terça-feira, 28 de maio de 2013

O Insucesso dos Ricos

Divulgou o jornal on-line Notícias ao Minuto, no passado 26 de Maio, o seguinte excerto de uma entrevista do ex-secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas à Rádio Renascença: «Os ricos portugueses andam especialmente tolos e eles são especialmente responsáveis por esta situação, porque podiam fazer e não fizeram. Se alguma coisa falhou nos últimos 40 anos foram estas elites, não fomos nós todos.».
(http://www.noticiasaominuto.com/pais/76647/portugueses-ricos-andam-tolos#.UaM0UZwsayE.)
Francisco José Viegas (FJV) não é o único a emitir opiniões deste tipo. Ele simplesmente expressa a visão comum de muitos intelectuais da nossa praça, que se colocaram indefectivelmente durante todos estes anos ao serviço da ideologia e dos interesses do grande capital. Agora que o capitalismo expõe mais claramente a sua verdadeira face é de bom-tom iniciarem a descolagem de uma simbiose demasiado íntima, que acarinharam durante todos estes anos.
FJV (e seus irmãos espirituais) não está contra o capitalismo; nem mesmo contra o actual capitalismo financeirizado. Ele só está contra o falhanço dos ricos que «podiam fazer e não fizeram». Contra o insucesso dos ricos, como disse o poeta Eduardo Pitta segundo a mesma notícia do Notícias ao Minuto: «O estado a que nós chegámos é o resultado de 40 anos de insucesso».
Pondo as coisas claras: para FJV e consortes o mal da nossa situação não provém do capitalismo, mas sim do facto de os nossos capitalistas não serem bons capitalistas. Mas, espera: então e a Grécia, também tem (teve) maus capitalistas? E os capitalistas da Espanha e da Itália? São também maus capitalistas, especialmente tolos, mal sucedidos, falhados? E a Grande Depressão dos EUA? Também se deveu ao facto de que os capitalistas americanos são uns tolos, uns mal sucedidos?
A FJV e consortes não interessa ver as coisas por esse prisma. No fundo o que os dana é o que os «ricos» «podiam fazer e não fizeram»; isto é, o que os ricos podiam fazer por eles, FJV e consortes, e não fizeram. O não fazerem nada por FJV e consortes é um tremendo insucesso.
O que os dana é o facto do actual regime na sua pura lógica capitalista os estar a pôr de lado. A eles, intelectuais leais e fidedignos na defesa do regime de ditadura liberal que tem vigorado praticamente desde o golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro de 1975. Um regime em que as decisões políticas e económicas verdadeiramente importantes dependem dos detentores e defensores do grande capital com total coerção sobre todos os não capitalistas. Note-se, porém, que FJV e consortes não têm dúvidas de que o regime deve ser dos «ricos». Apenas se lamentam por os ricos andarem ultimamente «especialmente tolos» sem cumprirem adequadamente o seu papel. Segundo FJV «Se alguma coisa falhou nos últimos 40 anos foram estas elites». Isto «se alguma coisa falhou»; para FJV ainda não está claro que, de facto, tenha havido qualquer falhanço; se calhar tratou-se mais de uma «tolice». Espanta-nos, também, que FJV e consortes, que sempre foram meninos bonitos da comunicação social, durante 40 anos, quase meio século (!), nunca tivessem dito qualquer coisa como «Oh gentes! Prestai atenção porque as elites, os ricos, andam especialmente tolos e se isto continua vai haver insucesso! Não voteis nos ricos!». Não, nada disso. FJV e consortes andaram estes 40 anos impávidos e serenos sem nunca encontrarem a mais pequena mácula no regime dos «ricos».
Agora que as coisas começam a aquecer FJV e consortes iniciaram já, pelo sim pelo não, a desvinculação ¾ por enquanto só em frases ¾ do grande capital, lavando as mãos como Pilatos ¾ «Se alguma coisa falhou nos últimos 40 anos […] não fomos nós todos [ênfase nosso]» ¾ usando sabiamente, com a «honestidade» intelectual que os caracteriza, termos e expressões suficientemente ambíguos e pudicos ¾ «ricos», «tolos», «se alguma coisa falhou», «elites», etc.
FJV procura, inclusive, fazer esquecer que fez parte do governo PSD/CDS. Diz ele: «Quando me diziam: ‘agora que já estás fora do poder…, eu começava a rir. Poder? Qual poder?». Coitado do FJV que entrou no governo PSD/CDS sem se dar conta dessa espantosa contradição de que o governo não é Poder! Ainda se ao menos o governo PSD/CDS tivesse sido Poder, para que FJV pudesse ter conseguido fazer qualquer coisa, qualquer coisa não tola… Agora só lhe resta rir amargamente…
Nota final: como FJV e consortes declararam agora que «não fomos nós todos» ¾ isto é, emitiram um auto-atestado de bom comportamento ¾ irão provavelmente engrossar aquelas forças «humanistas» de que o PS anda à procura para apoiar o seu próximo governo. Se calhar ainda iremos ver FJV e consortes a engrossar as fileiras do Congresso das Alternativas Democráticas.

