças dos khmers vermelhos.
    A retirada das forças governamentais (9.000 soldados) das províncias nordestinas beneficiou os khmers vermelhos, cujos dirigentes se apressaram a declarar as quatro províncias como «zona libertada». Por outro lado, Sihanouk e seus seguidores, na sua oposição a Lon Nol, aliaram-se aos khmers vermelhos (!) o que aumentou a projecção internacional destes ([11]).
    Em Março de 1970 as forças de Pol Pot eram ainda reduzidas e o seu apoio popular muito limitado. Entretanto, os bombardeamentos americanos que decorreram de 1970 até 1974, iniciados por iniciativa de Richard Nixon e do seu conselheiro Henry Kissinger (o mesmo que incitou em 1975 à invasão de Timor-Leste pela Indonésia), continuados por Gerald Ford, causaram tal devastação que contribuiram para um enorme aumento das forças de Pol Pot. Documentos vindos a público assim o comprovam, como por exemplo este do director de operações da CIA datado de 1973 ([12]): «Estão [os khmers vermelhos] a usar a destruição causada pelos ataques dos B52 como tema principal da sua propaganda. Esta abordagem tem resultado num recrutamento bem sucedido de jovens. Os residentes dizem que a campanha de propaganda tem sido eficaz nas áreas de refugiados sujeitas aos ataques dos B52».
    Na realidade, o efeito da «propaganda» era óbvio. Durante quatro anos os bombardeiros B52 despejaram bombas de napalm e de fragmentação que causaram uma vastíssima destruição, causando a morte de 750.000 cambojanos segundo a própria revista Time ([13]). Só num período de seis meses de 1973 os raids dos B52 largaram mais toneladas de bombas do que no Japão durante toda a segunda guerra mundial: o equivalente a cinco Hiroshimas ([14]). O regime de Richard Nixon e Henry Kissinger fez isso secreta e ilegalmente. Em completo desespero um enorme número de cambojanos correu para os khmers vermelhos. De repente, em 1975, as forças de Pol Pot contavam já com 700.000 homens! Por outro lado, ao fazerem do Camboja um segundo campo de batalha do Vietname, os americanos levaram, naturalmente, Hanói a oferecer ajuda a Pol Pot em 1974 ([7]).
   
O genocídio praticado pelos khmers vermelhos
   
    Em 1975 os khmers vermelhos capturaram Phnom Pehn e declararam o «Ano Zero». Evacuaram a população da cidade (dois milhões e meio de habitantes) concentrando-a em campos de internamento. Repetiram este procedimento em todas as cidades ([6]). O país fechou-se totalmente ao exterior, tornando muito difícil saber o que se passava no seu interior.
    Torturas, execuções sumárias, mortes por exaustão e maus tratos em campos de trabalho forçado -- os «campos da morte» --, tornaram-se prática corrente na «República Democrática do Kampuchea» (RDK) totalmente controlada pelos khmers vermelhos. Este genocídio que custou a vida a dois milhões de pessoas (um quinto da população) foi já descrito pormenorizadamente em muitas publicações. Em 2004 foi apresentado um filme-documentário sobre o genocídio. O jornal The Guardian publicou um artigo de muito interesse sobre o filme ([14]), da autoria do jornalista independente John Pilger ([15]), o primeiro repórter ocidental a visitar Phnom Pehn depois da sua libertação em 1979 e a revelar ao mundo a verdadeira dimensão dos khmers vermelhos e, mais tarde, as cumplicidades dos imperialistas.
    E os comunistas vietnamitas? Não conheciam o que se passava? Apenas muito parcialmente. Na primeira metade de 1976 teve lugar a última reunião entre as autoridades do novo Vietname e dos khmers vermelhos; concretamente, uma reunião entre Le Duan (Secretário-Geral do Partido Comunista do Vietname) e Pol Pot. Um alto funcionário da RDV revelou em 1978 ao embaixador soviético em Hanói que, enquanto Pol Pot falava em amizade, Le Duan denominou o regime da RDK de «comunismo de escravidão» ([7]). A reunião, como era de esperar, não teve consequências. Continuaram, porém, a subsistir dúvidas em Hanói sobre o rumo da RDK, até porque nessa altura (1976) surgiram clivagens entre os dirigentes da RDK de que acabou por sair vencedor Pol Pot ([16]). A partir de meados de 1976 Hanói deixou de ter informações precisas sobre a RDK.
