domingo, 28 de outubro de 2012

A Direita cerra fileiras no ataque aos trabalhadores

Chamámos já a atenção, em artigos anteriores, para uma quantidade de factos que configuram um cerrar de fileiras de toda a direita (CDS, PSD, PS) com vista a poder levar a cabo a tarefa de roubar o povo trabalhador e demolir os apoios sociais e serviços públicos, para canalizar fundos para o grande capital, em especial o financeiro, nacional e internacional.
Tudo enquadrado no «programa de ajustamento», mais uma das tais designações «respeitáveis» que os serventuários do grande capital inventaram para designar o programa de roubo aos trabalhadores. Imaginação não falta a esses indivíduos sem escrúpulos na invenção de designações assépticas, que façam parecer «respeitável» o que é simplesmente uma agressão ou tragédia para quem trabalha. Como a de designar o despedimento por «cessação de vínculo laboral». Despedimento? Não; uma mera desvinculação.
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Depois de algum nervosismo e algumas fissuras no campo da direita, surgidas no seguimento das manifestações populares (ver n/ artigo «Por enquanto, Passos-Gaspar, 1 – Povo, 0» de 26 de Setembro) a direita rapidamente recuperou de um certo incómodo e, precavendo-se para um futuro que adivinha agitado, procura criar uma espécie de «Frente Unida» do capital contra o trabalho.
No cerrar de fileiras tem-se assistido, por um lado, ao reforço do entendimento entre o PSD e o CDS, por outro lado, à aproximação entre o PSD e o PS. Perante a ameaça de um recrudescimento da luta popular, a direita prepara, assim, dois tipos de alternativa: 1 – O ataque forte e frontal; 2 – O ataque subreptício por adormecimento, desorientação e ludíbrio das forças do trabalho, com a ajuda dos «socialistas». É uma receita velha como o mundo.
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1 – O ataque forte e frontal
O reforço do entendimento entre PSD e CDS, depois de algum puxar de orelhas do PSD ao CDS, tem sido visível nas declarações recentes de altas figuras de ambos os partidos, culminando neste último fim-de-semana na realização de jornadas parlamentares conjuntas com a participação de todos os ministros. A intenção de apresentar perante a esquerda (PCP e BE) e a opinião pública um bloco firme em defesa do Orçamento de Estado (OE) para 2013 (ver n/ artigo « Assalto do Governo: espremendo o povo ao serviço do Capital!» de 16 de Outubro) é clara. PSD e CDS esperam, assim, com uma iniciativa conjunta de acerto de agulhas, pôr fim a alguma desarticulação entre os dois partidos. O líder parlamentar do PSD disse, num encontro com os jornalistas, que «Os ministros vêm cá explicar as políticas e as opções orçamentais»; o líder parlamentar do CDS, explicou por seu turno que as jornadas serviam para preparar a discussão do Orçamento do Estado que é «difícil».
Algumas figuras do campo da actual coligação gostariam mesmo de reforçá-la com outros partidos da direita; J. Ribeiro e Castro do CDS exprimiu a ideia (21 de Outubro) de que «Uma AD teria sido melhor para o país», referindo-se à Aliança Democrática que além do CDS e PSD englobava o PPM e que governou Portugal de 1979 a 1983. A incorporação na coligação de latifundiários e tierratenientes monárquicos, com as suas ligações à facção ultra-reaccionária do clero, formaria assim como uma espécie de hoste abençoada de consolidação do ataque aos trabalhadores. Entretanto, Duarte Pio não tem dúvidas: para ele, a «alternativa  muito clara» é a restauração da «Instituição Real». À direita de tudo e todos está, como não podia deixar de ser, João Jardim. Quanto a ele os «portugueses vão-se enterrar com os políticos do regime» (o «revolucionário» João Jardim não está no regime, sabiam?). Diz mesmo que «Há que acabar com o actual sistema político e com a partidocracia que estão a afundar o país». João Jardim não está a pensar em Salazarismo (que ideia!); está talvez a pensar em Jardinismo.