sábado, 18 de maio de 2013

O Financiamento da CIA ao PS: Documento Inédito

No passado dia 13 de Maio o canal de televisão holandês Nederland 2 (equivalente à nossa RTP2) emitiu uma reportagem de 29 minutos intitulada «Dinheiro Secreto Americano para os Socialistas em Portugal» («Geheim Amerikaans geld naar socialisten Portugal»). A reportagem foi preparada pela própria Nederland 2, para a sua série de programas históricos «Outros Tempos» («Andere Tijden»: http://www.nederland2.nl/programmas/642-andere-tijden/uitzending/44643?missed=true).
A reportagem (em holandês, com entrevistas noutras línguas) apresenta testemunhos em primeira-mão dos que, no início de 1975, estiveram envolvidos na cadeia de financiamento do PS com dinheiros da CIA. Os entrevistados são: Mário Soares (dialoga em francês); Harry van den Bergh, o «correio» clandestino, membro do PvdA, Partido do Trabalho holandês, homólogo do PS; Hans-Eberhard Dingels, secretário de estado do governo SPD (o homólogo alemão do PS) da Alemanha da época, encabeçado por Willy Brandt (dialoga em alemão); Arthur Hartman, secretário assistente de estado dos EUA para a Europa e Canadá, durante o governo de Gerald Ford e do tristemente famoso secretário de estado Henry Kissinger, o homem que deu luz verde à ocupação de Timor-Leste pela Indonésia (dialoga em inglês); José Rentes de Carvalho, escritor residente na Holanda, que fornece ao público holandês esclarecimentos sobre a revolução dos cravos.
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Antes de passarmos à reportagem vale a pena lembrar o que já era conhecido na altura dos acontecimentos, em Março de 1975.
Logo após o 25 de Abril de 1974, Mário Soares, como ministro dos negócios estrangeiros do 1.º governo provisório, efectua um périplo pela Europa no sentido de granjear apoios para o novo Portugal saído da revolução. A 4 de Maio visitou Willy Brandt que promete o apoio de Bona. Iremos ver na reportagem que, afinal, o «apoio de Bona» não era só (ou propriamente) para Portugal.
A 3 de Março de 1975, poucos dias antes do golpe contra-revolucionário de Spínola do 11 de Março, a revista Extra de Berlim Ocidental publica um artigo com o título «CIA planeia golpe em Portugal antes do fim de Março» ([1]). O artigo afirmava (ênfase nosso): «O segundo factor da política da República Federal Alemã […] seria o interesse num regime "livre de comunismo" para Lisboa. Neste aspecto, o SPD desempenha um papel importantíssimo, ao lado do Partido Socialista Português, chefiado por Mário Soares (como se sabe, a fundação do PS e a nomeação de Mário Soares para seu presidente realizou-se na Alemanha Federal, durante o seu exílio, com o apoio da Fundação Friedrich-Ebert do SPD [2-3])». Quanto ao "livre de comunismo" deve ler-se sem os atributos de um desenvolvimento económico soberano e a favor do povo, conforme constava das teses aprovadas no 3.º Congresso da Oposição Democrática (Aveiro, 4 a 8 de Abril de 1973) e se plasmava no programa do MFA: política anti-monopolista, direitos dos trabalhadores, controlo económico, reforma agrária, etc. Quanto à Fundação Friedrich-Ebert do SPD, veremos adiante o seu papel e as suas ligações.
Continuava o artigo da Extra (ênfases nossos): «Entretanto, porém, o ministério dos negócios estrangeiros e o grupo de políticos do SPD encarregados dos assuntos externos […] lançaram-se já na tarefa de encaminharem as eleições de Abril para um rumo do seu interesse. Objectivo: impedir que os socialistas portugueses se unam aos comunistas. Este objectivo deverá ser conseguido através de um pesado apoio financeiro da República Federal e dos Estados Unidos, destinado sobretudo à ala direita do partido de Mário Soares. Uma das pessoas de confiança do lado português é o secretário de Estado das Finanças, Constâncio. O SPD prometeu já à ala direita do Partido Socialista a quantia do 90.000 marcos (aproximadamente 900 contos) […]». Mais à frente o artigo da Extra refere que «Bruno Friedrich [porta-voz do SPD] terá aconselhado Soares a proceder com mais flexibilidade para com a ala esquerda do seu partido». Isto é, o SPD não tinha dúvidas sobre quem encabeçava a ala direita do PS, apesar da afirmação bombástica de Mário Soares no Congresso do PS a 14 de Dezembro de 1974: «O nosso objectivo final é a destruição do capitalismo» (Jornal de Notícias).
Dizia ainda o artigo: «No que respeita às actividades e planos da CIA, a sua aspiração máxima é a guerra civil (já considerada por Soares como “possível”, ao apontar os comunistas como culpados de provocações ultra-esquerdistas, [provocações essas] possivelmente da autoria da CIA). […] Data marcada para esta operação da CIA: "ainda antes do fim de Março".». Isto é, já antes do golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro de 1975 o modus operandi de usar o pretexto CIAtico da provocação ultra-esquerdista era avançado. A Extra também deixava claramente entender que o golpe teria o apoio do PS.
Dizia ainda a Extra «[…] o embaixador norte-americano em Lisboa, o agente da CIA Frank Carlucci, assumiu a condução das operações para um golpe de Estado planeado pela CIA».
Em 5 de Março de 1975 Carlucci afirmava que «nunca trabalhei nem trabalho para a CIA» (Jornal de Notícias). Era uma despudorada mentira, mais tarde oficialmente desmentida. Era também noticiado que os embaixadores europeus, nomeadamente o alemão, consideravam fantasiosas as notícias de um golpe previsto para Portugal envolvendo a CIA e a ala direita do PS. Divulgadas também as afirmações de Jaime Gama de que as «notícias são completamente falsas e inserem-se numa campanha anti-socialista que arrancou há algum tempo». Mas os acontecimentos e documentos posteriores vieram demonstrar inequivocamente que o que transpirou na época sobre o «golpe» não era nem fantasioso nem falso.
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Voltemos à reportagem. O repórter, num preâmbulo do programa, apresenta Harry van den Bergh (em 1974 um jovem membro do PvdA holandês), como o peão de uma operação clandestina de financiamento, financiamento esse que refere como «a ponta do iceberg» de uma operação «de poder da grande política a nível internacional». Num breve recorte do preâmbulo, Van den Bergh afirma que foi contactado expressamente, a pedido de Willy Brandt, «o grande homem da Europa», para levar dinheiro clandestinamente para os «camaradas» socialistas em Portugal, o que aceitou. A ideia que é sugerida, e repetida ao longo do programa, é a de que van den Bergh foi escolhido por ser considerado perito neste tipo de operações.
Antes do tema central da reportagem é feita uma breve introdução sobre a revolução do 25 de Abril, pelo repórter e por José Rentes de Carvalho. São também mostradas imagens do périplo que Mário Soares efectuou pela Europa (Londres, Amsterdão, Bona) no início de Maio de 1974, como Ministro dos Negócios Estrangeiros do 1.º governo provisório (que referimos acima).