   
Os bons amigos dos khmers vermelhos
    
    Na Primavera de 1977 os khmers vermelhos, por sua iniciativa (e provável incitamento dos chineses), lançaram-se numa guerra de fronteiras contra o Vietname na qual mataram milhares de vietnamitas. Os vietnamitas aperceberam-se de que pessoal militar chinês apoiava o treino e armamento dos khmers vermelhos e construía estradas e bases militares. Refugiados do Camboja começaram a afluir ao Vietname e ao Laos com sinistras notícias. De Dezembro de 1977 a Janeiro de 1978 as tropas vietnamitas destruíram unidades khmers, retirando-se rapidamente do território cambojano. Milhares de refugiados aproveitaram para fugir com as tropas vietnamitas ([7]). Em Abril de 1978 constituiu-se no Vietname a primeira brigada cambojana anti-Pol Pot. Em Dezembro de 1978 os vários grupos de dissidentes e refugiados cambojanos constituíram a Frente Unida de Salvação Nacional do Kampuchea (FUSNK) e, mais tarde, o Partido Revolucionário do Povo.
    Depois de algumas hesitações (ver [7]) e perante a continuação das incursões dos khmers vermelhos, as forças do Vietname, juntamente com a pequena força da FUSNK, tomaram Phnom Pehn em Janeiro de 1979. A derrota dos khmers vermelhos em todo o território  foi rápida, dada a falta de apoio popular. As forças de Pol Pot refugiaram-se na Tailândia (25.000 mil homens). A FUSNK declarou logo uma série de medidas de encontro aos desejos populares, entre as quais o retorno dos monjes budistas e a constituição de comités populares de administração local. O pesadelo genocida dos khmers vermelhos terminava. Em breve era constituído um governo de cambojanos com uma linha de actuação progressista, encabeçado por Heng Samrin, um antigo dissidente dos khmers vermelhos.
    Quem não ficou nada satisfeita com o fim do genocídio foi a China e foram os imperialistas americanos e o seu apêndice britânico. É curioso ver como uma fonte simpática para os EUA, como a wikipedia (versão inglesa), explica isso: «Um regime genocida tinha terminado, mas para a China -- que tinha sistematicamente apoiado a RDK – e [para] os EUA -- desejosos de encontrar vias de se desforrarem do Vietname pela sua derrota humilhante na Guerra do Vietname -- bem como para outras potências importantes, a rápida derrota dos khmers vermelhos marcou o início do “problema cambojano”».
    De facto, quem criou o «problema cambojano» foram os EUA, China e Reino Unido. Não se tratou para os EUA de uma simples desforra de um jogo -- afirmar isso é o cúmulo do disparate político. As razões dos EUA eram materiais e objectivas: não deixar escapar um peão alvo de interesses neocolonialistas e que poderia constituir mais um «mau exemplo» de independência, logo de contágio, na região. Para a China também não se tratou de um simples amuo por ver a RDK desaparecer; tratou-se, sim, de que a China também tinha apetites imperialistas (tem vindo a saciá-los em várias partes do mundo, nomeadamente em África) e, como assinalámos acima, convinha-lhe na altura um Camboja maoísta como mais uma demonstração do «amor» do maoísmo pelos países do Terceiro Mundo; uma demonstração e um contrapeso à política independente do Vietname. Finalmente, a designação eufemística «problema cambojano» destinava-se a deitar poeira aos olhos. Não era um mero «problema» com que China-EUA-Reino Unido se tinham deparado, para sua surpresa. Muito pelo contrário. O «problema» era, única e concretamente, a política premeditada de agressão da Santa Aliança China-EUA-Reino Unido que, no seu ódio  ao desenvolvimento independente de um povo, não se coibia de apoiar genocidas.
    A Santa Aliança procurou apresentar a sua preocupção com o «problema» como sendo devida ao facto de os vietnamitas terem «invadido» e permanecido no Camboja. Mas testemunhos de variadas correntes de pensamento são unânimes em apresentar a satisfação dos cambojanos pelo fim do genocídio proporcionado pelas tropas vietnamitas. É certo que o povo receou inicialmente os vietnamitas; os khmers vermelhos tinham passado anos a convencer o povo de que os vietnamitas eram o diabo. A livre constituição e funcionamento dos seus próprios órgãos de governo removeu esse temor. Ainda hoje as autoridades cambojanas homenageiam os vietnamitas que deram a vida para libertá-los do genocídio (ver, p. ex., [17]). Homenageiam também Heng Samrin de quem a Santa Aliança disse o pior possível (ver, p. ex., [18]).