2 – O ataque subreptício
No ataque subreptício enquadram-se as movimentações quer para obter uma alternativa de governação PSD+PS, quer com PS sozinho, em resultado de novas eleições (eventualmente antecipadas).
Jardim Gonçalves, o patrão do BCP, não tem dúvidas: «o melhor Governo para o País seria PSD mais PS» (declarações à TV em 22 de Outubro). A ideia de um tal Governo de «Salvação Nacional» ¾ que seria de facto um Governo de consolidação da «Destruição Nacional» ¾ tem sido emitida pelas mais diversas personalidades, desde Jardim Gonçalves a Marinho Pinto (a quem, apesar de tudo, se devem posições corajosas na informação dos cidadãos sobre o que se passa na Justiça e na respectiva dignificação). Invoca Marinho Pinto o breve percurso do IX Governo (1983-1985) dito do «Bloco Central» formado pelo PS (Mário Soares) + PSD (Mota Pinto), cantando loas ao seu desempenho: «souberam colocar o interesse nacional acima dos interesses imediatos dos respectivos países» (JN, 8 de Outubro). Não, Sr. Marinho Pinto, não cante loas a esse malfadado Governo do «Bloco Central»: foi ele que estabeleceu um acordo com o FMI com graves repercussões económicas e sociais que levaram o país a entrar em recessão em 1984 (pela primeira vez desde 1975) e a aumentar o número de desempregados para 400 mil (um máximo histórico até então!); foi ele que iniciou o rumo febril das privatizações e desmantelamento do sector empresarial do Estado; foi ele que abriu as portas à Banca privada, com a constituição do BCP liderado por um fundador do PSD – a bem, naturalmente, dos interesses dos capitalistas representados pelo bloco central, e não a bem de qualquer mítico «interesse nacional», frase com que os capitalistas sempre encobrem os seus interesses; foi ele, finalmente, que iniciou a destruição do sector produtivo (começando por cimentos e adubos) a par de um aumento da exploração do trabalho. Tudo sob a capa da «modernização»!
O próprio Passos Coelho não desdenharia um governo de Bloco Central, por razões óbvias e em antecipação de uma mais que provável derrota eleitoral em futuras eleições. Já começou a piscar o olho ao PS «desafiando-o» a «envolver-se no aprofundamento da reforma do Estado» e numa espécie de «refundação» do acordo com a troika. No fundo, a ideia chave do «Bloco Central».
O PS tem mantido uma posição manobrista, ambígua quanto baste, que lhe dê latitude para, com boas razões «para socialista ver», poder enveredar numa ou noutra via de solução governamental, conforme o que sair de próximas eleições.
A. J. Seguro, secretário-geral do PS, afirmou em 17 de Outubro, quando ainda se faziam sentir as fissuras entre CDS e PSD, que uma crise política «não é desejável»; mas, logo a seguir, usou palavras violentas (a violência das palavras não custa nada e cai sempre bem nas mentes «socialistas»!) para se referir ao OE-2013 que qualificou de «uma verdadeira bomba atómica fiscal». Bem, pelos vistos, a «bomba atómica» não perturba muito A. J. Seguro para quem o mais importante é, como afirmou, evitar uma «crise política». Aliás, A. J. Seguro tão pouco perturbado está que  quis antecipar a discussão do OE para despachar rapidamente este frete.