Aparece então Mário Soares na reportagem para dizer o seguinte: «Comecei por Londres, de Londres fui à Holanda, den Uyl, e daí fui a Willy Brandt. Falei com Willy Brandt. Toda a gente reconhecer [sic] a legitimidade da revolução». Note-se que Soares não diz «toda a gente apoiou a revolução» ou «toda a gente compreendeu a revolução». O «Toda a gente reconhecer a legitimidade da revolução» é pronunciado com ênfase por Soares, em tom demonstrativo e gratificante. Para Soares, aparentemente, a legitimidade da revolução não procedia do povo; havia que a procurar nas potências estrangeiras. (Oh Londres, Amsterdão e Bona: permitis ou não que o povo português se revolte?) Havia que obter dessas mesmas potências o gratificante «reconhecimento da legitimidade» e tinha sido essa a tarefa que tinha ido cumprir como ministro dos negócios estrangeiros em trânsito pela Europa dos poderosos. Quase se tem a sensação que Soares lhes disse qualquer coisa como «Os meus compatriotas fizeram umas traquinices; vocês desculpem lá isso e reconheçam a revolução.» e regressou todo contente porque os poderosos tinham reconhecido, dado o aval, à revolução. Que seria do povo português se Londres, Amsterdão e Bona não reconhecessem a legitimidade da revolução? Bem, se calhar havia que rebobinar a fita, voltar com tudo para trás, recolher o MFA aos quartéis e colocar Marcelo no Poder.
Mário Soares prossegue assim: «Eles ajudaram-nos. Por exemplo, os alemães que nos ajudaram enormemente.». Nesta precisa altura o ouvinte da reportagem ainda pode pensar que Soares, nas funções de ministro dos negócios estrangeiros, informa sobre a ajuda que obteve para a revolução portuguesa, para o povo português. Infelizmente não é assim. De facto, Soares prossegue desta forma: «Eles [os alemães] ajudaram-nos a obter uma sede. Deram-nos dinheiro para… porque nós tínhamos necessidade de um jornal… de transformar um pequeno jornal num grande jornal socialista, etc., etc.». Soares, portanto, confessa que se esqueceu que estava no estrangeiro como representante oficial de Portugal. Esqueceu-se do povo português mas não se esqueceu que era chefe do PS. Isto é, usou o dinheiro dos contribuintes e abusou da sua confiança, colocando-os (o dinheiro e a confiança) ao serviço de fins meramente partidários.
Depois desta introdução, a reportagem entra, então, no âmago da questão.
O secretário de estado do governo de Willy Brandt, Hans-Eberhard Dingels, refere que o SPD achou que devia ajudar o mais possível os socialistas. Van den Bergh confirma: «Willy Brandt [disse]: devemos ajudar os nossos camaradas (genossen)».
Dingels achou que a pessoa para levar o dinheiro deveria ser Harry van den Bergh. Este concordou; recebeu um telefonema de Bona a dizer onde devia levantar o dinheiro. Levantou-o num banco discreto da Holanda: o Nederlandsche Middenstandsbank, em Amstelstraat, Amsterdão. Não enviaram o dinheiro directamente para Portugal alegadamente e segundo Dingels, porque a lei portuguesa não permitia enviar dinheiro para partidos como o socialista. De facto, não existia tal lei na altura nem foi essa a razão, como logo a seguir Dingels se descai a dizer: «era para que as autoridades [portuguesas] não soubessem.».
Van den Bergh foi esperado no aeroporto por «amigos» e posto no Hotel Ritz. Fizeram isso seis a sete vezes. Revela ainda van den Bergh que, nas últimas duas entregas, receando dificuldades, contactou o ministro dos negócios estrangeiros da Holanda (Max van der Stoel, também do PvdA) o qual conferiu a van den Bergh o cargo oficial de correio do Ministério, assegurando-lhe, portanto, imunidade diplomática. Na reportagem não fica esclarecido quem em Portugal recebe o dinheiro e quais as datas das entregas. Quanto a este último ponto deduz-se, porém, conjugando as várias informações da reportagem, que se trata do período em torno de Março de 1975, a que se reporta também o artigo da Extra acima referido.
Tendo o repórter perguntado a Dingels sobre a origem do dinheiro, obtém a resposta de que «só ele [Dingels] e muito poucos do SPD sabiam da origem do dinheiro» porque «o silêncio é de ouro». Quando interrogado sobre se mais alguém fez o que fizeram os do SPD, diz Dingels: «os ingleses… os suecos…, num total de 7 ou 8 pessoas ["correios"]». Dingels recusa-se a dizer o total de dinheiro enviado. Van den Bergh estima o total em mais de 800 mil euros o que nos parece uma estimativa aceitável tendo em conta os 90.000 marcos que a revista Extra divulgava (ver acima; [4]).
Qual a origem do dinheiro? Hans-Eberhard Dingels, secretário de estado do governo de Willy Brandt, escusa-se a responder.
A resposta é dada por Arthur Hartman (menos tímido que Dingels), na altura secretário de estado dos EUA. Arthur Hartman relata a oposição de Ford e Kissinger à revolução portuguesa «dada a influência do PCP». Refere também a questão da NATO (van den Bergh diz que a NATO considerava expulsar Portugal do seu seio).
Hartman diz que o Grupo de Berlim (Alemanha, Inglaterra, França, EUA), analisando o que se passava em Portugal, concluiu que tinha de pôr Mário Soares no poder. Diz ainda que usaram o «canal alemão» para fornecer «fundos e equipamento» a «Mário Soares e ao Partido Socialista». Refere que «os alemães já tinham experiência de como ajudar financeiramente outros partidos socialistas, através da Fundação Friedrich Ebert» ([2-3]). Os EUA limitaram-se a fornecer o dinheiro através dessa fundação.
Hartman diz que não sabe concretamente de «que bolso» concreto saiu o dinheiro, mas que «está bem convencido de que foi dinheiro da CIA que foi enviado através deles [Fundação Friedrich Ebert]». O percurso do financiamento ao PS foi, portanto: CIA à Alemanha (Fundação Friedrich Ebert) à Holanda. Perante esta revelação diz van den Bergh com cara de convencido: «pode muito bem ter sido»; acrescenta ainda que não tem nenhum problema em ser correio de dinheiro da CIA, embora diga que não foi agente da CIA… Perguntado a Hartman quantas pessoas sabiam do financiamento da CIA, diz este que «na época provavelmente muito poucas». Sobre se Soares sabia disso, a resposta de Hartman é inequívoca: «Estou seguro que sim. Mas nunca discuti o assunto com ele». Colocada a mesma pergunta a Mário Soares, diz este: «Como podia eu saber? Eu não sou polícia, monsieur. Não sei.». Hartman, no seguimento da entrevista, justifica o segredo da operação: tratava-se de evitar que se dissesse na Europa que os EUA tinham usado a CIA para ajudar Soares; para não denegrir a figura de Mário Soares [perante os portugueses e os europeus]. A finalizar a reportagem um Soares nitidamente perturbado produz uma resposta ambígua e atabalhoada, em que fundamentalmente argumenta que não podia ir anunciar publicamente que tinha recebido dinheiro da Holanda e que se a Holanda teve de ir buscar o dinheiro a outro lado ele não ia indagar sobre isso.