    Eis, por outro lado, uma breve resenha das actividades reaccionárias da Santa Aliança ([19-23]). Repare-se na hipocrisia e falta de escrúpulos:
    - Declaração de Zbigniew Brzezinski, assessor de Nixon: «Encorajei os chineses a apoiar Pol Pot… Pol Pot era uma abominação. Nunca o poderíamos apoiar, mas a China podia.» De facto, Brzezinski mentiu: os EUA podiam e puderam. Os EUA (Carter e Reagan) impuseram que a representação do Camboja na ONU continuasse a ser ocupada por muitos anos pelos khmers vermelhos (apoio diplomático); forneceram armamento (algum proveniente da Alemanha) às bases dos khmers vermelhos na Tailândia  no valor de 17 a 32 milhões de dólares por ano (apoio militar); teleguiaram agências da ONU e internacionais a fornecer mantimentos e outros recursos aos khmers vermelhos (apoio económico). Por outro lado, os EUA embargaram a chegada de ajuda humanitária de qualquer tipo ao Camboja. Um embargo total, inclusive de terceiros países.
    - Em 1982 o governo Reagan justificava que a bandeira dos khmers vermelhos estivesse hasteada em Nova Iorque para assinalar a «continuidade» do regime. Nessa altura 50 agentes da CIA foram enviados para a Tailândia para gerir a «operação Camboja». Bom, segundo a wikipedia deveríamos dizer para «resolver» o «problema cambojano».
    - Em 1981 alguns aliados dos EUA começaram a denotar desconforto com o reconhecimento de Pol Pot pela ONU. O genocídio era já amplamente conhecido da opinião pública. Então, os EUA com a China e Singapura, inventaram a «Coligação do Governo Democrático do Kampuchea» ([24]) encabeçada por Sihanouk e constituída pelos khmers vermelhos e pela Frente Nacional de Libertação do Povo Khmer (KPNLF) de extrema-direita, financiada pela CIA e agrupando mercenários e bandidos comandados por ex-oficiais de Lon Nol ([25]). «Uma ilusão magistral» segundo a CIA.
    - Declaração de Deng Xiaoping em 1984 (note-se: em 1984!): «Não percebo porque algumas pessoas quiseram remover Pol Pot; ele fez alguns erros no passado mas agora está a liderar a luta contra os agresssores vietnamitas». Portanto, Pol Pot fez «alguns erros»; coisa sem importância. E, em 1984, os vietnamitas ainda eram os «agressores». Não os khmers vermelhos que faziam incursões da Tailândia contra um governo legitimamente eleito e gozando de amplo apoio popular. Mas, claro, Deng Xiaoping tinha que justificar ter dado 100 milhões de dólares por ano aos khmers vermelhos durante toda a década de 80.
    - Na ânsia de apoio aos khmers vermelhos os EUA chegaram ao cúmulo de procurar esconder o genocídio. Um relatório da CIA de 1980 relatava falsamente (e sabiam que era falso) que o regime de Pol Pot tinha parado de executar pessoas em 1976. Em 1989 ainda o New York Times defendia um livro (Philip Short, Pol Pot) que ilibava os khmers vermelhos de genocídio: «[Short] defende de forma persuasora que...[Pol Pot] não cometeu genocídio». A referência [19] desmantela a retórica «tecnicista» -- mero jogo de palavras -- de Short. O Primeiro-Ministro de Singapura, apoiante dos khmers vermelhos, também afirmou que estes tinham de fazer parte do Camboja e que «eram os jornalistas que faziam deles uns demónios».
    - A aliança EUA-China era profunda ([26]). Segundo um artigo da Newsweek de 1983 «Através da CIA a China está a apoiar as forças estacionadas na floresta do assassino Pol Pot». China e CIA de braço dado.
    - Depois do "Irangate" os ingleses passaram em 1989 a apoiar militarmente os khmers vermelhos, num arranjo entre Reagan e Thatcher. Conforme revelou um elemento do SAS (Special Air Service; forças militares especiais) em 1991: «Nós treinámos os khmers vermelhos em muitas questões técnicas – muito sobre minas. [...] Até treino psicológico lhes demos. Primeiro eles queriam ir aos povoados e simplesmente cortar as pessoas aos bocados. Dissemos-lhes como avançar com calma...» De início as autoridades inglesas mentiram sobre o seu envolvimento no Camboja. Só em Junho de 1991, depois de dois anos de mentiras, o governo inglês reconheceu finalmente que o SAS tinha estado secretamente a treinar os khmers vermelhos. Disse assim Rae McGrath que compartilhou o Prémio Nobel pela campanha contra as minas terrestres e estudou a fundo o envolvimento do SAS no Camboja: «O treino do SAS foi uma política ciminosamente irresponsável e cínica».