Entretanto (27 de Outubro), criticou Passos Coelho pela «falta de ambição» demonstrada na cimeira europeia. Ambição!? Para fazer o quê? Quanto ao «desafio» [1] de Passos Coelho afirmou que «não haverá acordos nas costas dos Portugueses. O primeiro-ministro tem que explicar o que quer». Ó Passos! Estás a ouvir? Explica lá ao Seguro o que queres que ele ainda não percebeu. Depois, sim, se verá; mas nunca «nas costas dos Portugueses». Agora, o que o A. J. Seguro e todos os dirigentes do PS [2] sabem desde já é que nada de alinhar com a esquerda. Safa! Era o que faltava! Por isso mesmo todos os deputados do PS se abstiveram na votação das duas moções de censura (PCP, BE) na AR no passado 4 de Outubro.
Um apontamento relativamente a Jorge Sampaio. Disse ele em 23 de Outubro p.p.: «há mais vida para além do Orçamento». A afirmação é, já de si, bastante ambígua. Quer isto dizer que Jorge Sampaio, relativamente ao Orçamento, acha que devemos assobiar para o lado ¾ talvez, por exemplo, indo para um retiro de meditação franciscana e observar a vida das flores e dos passarinhos ¾ ou, pelo contrário, quer dizer que se deve ser contra a preocupação da satisfação do compromisso orçamental com a troika, e olhar sim para a vida dos trabalhadores? Jorge Sampaio explica: o que ele quer dizer é que a «possibilidade de se enviar o Orçamento para o Tribunal Constitucional tem de ser equacionada» e que isto «é uma decisão muito difícil, ainda bem que não sou presidente da República» (se não, pelos vistos, não saberia o que fazer; onde é que já assistimos a este filme?), pelo que aconselhou os governantes a «olhar em volta» (para as flores e os passarinhos?). Satisfeitos com a explicação?
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Face ao cerrar de fileiras da Direita, qual o desempenho da esquerda? Insuficiente, no nosso entender. PCP e BE continuam, a nosso ver, com uma praxis bastante rotineira, em que dizem umas coisas acertadas na AR mas pouco passam disso. Quer-nos parecer que a desinformação e falta de perspectivas nas mentes portuguesas continuam abissais. Não vão ser os comícios ¾ fundamentalmente para os militantes ¾ nas épocas eleitorais que vão alterar substancialmente esta realidade.
É certo que PCP e BE têm dinamizado as manifestações populares e está marcada uma greve geral em Novembro. Óptimo. Mas uma coisa é mover, outra é esclarecer. Que tal, entre outras ideias possíveis, voltar à divulgação de panfletos e organizar sessões abertas de esclarecimento?
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A situação política que vivemos não é uma situação que se resolva por atalhos curtos. Ela é uma de várias manifestações de uma situação mais geral dos países capitalistas desenvolvidos: a situação da degradação do capitalismo com a liquidação do chamado «Estado social».
Tínhamos expressado a nossa convicção no nosso artigo de 16 de Outubro («Assalto do Governo») de que a crise não iria durar apenas dois ou três anos. Em 24 de Outubro ficámos a saber que, se pecávamos, era por moderação; a convicção anunciada da Comissão Europeia é que só daqui a 30 ou 40 anos Portugal conseguirá regressar a uma percentagem da dívida pública considerada aceitável pela UE (Pacto de Estabilidade e Crescimento: 60%; [3]).