Harry van den Bergh, o «correio» e «socialista» holandês, que disse não ser da CIA mas não se importar de ajudar a CIA. Como em Março de 1975, quando levou o financiamento da CIA para o PS.
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Mário Soares, no Congresso do PS a 14 de Dezembro de 1974, ainda dizia «O nosso objectivo final é a destruição do capitalismo». Procurava, assim, como em muitas outras vezes quer anteriores quer posteriores, ludibriar os trabalhadores e os elementos do MFA que alinhavam pelo PS, procurando estabilizar uma base eleitoral. Mas o objectivo de acabar com a revolução e proceder à recuperação do capitalismo monopolista e latifundiário já não oferecia dúvidas a muitos da cúpula do PS. Efectivamente, o objectivo do financiamento da CIA ao PS-Mário Soares só podia, obviamente e por definição, ser um: acabar com a revolução. E se Soares ainda podia dizer (como ainda agora mantém) que desconhecia a origem do financiamento ao PS, o mesmo não se aplica quando, com conhecimento de causa, se aliou a Carlucci-CIA na organização do golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro de 1975. Golpe que pôs precisamente em marcha, pela mão do PS, a recuperação do capitalismo monopolista e latifundiário e não a «destruição do capitalismo».

Mário Soares e Frank Carlucci (CIA) em encontro noticiado em 10/6/2011 pelo Jornal de Notícias. Dois amigos do coração, satisfeitos pelo seu trabalho na preparação do golpe de 25 de Novembro. Tudo com o objectivo da «destruição do capitalismo» em Portugal…


[1] O artigo da Extra vem transcrito em Ruben de Carvalho, Dossier Carlucci CIA, Edições Avante!, 1978. Livro imprescindível para a compreensão da história da contra-revolução em Portugal.
[2] Friedrich Ebert foi Presidente da chanada República de Weimar de 1919 a 1925. Tornou-se tristemente famoso por, enquanto representante da ala direita do SPD, ter perseguido duramente todos que se situavam à esquerda do SPD, terminando com o entendimento do SPD com o Partido Social-Democrata Independente Alemão (USPD). Deu luz verde à formação de corpos francos, constituídos por elementos desclassificados e criminosos da Alemanha, a quem incumbiu a tarefa de assasinar comunistas, membros do USPD e outros elementos e intelectuais progressistas. Abriu, assim, o advento do nazismo e a ascenão de Hitler.
[3] A Fundação Friedrich Ebert (FES), por trás de uma fachada respeitável de insituição que apoia por exemplo trabalhos académicos, não é mais que um dos suportes da CIA na Alemanha para levar a cabo operações clandestinas que devam surgir aos olhos da opinião pública como democráticas e até socialistas. É, na realidade, um dos institutos satélites do National Endowment for Democracy (NED), instituição americana ligada à CIA que se encarrega de organizar operações clandestinas que não interessa associar à CIA. A NED foi construtora do sindicato Solidariedade na Polónia e da Carta 77 na Checoslováquia. O presidente Bush qnunciou em 2004 o reforço para o dobro do financiamento da NED (http://www.voltairenet.org/article30022.html). A FES tem sido o veículo de outras ingerências da CIA em países que pretendem construir o seu futuro independentemente e controlando soberanamente os seus recursos. Actualmente a FES presta apoio na Venezuela aos que combatem o «chavismo» numa perspectiva pretensamente de «esquerda» (http://www.marxist.com/psuv-congress.htm). A FES também aparece associada ao NED no financiamento de operações contra-revolucionárias na Guatemala (1954), Cuba (1960), Chile (anos sessenta), etc. (http://www.pinknoiz.com/covert/ciaguatemala.html).
À luz destes esclarecimentos, o facto de «a fundação do PS e a nomeação de Mário Soares para seu presidente realizou-se na Alemanha Federal, durante o seu exílio, com o apoio da Fundação Friedrich-Ebert do SPD» não deixa de ser perturbador.
[4] De facto, pelas nossas contas, tomando em consideração a taxa de câmbio histórica $/DM no período de 1974 a 1999, a depreciação do dólar e a depreciação do euro, levam-nos a valores da ordem de 900 mil euros os 90.000 marcos mencionados pela Extra. Isto é, mesmo no que se refere ao valor «prometido ao PS» pelo SPD, a Extra não se enganava.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Classes Sociais (Parte III)