    - Em 1989 Sihanouk recebeu relatórios dos serviços secretos referindo «Conselheiros dos EUA nos campos dos khmers vermelhos na Tailândia,... Os homens da CIA estão a ensinar direitos humanos aos khmers vermelhos!».
   
    Em 1991, na sequência de acordos de paz celebrados em Paris e sob forte pressão da China, dos EUA, e seus aliados (Reino Unido, Austrália, Singapura, Tailândia, etc.), os khmers vermelhos encabeçados por Ieng Sary puderam transferir-se da Tailândia para uma zona específica do Camboja (zona de Pailin, agora extinta; [27]). Khieu Samphan, o cruel Primeiro-Ministro de Pol Pot recebeu a saudação da «força de paz» da ONU! Os EUA e a China tudo fizeram para incluir os khmers vermelhos no governo mas não conseguiram.
    Os khmers vermelhos recusaram-se a participar em eleições. Tornaram-se o grupo terrorista mais rico do mundo, vendendo aos tailandeses partes de floresta e pedras preciosas. A Tailândia tem sido o seu maior apoio, tendo construído para eles estradas e hospitais. Entretanto, o seu número declinou devido a deserções e conflitos internos; mas não estão totalmente extintos.
    Continuando uma linha de actuação que vem dos tempos de Heng Samrin as autoridades cambojanas tudo têm feito para julgar os khmers vermelhos culpados de crimes contra a humanidade. Os EUA e a China tudo têm feito contra isso! Já em 1991 a Subcomissão dos Direitos Humanos da ONU, pressionada pela China, EUA e outros, resolvia que «nenhum membro do governo procuraria detectar, prender, extraditar ou levar a julgamento aqueles que tinham sido responsáveis por acções genocidas durante o período de 1975 a 1978.» ([20]). Que rica Subcomissão dos Direitos Humanos! Os acordos de paz, para «não ofender» o principal apoiante dos khmers vermelhos, a China, substituíram inclusive todas as menções de «genocídio» por «políticas e práticas do passado recente»!
    Pol Pot morreu tranquilamente em 1988 sem nunca ser incomodado. Só em 2003, finalmente, o Camboja e a ONU concordaram em julgar os criminosos. Os julgamentos decorrem com alguns juízes da ONU. Mas sem o apoio dos EUA.
    Muitos khmers vermelhos estavam na prisão em Phnom Pehn desde 1999. Outros tinham fugido. Só em Julho de 2010 – 31 anos depois da queda do regime dos khmers vermelhos! – o primeiro genocida, Kang Kek Iew, comandante do campo de extermínio S21, foi julgado. Considerado culpado de crimes de guerra e crimes contra a humanidade foi condenado a prisão perpétua. Em 2011 Ieng Sary foi levado a julgamento. Acabou por ser amnistiado!
    Diz assim o historiador Ben Kiernan em conclusão do seu estudo de 2009 ([19]): «Nos campos da morte reais [que realmente existiram] os perpretadores do genocídio andavam [comportavam-se] livremente e Washington continua mouca às suas vítimas».
    A história concreta do genocídio cambojano, a história que não chegou ao grande público, constitui uma demonstração exemplar do extremo embuste, hipocrisia, e negação dos direitos humanos dos imperialistas ianques, dos seus aliados «ocidentais», e dos «socialistas de mercado com características chinesas». Uma demontração dos extremos a que estão disposto a ir na prossecução dos seus objectivos imperialistas.
   
Referências
   
[1] Friedrich Engels, «Princípios Básicos do Comunismo», Novembro de 1847. Ed. “Avante!”; disponível em Marxists Internet Archive. Este trabalho sintético de Engels destinava-se à divulgação entre os trabalhadores e o público em geral. Noutros trabalhos anteriores e posteriores de Marx e Engels, de leitura mais laboriosa, a fundamentção e argumentação é mais precisa e detalhada.