A crise actual não será uma crise passageira!
O PS não é solução da crise, mas sim parte do problema!

[1] A palavra «desafio» é uma das tais que os políticos da direita em Portugal têm abandalhado. Tal como a palavra «coragem» e outras. Para eles é «desafio» o apelo ao conluio contra os trabalhadores; não é «desafio» a tomada de medidas que satisfaçam as reais necessidades dos trabalhadores e do progresso e independência do país. Para eles é «coragem» atacar impunemente o bem-estar dos trabalhadores, não é «coragem» a assunção de políticas que acabem com as grandes riquezas imorais e as gritantes desigualdades sociais.
[2] Estamos no nosso direito de dizer «todos os dirigentes do PS» porque, primeiro, a abstenção foi unânime e, segundo, numa votação daquela importância nenhum dirigente do PS se pronunciou de forma contrária. Nem mesmo o trovejante Manuel Alegre.
[3] Já referimos no nosso artigo «A Crise do Euro. Parte II» que este compromisso dos 60% é, em grande medida, um mito. De facto, em 2010, 12 países dos 17 da zona euro (71% dos países) não cumpriram o compromisso.

domingo, 21 de outubro de 2012

A Economia convencional: uma pseudociência (IIIb)

IIIb. A curva da oferta de mercado
No artigo anterior tínhamos analisado o que se passava quanto à oferta de bens num mercado monopolista, com uma só firma.
Tínhamos visto, que para o monopólio não existe uma curva da oferta. Para fixar o ponto óptimo de operação, o monopólio, para além da curva da procura, precisa de duas curvas e não de uma: custo total e receita total ou, em alternativa, receita marginal e custo marginal. A intersecção destas duas últimas curvas determina a quantidade óptima a produzir (óptima porque maximiza o lucro). Usando depois a curva da procura, obtém-se o preço óptimo.
Continuando a seguir o livro de Steve Keen Debunking Economics (ver parte I neste blog) vamos agora analisar a questão da curva da oferta de um mercado «perfeitamente competitivo». Será que neste caso existe uma curva da oferta?
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Um mercado com várias firmas é «perfeitamente competitivo», segundo a definição neoclássica, se: todas as firmas fabricam o mesmo produto, não havendo diferenças do ponto de vista dos consumidores; cada uma das firmas só reage ao preço de mercado, desconhece e não reage ao que fazem as outras firmas. Nenhuma firma, portanto, pode influenciar o preço de mercado; tem de tomar o preço que o mercado impõe.
Nesta visão de mercado competitivo os economistas neoclássicos defendem que cada firma só pode olhar para um preço de equilíbrio sem o poder influenciar, porque: se a firma vende acima do preço de equilíbrio os consumidores passam a comprar a outras firmas, logo, a primeira irá decrescer o preço até ao ponto de equilíbrio; se vender abaixo do preço de equilíbrio será inundada de consumidores e irá aumentar o preço.
Sendo assim, é como se cada firma «visse» uma curva de procura horizontal, impondo o valor do preço de mercado; digamos 434,5 € para o exemplo da tabela 1 constante do artigo anterior (Parte IIIa). Então, a receita total passa a ser uma recta (em vez da parábola da figura 1, mostrada na Parte IIIa) e a receita marginal uma constante: o preço de mercado, 434,5€:
receita marginal = preço de mercado = 434,5€ (valor constante)
A situação é ilustrada na figura 1a abaixo. A intersecção da recta do custo marginal com a curva do custo marginal (idêntica à do monopólio) determina de uma só vez o preço e a quantidade óptima, 113 unidades, do mercado competitivo. Não são precisas 3 curvas como no caso do monopólio. Quanto à curva da oferta de mercado, dizem os neoclássicos, basta somar as curvas de custos marginais de todas as firmas. Suponhamos que eram 10 firmas; obteríamos o resultado ilustrado na figura 1b. Nesta figura a curva da oferta é a curva do custo marginal do conjunto (agregado) das 10 firmas. A intersecção dá- -se para o preço de mercado, 434,5 €, e para uma quantidade óptima de 1132 unidades » 10´113.
Parece tudo bem, não é verdade?


Fig. 1. a) Num mercado competitivo a receita marginal de uma firma é constante e igual ao preço de mercado, preço esse que nenhuma firma pode influenciar; a intersecção com o custo marginal da firma determina a quantidade a produzir. b) A curva da oferta de mercado obtém-se somando as curvas de custos marginais das firmas individuais.