5 – As «Classes Médias» e a Pequena Burguesia
Para além das duas principais classes do capitalismo no seu estado puro ¾ a burguesia e o proletariado que vimos no artigo anterior ¾, com funções do trabalho e do capital totalmente separadas, existem outros estratos sociais com mistura de funções de trabalho com funções do capital.
Por exemplo, a nível da pequena empresa capitalista, com um número reduzido de capitalistas (detentores de meios de produção, (2) ¾ ver numeração da definição do artigo anterior) podem estes (todos ou alguns) exercer funções de trabalhador para além das funções do capital (mistura de funções nos pontos (1 e 3)). O agregado destes agentes constitui a chamada antiga classe média e constitui uma parte da chamada pequena burguesia.
Note-se que na antiga classe média das empresas capitalistas são sempre as funções do capital as dominantes; dominam as funções do trabalho. Isto é assim porque a propriedade legal e real dos meios de produção é do(s) capitalista(s).
Por outro lado, em todos os sistemas sócios-económicos, incluindo o capitalismo, existe sempre um número considerável de produtores independentes quer de bens (camponeses que exploram individualmente ou familiarmente os seus terrenos, artesãos individuais, sapateiros, etc.) quer de serviços (agentes de profissões liberais que trabalham de forma independente, picheleiros, biscateiros, mulheres-a-dias, limpa-chaminés, etc.) que vendem directamente no mercado esses bens e serviços. Agregam-se à antiga classe média, logo à pequena burguesia, os produtores independentes de bens e serviços, detentores de meios de produção (2): o camponês que vive da venda dos seus produtos agrícolas, o médico que vive exclusivamente dos serviços que presta no seu consultório ou em serviço ambulatório, o advogado que presta serviços no seu escritório, o picheleiro que vai com os seus instrumentos de trabalho prestar serviço ao domicílio, etc.
Vejamos agora o caso da grande empresa capitalista, com uma estrutura burocrática hierarquizada de agentes com funções do capital. Neste caso, a função do capital é exercida não só pela classe capitalista (gestores) mas também por uma outra classe cujas características são: 1) é ao mesmo tempo exploradora (ou opressora) e explorada (ou oprimida); 2) não detém nem legalmente nem economicamente os meios de produção; 3) desempenha funções do trabalho e do capital. Designa-se esta classe por nova classe média e faz parte da pequena burguesia.
A nova classe média difere da antiga no seguinte aspecto: como não possui os meios de produção a sua função do capital não é dominante sobre a do trabalho, como acontecia com a antiga classe média. Este aspecto é importante para compreender a natureza desta classe, em particular o seu processo de proletarização.
A obra de G. Carchedi ([4]) aborda a remuneração da nova classe média, constituída por uma componente de rendimento (proveniente do lucro capitalista) e uma componente de salário (pagamento da capacidade de trabalho, (4)), numa situação de privilégio face aos trabalhadores. Naturalmente, a componente de rendimento tende a tornar-se mais importante com a prevalência da função do capital sobre a função do trabalho, reflectindo menos a instabilidade dos salários dos trabalhadores.
A dita obra analisa também o processo de contínua proletarização da nova classe média, devido à tendência constante de desvalorizar o trabalho executado por esta classe, acompanhando ao mesmo tempo a crescente complexidade da divisão social do trabalho que cria novas funções e novos estratos de trabalhadores especializados. Assim, enquanto uns se vão proletarizando outros vêm engrossar a pequena burguesia.
Vemos, assim, como a «classe média», a pequena burguesia abarca um conjunto diferenciado de situações: capitalista a título individual com funções de trabalho, camponês independente, a parte da nova classe média em vias de proletarização, quadros técnicos que vêm engrossar a nova classe média, etc. Frequentemente o termo «classe média» é usado de forma não rigorosa, sem qualquer consideração pela caracterização classista (posição face aos meios de produção, função na divisão social do trabalho, etc.), simplesmente como o conjunto dos que auferem um rendimento médio (ver n/ artigo «Direita e Esquerda» de 14/1). É claro que tal caracterização, embora possa servir em termos de análise de rendimento, é inoperacional do ponto de vista da caracterização política e ideológica desta classe.
Existem também situações de privilégio relativamente às chamadas aristocracias operárias. Contrariamente à nova classe média, cujo privilégio resulta de acumulação de funções de capital a funções de trabalho, a aristocracia operária refere-se àqueles que apesar de serem trabalhadores, não possuírem meios de produção e serem explorados ou oprimidos, desenvolverem um interesse pelo modo de produção capitalista. Tal acontece nomeadamente em empresas monopolistas produzindo para o mercado internacional; um exemplo é o da melhor remuneração de trabalhadores autóctones face aos alóctones (emigrantes). É o próprio desenvolvimento capitalista que estimula a constituição de aristocracias operárias, que não desenvolvem uma consciência proletária (defendem políticas reformistas, não revolucionárias) e se aliam à pequena burguesia.

6 – Os Sectores Estatais
Como se sabe, os gastos do Estado provêm dos impostos. Na repartição dos impostos é preciso ter em conta que, em qualquer formação sócio-económica, o Estado é sempre essencialmente o representante dos interesses da classe dominante. No caso dos países capitalistas o Estado representa os interesses da burguesia. Ora, no caso da burguesia, os impostos que esta paga não são mais do que parte das mais-valias (no caso de viver do trabalho produtivo) ou do trabalho não pago (no caso de viver do trabalho improdutivo) que é extraído aos trabalhadores. Outra parte dos impostos provém dos rendimentos do trabalho. Mas é a burguesia, como classe dominante do Estado, quem determina: a) o peso relativo da carga fiscal sobre trabalho e capital; b) quanto das mais-valias e trabalho não pago está disposta a injectar no Estado subtraindo-o à recapitalização, à acumulação capitalista, bem como aos seus gastos próprios.
Alguns benefícios que os trabalhadores recebem do Estado, como por exemplo as pensões da Segurança Social, recebem-nas porque descontaram dos seus rendimentos durante os anos em que trabalharam. Além disso, os trabalhadores só obtiveram esses benefícios do Estado (subsídio de desemprego, cuidados de saúde, pensões de reforma, férias pagas, etc.) depois de um longo período de lutas contra os representantes do capital.
As actividades económicas do Estado categorizam-se em dois grandes grupos:
1) Actividades capitalistas do Estado (ACE): correspondem ao que se costuma chamar empresas estatais (por exemplo, uma siderurgia estatal, empresas de produção de energia, empresas de transporte, etc.). São geridas numa óptica capitalista; o dinheiro é atribuído pelo Estado com o objectivo de gerar dinheiro através da extracção de mais-valias. (O facto de, na prática, algumas empresas estatais terem prejuízos em vez de lucros é aqui irrelevante. Também as empresas capitalistas privadas podem ter prejuízos.)
2) Actividades não capitalistas do Estado (ANCE): correspondem às instituições subsidiadas pelo Estado para a satisfação de necessidades sociais (hospitais, escolas, etc.)
O sector ACE, do ponto de vista das relações de produção, é semelhante ao sector das empresas capitalistas privadas: ambos se comportam segundo as leis da competição e acumulação do capital, ambos geram mais-valias, ambos buscam maximizar lucros. A única diferença é que, em vez de a propriedade legal dos meios de produção ser dos accionistas, ela é agora do Estado, isto é, da burguesia como um todo. No sector ACE temos portanto as mesmas classes das empresas privadas: proletariado, nova classe média (pequena burguesia) e a burguesia que detém a propriedade real das empresas: os gestores. Duas observações:
a) No sector ACE podem também existir empresas que actuam no sector improdutivo da economia, como empresas comerciais do Estado ou instituições financeiras;
b) Mesmo que as empresas públicas dêem prejuízo em vez de lucro (o que também acontece com empresas privadas) os trabalhadores são sempre explorados ou oprimidos economicamente. Os proventos dos gestores não sofrem com os prejuízos.
Vejamos agora o sector ANCE, de que um exemplo é um hospital público. Um médico que trabalhe num hospital privado é um trabalhador (produtor de serviços de saúde) de uma empresa do sector improdutivo da economia. É oprimido economicamente a favor da burguesia (gestores) e da burguesia rentista (accionistas). No caso de trabalhar num hospital público a situação é semelhante. Embora ele não trabalhe para capitalistas, e portanto não seja estritamente válido classificar o trabalho como improdutivo, na prática ele trabalha numa estrutura dominada por processos de produção e relações capitalistas. Enfermeiros, médicos, professores e outros trabalhadores do sector ANCE podem, assim, considerar-se como trabalhadores improdutivos do Estado em instituições onde há uma burguesia (gestores) e, em muitos casos, uma nova classe média. É claro que muitos médicos e professores aspiram a ascender a cargos de proeminência, o que os motiva a orientarem-se politicamente para o campo da burguesia. (No caso dos professores tal não acontece, em geral, com professores do ensino primário ou secundário, mas acontece com frequência com professores universitários que vêm a ser gestores públicos ou privados.)
Existem também instituições do sector ANCE cujo trabalho improdutivo se destina a preservar a ordem social do Estado burguês (sistema judicial, polícia, forças militares, administração governamental e local), a manter e assegurar relações de propriedade privada (sistema judicial, polícia, instituições contabilísticas e de licenciamento, banco central, etc.) e a realizar operações financeiras (Bolsa, instituições de transacção de valores mobiliários, alfândegas, etc.).