[2] O verdadeiro nome de Pol Pot era Saloth Sar; Pol Pot era «nome de guerra». O verdadeiro nome de Ieng Sary era Kim Trang. Dentro do PCK Pol Pot, Khieu Sampan e Ieng Sary eram conhecidos respectivamente por «Irmão n.º 1», «Irmão n.º 2» e «Irmão n.º 3».
[3] Khmer Rouge Ideology (Holocaust Memorial Day): http://www.hmd.org.uk/genocides/khmer-rouge-ideology. A ideologia e prática dos khmers vermelhos aparece também retratada noutros artigos das presentes referências. Ver também a wikipedia (versão inglesa).
[4] Martin Childs “Ieng Sary: Leading figure of the Khmer Rouge who later stood trial for crimes against humanity”, 27 March 2013. http://www.independent.co.uk/news/obituaries/ieng-sary-leading-figure-of-the-khmer-rouge-who-later-stood-trial-for-crimes-against-humanity-8550571.html
[5] Citado em Weitz, Eric D. (2005). "Racial Communism: Cambodia under the Khmer Rouge". A Century of Genocide: Utopias of Race and Nation. Princeton University Press.
[6] Sara Colm “Pol Pot: the secret 60s”, 1998. Importante artigo fruto de investigação patrocinada pelo Centro de Documentação do Camboja. http://www.phnompenhpost.com/national/pol-pot-secret-60s.
[7] As relações entre vietnamitas e khmers vermelhos passaram por muitas vicissitudes até 1975. Um estudo cuidado, baseado em arquivos soviéticos, é apresentado em: Dmitry Mosyakov, “The Khmer Rouge and the Vietnamese Communists: A history of their relations as told in the Soviet archives”, Vostok (‘Orient’), no. 3, August 2000. Nele se diz, nomeadamente (tradução nossa): “[Em 1949-1953] Hanói apostou na aliança com Sihanouk, que era não só crítico dos Estado Unidos mas também concedeu ao Vietname do Norte a possibilidade de usar bases de retaguarda na chamada Via de Ho Chi Minh [Ho Chi Minh Trail] e mesmo o fornecimento de armas e munições para a luta no Sul através do porto cambojano de Sihanoukville. (Contudo, os khmers [vermelhos] ficavam com aproximadamente 10% de todos os fornecimentos -- ver Chanda, Brother Enemy, N.Y., 1986, pp. 61, 420.)”. A partir de meados dos anos sessenta Pol Pot quis obter apoio da URSS e da China. Obteve armamento da China, mas não da URSS:  «As esperanças do PCK na ajuda soviética eram injustificadas […] A falência em estabelecer contactos com Moscovo não enfraqueceu a posição de Pol Pot, já que tinha Beijing atrás dele. Para fortalecer o apoio de Hanói mostrou-se mesmo disposto a uma maior união e «solidariedade especial» com a RDV»
[8] O trabalho [6] cita a seguinte avaliação feita por Pol Pot em 1968-69: «Não tínhamos pessoal. Não tínhamos economia. Não tínhamos força militar nem sítio onde esconder. Não obstante o tamanho das florestas não encontrávamos abrigo. [...] O inimigo conhecia as florestas. Quer fôssemos para um ou outro lugar eles sabiam onde estávamos. Tínhamos umas poucas armas aqui e além, mas não tínhamos território nem população sob o nosso controlo.»
[9] Segundo o trabalho [6]: «O inicial “casamento de conveniência” de Pol Pot com o montanheses nordestinos acabou por se envenenar a seguir ao bombardeamento dos EUA em 1973, quando os khmers vermelhos começaram a incitar ao desenvolvimento de cooperativas, a impôr refeições comunais e proibir práticas religiosas; a punir ou a executar os recalcitrantes. Num dos maiores levantamentos contra os khmers vermelhos quinhentos aldeões Brou e Keung de Ratanakiri fugiram para o Laos e o Vietname no início de 1975, alguns meses antes dos comunistas [já vimos o que há de totalmente errado nesta designação] tomarem oficialmente o poder em Phnom Pehn.»
[10] O regime de Sihanouk tinha procurado manter uma posição de «neutralidade»: por um lado, deixava o vietcong usar um porto cambojano, conforme vimos acima ([7]); por outro lado, os EUA não eram incomodados quando bombardeavam esconderijos do vietcong no Camboja.
[11] A aliança chamou-se «Frente Nacional Unida do Kampuchea». O sinistro assassino Ieng Sary, o «comunista» Ieng Sary, agora aliado do príncipe Sihanouk, tornou-se um membro destacado do «Governo Real da União Nacional do Kampuchea».