7 – O Lumpen-proletariado
No sistema capitalista, como em outros sistemas sócio-económicos anteriores ao advento do capitalismo, existe um conjunto de indivíduos que vivem à margem da produção social; vivem de actividades marginais. Constituem o lumpen-proletariado (do alemão «lumpen» = «andrajo»), termo introduzido por Marx e Engels na obra «A Ideologia Alemã» (1845), reflectindo a ideia das actividades marginais em que caiem trabalhadores em situação de miséria extrema, tornando-se, por exemplo, ladrões e prostitutas. O conceito ganha precisão na obra de Marx «O 18 do Brumário de Luís Bonaparte» ([9]), onde é assim descrito (dois termos traduzidos e ênfase nossos):
«A pretexto de criar uma sociedade de beneficência, o lumpen-proletariado de Paris foi organizado em secções secretas, cada uma delas dirigida por um agente bonapartista, e sob a chefia de um general bonapartista. Lado a lado a roués [devassos] arruinados, com duvidosos meios de vida e de duvidosa procedência, junto a descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, encontravam-se vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, saltimbancos, chantagistas, lazzaronis [ratoneiros], carteiristas, trapaceiros, jogadores, alcoviteiros, donos de bordéis, carregadores, escriturários, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos, em suma, toda uma massa informe, difusa e errante que os franceses chamam la bohème [a boémia]: com esses elementos, tão afins a ele, formou Bonaparte o corpo da Sociedade 10 de Dezembro.»
Leão Trotsky aprofundou o conceito ([10]) e, tal como Marx e outros autores posteriores, caracterizou o lumpen-proletariado como fácil de atrair às fileiras da reacção. Descreve assim a tomada de poder por Benito Mussolini na sua obra (não traduzida em português) «Fascismo: O que é e como combatê-lo» ([tradução nossa]): «Através da agência fascista o capitalismo põe em movimento as massas desesperadas da pequena burguesia e os bandos desclassificados e desmoralizados do lumpen-proletariado – todos os inumeráveis seres humanos a quem o capital financeiro conduziu ao desespero e frenesim». A marginalidade e desespero do lumpen-proletariado imprimem-lhe uma mentalidade mercenária ao serviço de um chefe da reacção.
A caracterização de Marx continua a ser usada pelos sociólogos actuais, marxistas ou não, que incluem no lumpen-proletariado todos aqueles que vivem fora do sistema salarial do trabalho embora dependam da economia formal para a sua existência. Para além dos citados exemplos, acrescentam: vigaristas, traficantes de droga, contrabandistas e gestores de apostas.
Atenção: nada tem a ver com o lumpen-proletariado a grande massa de trabalhadores desempregados, socialmente inseridos na busca de um trabalho e que mantém uma consciência proletária, combatendo ao lado dos trabalhadores activos pelas suas reivindicações sociais ([11]).

8 – Nota Final
A identificação (e caracterização) das classes do sistema capitalista, tal como expusemos, continua a ser seguida por sociólogos e estudiosos da economia política, marxistas e não marxistas. Novos contributos ao tema têm incidido mais sobre aspectos particulares da caracterização das sociedades capitalistas actuais, nomeadamente no que se refere a políticas de rendimento e à mobilidade entre classes. Quanto à identificação de outras classes, são escassas as tentativas nesse sentido, com exemplos de insucesso ([12]) e, menos frequentes, de sucesso ([13]).

[7] V. I. Lenin, "A Great Beginning. Heroism of the Workers in the Rear", Trabalhos Coligidos, 28/6/1919.
[8] F. Engels, "Princípios Básicos do Comunismo". Edições «Avante!».
[9] Kar Marx, "O 18 do Brumário de Louis Bonaparte", Editorial Centelha, 1975.
[10] Seguimos aqui a Wikipedia (versão inglesa): http://en.wikipedia.org/wiki/Lumpenproletariat.
[11] Michael Lebowitz, What Makes the Working Class a Revolutionary Subject? (http://monthlyreview.org/2012/12/01/what-makes-the-working-class-a-revolutionary-subject)
[12] Um caso de insucesso é a proposta de uma exótica «classe ideológica» no trabalho de J.K. Lindsey, "The Conceptualization of Social Class", Studies in Political Economy, vol. 3, 17-36.
[13] Um caso de sucesso é a identificação e caracterização da lumpen-burguesia primeiro proposta no livro de A.G. Frank, "Lumpenbourgeoisie: lumpendevelopment; Dependence, class, and politics in Latin America", Monthly Review Press, 1972.  A lumpen-burguesia é burguesia de países neocolonizados altamente dependente da burguesia do império e com comportamento criminoso. Um exemplo flagrante é o da burguesia colombiana enfeudada aos EUA que chacina o seu próprio povo recorrendo a forças paramilitares ¾ fora, portanto, do controlo do Estado ¾ e engajada em actividades criminosas de narcotráfico.

sábado, 11 de maio de 2013

A «Ciência» da Austeridade

Foi recentemente noticiado, pelos jornais e outros meios de comunicação social, um erro detectado num artigo de investigadores americanos. O artigo defendia a baixa da dívida pública (DP) num sentido argumentativo da política de austeridade.
O erro teria sido cometido numa folha Excel. A forma como foi noticiado o assunto era de molde a levar o público a pensar que não houve mais que uma simples distracção, e que tudo não passou de um pequeno fait divers. A realidade, porém, é bem mais complexa, sinistra e, por isso, merecedora de uma análise detalhada. É o que nos propomos aqui fazer.
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A crise económica «do petróleo», de meados dos anos setenta, e a queda de lucro dos investimentos de capital que se observava por essa época levou a classe capitalista a procurar saídas económicas e ideológicas para o keynesianismo então praticado. O keynesianismo, que se propunha estabilizar o capitalismo, livrá-lo de crises, através de medidas de controlo do mercado e de investimentos públicos, só tinha sido possível no pós-guerra por existir um grande exército de trabalhadores desempregados, aumentado pelo «baby boom» do pós-guerra, e por existirem largos capitais disponíveis para o investimento no sector produtivo, investimento que tinha os incentivos das novidades técnicas do pós-guerra (rádio, televisão, electrodomésticos, etc.).
A saída encontrada para o keynesianismo só podia ser uma saída de reacção social. Milton Friedman e os seus «Chicago boys» ofereceram-na aos capitalistas. Propuseram uma visão económica que regredia às origens da economia política clássica (a visão liberal), com a defesa do mercado como gerador de equilíbrios; fizeram-no de forma hiperbolizada, com a divinização do «mercado livre». Nessa linha de pensamento sustentaram a privatização total de empresas públicas, incluindo a saúde e a educação. Todos os dirigentes reaccionários dos anos oitenta pegaram avidamente nesse pacote neoliberal, a começar por Thatcher, Reagan e Pinochet. No caso dos dirigentes «ocidentais» fornecia-lhes o pretexto necessário para baixar salários e atacar sindicatos e outros direitos dos trabalhadores, bem como para começar a desmantelar o «Estado Social» com privatizações de empresas do sector público (hospitais, transportes, electricidade, etc.). Tudo na perspectiva de conceder um novo fôlego ao capitalismo.
O FMI e o Banco Mundial (BM), instituições criadas no pós-guerra com o objectivo de firmar a hegemonia do capital americano a nível mundial, rapidamente passaram também da visão keynesiana para a neo-liberal. Ela foi corporizada no chamado «Consenso de Washington» (1981) que enumera um conjunto de «instrumentos políticos» guiando a acção do FMI e BM na concessão de empréstimos. Os «instrumentos políticos» incluem a redução das despesas públicas. Estas e outras medidas do «Consenso», justificadas pelas teorias neoliberais, tinham e têm por objectivo consolidar a hegemonia do capitalismo norte-americano e dos seus associados ocidentais (Europa e Japão).
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É sabido que a política económica da UE e zona euro se insere na visão neoliberal. O desmantelamento do «Estado Social» tem vindo a ocorrer com maior ou menor intensidade conforme os países, sempre justificado por regulamentos como o limite de 60% do PIB da dívida pública (DP) estabelecido no Pacto de Estabilidade e Crescimento. De facto, 12 em 17 países da zona euro não satisfaziam em 2010 tal limite; desses, fazia parte a Alemanha com 83% de DP (Eurostat).
Porquê 60%? É certo que se parte dos lucros dos capitalistas é absorvida pelo Estado, sob a forma de empréstimos, menos sobra para investimentos; além disso, o controlo estatal de áreas economicamente viáveis para a produção de mais-valia retira a possibilidade do capital se expandir. Por estes motivos o capital privado não gosta de DP elevada. Contudo, havia que explicar os 60%, não em termos do interesse do capital, mas em termos «politicamente correctos», de prejuízo do crescimento do valor produzido pela economia, de prejuízo do crescimento do PIB. O que há de especial no valor 60%? Ninguém na UE sabia justificar muito bem. As construções teóricas de Friedman (aliás, contendo vários erros) também não forneciam explicação; esta teria de ser buscada em estudos empíricos. Foi então que em 2010 Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff publicaram dois artigos nos quais, com base num estudo envolvendo 20 países de economia capitalista desenvolvida e o período de 1946-2009, reivindicavam a existência de um limiar a partir do qual o crescimento do PIB médio para os 20 países decaía acentuadamente com a razão DP/PIB. Esse limiar era 90%.
Carmen Reinhart é uma cubana naturalizada americana, professora na Universidade de Maryland, investigadora do NBER (National Bureau of Economic Research) que trabalhou nos anos noventa no FMI. Kenneth Rogoff é professor na Universidade de Harvard e trabalhou no FMI (que defendeu acerrimamente contra um prémio Nobel de Economia).
Quando o trabalho de Reinhart e Rogoff (que designaremos simplesmente por «RR») foi publicado foi logo entusiasticamente acolhido pelo FMI, pelo Comité Orçamental do Senado dos EUA e por todos os meios de comunicação ao serviço do capital: Financial Times, The Economist, Wall Street Journal, New York Times, etc. Finalmente os capitalistas dispunham de um trabalho científico para justificar a «austeridade».
*    *    *
Em Abril de 2013 três investigadores (Thomas Herndon, Michael Ash, Robert Pollin) do Departamento de Economia da Universidade de Massachussetts Amherst publicaram um artigo intitulado «Does High Public Debt Consistently Stifle Economic Growth? A Critique of Reinhart and Rogoff» (http://www.peri.umass.edu/fileadmin/pdf/working_papers/working_papers_301-350/WP322.pdf) que se propunha replicar a análise do trabalho RR, estudando criticamente o assunto. Usaram a mesma folha Excel (emprestada por RR) e, portanto, os mesmos dados relativos ao PIB e à DP de 20 países de economia capitalista desenvolvida no período de 1946-2009. Os dados tinham sido categorizados por RR nos 4 grupos da tabela abaixo:


Categoria de percentagem da razão DP/PIB

Abaixo de 30%
Entre 30% e 60%
Entre 60% e 90%
90% ou mais
Países (*)
17
20
19
10
Países-anos
426
439
200
110
(*) EUA, Canadá, países da UE, Japão, Austrália, Nova Zelândia.