[12] Citado em John Pilger “How Thatcher helped Pol Pot” April 9, 2013 https://www.greenleft.org.au/node/53763; tradução nossa.
[13] Fletcher, Dan (February 17, 2009). "The Khmer Rouge". Time.
[14] “The Khmer Rouge Killing Machine” http://johnpilger.com/articles/the-khmer-rouge-killing-machine 30 January 2004.
[15] John Pilger é um repórter australiano que vive em Londres. O seu jornalismo de investigação mereceu vários galardões, tais como a atribuição, por duas vezes, do prémio de jornalista inglês do ano, e na área dos dos Direitos Humanos. John Pilger tem participado em foruns marxistas e anti-imperialistas. Denunciou, nomeadamente, as pretensas «guerras contra o terrorismo» movidas pelos EUA. A este respeito vale a pena ver em http://www.nzonscreen.com/title/face-to-face-with-kim-hill-john-pilger-2003, um excerto de uma entrevista sobre a guerra do Iraque, onde destrói a aura de respeitabiliade de uma jornalista neo-zelandesa – um exemplo destes famosos opiniosos que nunca estudam nada nem lêem nada, mas sabem sempre tudo melhor que ninguém, um exemplo dos muitos mercenários alcandorados em chorudas sinecuras nas rádios e TVs pela sua deferência e contribuição para a diária lavagem ao cérebro ao serviço do capitalismo. John Pilger revela uma atitude que falta a muita da nossa esquerda).
[16] As autoridades de Hanói chegaram a pensar, em finais de 1976, que Pol Pot e Ieng Sary tinham sido removidos do Poder ([7]).
[17] Cambodia shows gratitude to VN for win over genocidal regime, 01/06/2014, http://tuoitrenews.vn/politics/16634/cambodia-shows-gratitude-to-vn-for-win-over-genocidal-regime: «Sem o sacrifício dos soldados vietnamitas a nação cambojana não teria tido a oportunidade de vencer o regime genocida dos kmers vermelhos, disse um líder cambojano».
[18] Luke Hunt, “Heng Samrin, Man of the People”, The Diplomat, September 21, 2011, http://thediplomat.com/2011/09/heng-samrin-man-of-the-people/ «O cambojano Heng Samrin teve um papel essencial na libertação do país de Pol Pot».
[19] Ben Kiernan, “The Cambodian Genocide and Imperial Culture”, publicado em 90 Years of Denial, publicação especial do Aztag Daily (Beirute) e do Armenian Weekly (Boston) em Abril de 2005. Ben Kiernan é Professor de História e Director do Programa de Estudos de Genocídios da Universidade de  Yale. É autor dos livros How Pol Pot Came to Power e The Pol Pot Regime (Yale University Press, 2004 and 2002).
[20] John Pilger, “The Long Secret Alliance: Uncle Sam and Pol Pot”, Covert Action, Quarterly Fall, 1997.
[24] Conforme muito bem assinalou o historiador Ben Kiernan, a «Coligação do Governo Democrático do Kampuchea» não era nem uma coligação, nem democrática, nem um governo, nem em Kampuchea.
[25] Segundo [19], a táctica de khmers vermelhos e da KPNLF era a mesma dos Contras da Nicarágua: aterrorizar as populações com emboscadas e colocação de minas. Os americanos procuravam desestabilizar o governo de Phnom Penh procurando envolver os vietnamitas numa guerra insustentável; procuravam arrastá-los para o seu próprio «Vietname». Destruir a economia vietnamita ainda em dificuldades e, se necessário, derrubar o governo de Hanói, era o fim último. A ruína do Vietname permitiria restaurar o poder dos americanos na Indochina.
[26] Segundo é descrito em [19] Kissinger explicava a aliança China-EUA pela oposição à URSS e Vietname e porque, além disso, «A China não tem objectivos expansionistas agora». Repare-se neste delicioso «agora».
 [27] Em 1992 uma «força de paz» da ONU chegou ao Camboja. Em 1993 Sihanouk tornou-se rei do Camboja mas todos os poderes foram atribuídos ao governo de uma democracia pluripartidária. Hun Sen, do progressista Partido do Povo do Camboja, tem sido o Primeiro-Ministro na sequência de vitórias eleitorais monitoradas por observadores internacionais. As reformas e reconstrução do Camboja têm sido substanciais.