Os trabalhos RR tinham chegado ao seguinte resultado:

Valor médio da razão DP/PIB

Abaixo de 30%
Entre 30% e 60%
Entre 60% e 90%
90% ou mais
Valor médio do crescimento do PIB
4,1%
2,8%
2,8%
-0,1%

RR concluíram daqui que 90% de dívida pública em termos de PIB era o limiar a partir do qual existia grave prejuízo do crescimento da economia.
Entretanto, ao replicar os resultados, os três investigadores, que designaremos simplificadamente por HAP, deram-se conta que RR tinham cometido os seguintes erros nos dois trabalhos de 2010:
1 – Exclusão selectiva de dados
No período de 64 anos de 1946-2009, havia originalmente faltas de dados para alguns países; entre outras coisas, os registos dos vários países não começavam todos em 1946. Este é um problema comum em dados económicos. Mas o mais curioso é que RR procederam nesses dados a uma exclusão selectiva: retiraram da análise os dados de períodos iniciais da Austrália (1945-1950), Nova Zelândia (1946-1949), e Canadá (1946-1950). Ora, só no caso da Nova Zelândia 3 dos dados excluídos caíam na categoria 90% (ou mais) com crescimento do PIB positivo e elevado. Os valores da taxa do PIB para a Nova Zelândia nesses 4 anos são: 7,7, 11,9, -9,9, 10,9 porcento. Com a exclusão destes quatro valores sobrou apenas um ano (1951) na categoria 90% com taxa do PIB de -7,6%
2 – Erro de selecção na folha Excel
Um erro cometido por RR na folha Excel levou a excluir totalmente os registos de 5 países: Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá e Dinamarca. Este erro, só por si, contribuiu para baixar em 0,3% a taxa do PIB na categoria mais alta de DP/PIB.
3 – Cálculo de médias exótico
Em cada categoria de DP/PIB RR calculam a média por país para os vários anos e, só depois, calculam a média para todos os países. Assim, por exemplo, A Grécia e a Grã-Bretanha, ambas com 19 anos na categoria de 90% (ou mais) de DP/PIB e com taxa de PIB positiva contribuem tanto para a média quanto o único ano de taxa de PIB negativa da Nova Zelândia mencionada em 1!
4 – Erro de transcrição?
Na transcrição da taxa de PIB da Nova Zelândia em 1951, da folha Excel deste país para a folha Excel de todos os países, RR cometeram um erro: aparece -7,9% em vez de -7,6%. Só por si este erro faz baixar de 0,1% o valor da média.

Em suma, em vez de um trabalho cuidado, RR apresentam um trabalho descuidado, cheio de erros, sendo um deles ¾ o cálculo das médias ¾ grave. O resultado do cálculo sem erros, apresentado no trabalho HAP, é o seguinte:


Valor médio da razão DP/PIB

Abaixo de 30%
Entre 30% e 60%
Entre 60% e 90%
90% ou mais
Valor médio do crescimento do PIB
4,2%
3,1%
3,2%
2,2%

Isto é, em vez da queda drástica de 3,9% da taxa média do PIB na maior categoria de DP/PIB, constata-se apenas uma queda moderada de 1%.
As quatro diferentes fontes de erro anteriormente assinaladas contribuíram todas para a queda da taxa média do PIB na categoria mais elevada de DP/PIB. Todas. Esta espantosa «coincidência» não pode deixar de levantar a suspeita de que RR, como os dados não suportavam o seu preconceito ideológico, trataram de manipular os dados para que o resultado passasse a ser o que queriam que fosse.
RR não se limitavam a dizer que o aumento da DP/PIB levava ao decréscimo da taxa de crescimento do PIB. Como vimos, diziam mais. Diziam que 90% de DP/PIB era um limiar a partir do qual a taxa do PIB decrescia mais do que devia: decrescia não linearmente. A figura abaixo mostra os diversos valores da taxa do PIB para cada categoria de DP/PIB. As médias calculadas por RR estão assinaladas por losangos; as calculadas correctamente por HAP estão assinaladas por bolas. Os cálculos errados de RR levaram a suportar a ideia da evolução da DP/PIB como mostrada a vermelho. Na realidade a evolução é como mostrada a azul.
Figura adaptada do trabalho de Herndon T, Ash M, PollinR Does High Public Debt Consistently Stifle Economic Growth? A Critique of Reinhart and Rogoff.

No trabalho HAP os autores também efectuaram os cálculos das médias introduzindo duas novas categorias de DP/PIB: 90 a 120% e acima de 120%. Continuaram a não detectar nenhuma queda abrupta da taxa de crescimento do PIB. Para além disso, aplicaram um teste estatístico comparando as diferenças de médias entre as categorias 60-90 e entre 90-120 face à diferença 30-60. O resultado foi: não há diferenças estatisticamente significativas.
*    *    *
Em suma: uma das «verdades» propaladas pelas luminárias neoliberais do FMI, apoiada entusiasticamente pelos manipuladores de marionetes do BCE e outras instituições ao serviço do capital financeiro (sendo uma das marionetes e true believer o acéfalo e insensível Vítor Gaspar) cai pela base.
E acresce que há ainda uma outra questão não abordada no trabalho HAP: a questão da causalidade. Todo o trabalho de RR segue a interpretação causal do FMI: a de que é a dívida pública excessiva que causa o declínio do crescimento do PIB. De facto, para níveis elevados de DP/PIB no actual quadro das «austeridades» das economias desenvolvidas a causalidade é inversa: é o declínio do PIB que causa a crescentemente excessiva dívida pública. Basta olhar para o que está acontecer em Portugal.
Reinhart e Rogoff não se deram por vencidos com o artigo HAP. Avançaram justificações do tipo de tapar o sol com uma peneira que só podem fazer rir. O leitor encontra mais sobre este assunto em Michael Roberts, Revising the Two RRs (http://thenextrecession.wordpress.com/2013/04/17/revising-the-two-rrs/).