De facto não está tudo bem e a construção da figura 1 é impossível de realizar. Vejamos porquê. A construção parte de duas assunções: 1- quando há muitas firmas cada firma é tão pequena que vê uma curva de procura horizontal, e a sua produção não influi no preço de mercado; 2 - se uma firma aumenta a produção de 1 unidade, então como as outras firmas não reagem ao que faz a primeira (ver definição acima), a produção total do agregado de firmas também sobe de 1 unidade.
Ora, estas duas assunções são inconsistentes, como é possível provar matematicamente com rigor ([1]). Vamos, aqui, ilustrar geometricamente a razão da inconsistência, com a ajuda da figura 2. Nesta figura mostra-se uma recta descendente da procura e uma ascendente da oferta, do agregado de firmas. Se uma firma aumenta a produção de 1 unidade, então pela condição 2 acima, a curva da oferta desloca-se para a direita, para a recta a tracejado. O deslocamento é pequeno mas existe. Se nada mais acontecesse, o preço iria para a nova intersecção da recta da procura com a recta a tracejado da oferta. Mas, os neoclássicos dizem que não; dizem que, como cada firma vê uma recta de procura horizontal, tudo se passa como se a firma que aumentou a produção visse um pequeníssimo segmento de recta (a vermelho e tracejado) junto ao preço inicial; logo, sem variação de preço. Mas tal afirmação equivale a dizer que a recta da procura, em vez de ser construída por adição de pequeníssimos segmentos de recta com a inclinação da própria recta, poderia ser construída por adição de pequeníssimos segmentos de recta horizontais, o que é manifestamente impossível ([2]). Seria o mesmo que dizer que sendo um pequeno espaço à volta de cada um de nós essencialmente plano, então toda a Terra é plana!
Em suma, a curva da oferta não existe.

Fig. 2. Se a oferta de uma firma aumenta de 1 unidade a curva da oferta desloca-se para a direita (a tracejado) mas, segundo os neoclássicos, sem modificar o preço porque a procura é encarada, em torno do preço, como um pequeno segmento horizontal. Mas isso corresponde a dizer que a curva da procura pode ser construída por soma de muito pequenos segmentos horizontais, o que é manifestamente errado.

Já que a curva da oferta não existe, quando as duas assunções acima são tidas em conta, levanta-se a questão: o que acontece num mercado competitivo mas em que abandonamos a assunção 1: a produção de qualquer firma influi no preço de mercado? A resposta é: o preço e a quantidade produzida serão exactamente os mesmos como se houvesse um monopólio!
No livro de Steve Keen são apresentados outros resultados, em particular desmentindo a crença de que a maximização do lucro num mercado competitivo corresponde a igualar receita marginal e custo marginal. São também apresentados resultados de simulações numéricas que mostram o bem fundado das críticas e a falta de fundamento das crenças de Economia neoclássica sobre o comportamento do mercado competitivo.
No próximo artigo (Parte IV) veremos mais pormenores interessantes sobre este assunto.

 [1] A demonstração matemática é a seguinte: Seja um número arbitrário de firmas produzindo quantidades qk, e seja Q a soma de todas as quantidades: Q = åqk. A condição 2 corresponde a qi/qj = 0, para todo o i diferente de j. Então, é fácil ver que dQ/dqi = 1. Seja P o preço e determinemos como varia com qi. Temos dP/dqi = dP/dQ.dQ/dqi pela regra da derivação encadeada. Logo, dP/dqi = dP/dQ. Logo, é impossível ter simultaneamente dP/dqi = 0 e dP/dQ < 0. A submissão de um artigo de Steve Keen a uma revista de Economia neoclássica mereceu de um dos revisores o comentário de que a regra de derivação encadeada não se aplicava à Economia!!!
[2] Corresponde ao erro crasso, na Matemática, de considerar infinitesimais como valendo zero.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Os 99% e os 1%

Um pouco por todo o mundo têm surgido, ultimamente, movimentos de protesto contra as desigualdades sociais. Um dos mais emblemáticos e amplamente noticiado foi o Occupy Wall Street («Ocupem a Wall Street», centro de negócios do grande capital americano), em grande parte inpirado pelas insurreições populares da primavera árabe.


Manifestação dos 99% perto da Wall Street.

Os manifestantes do «Ocupem a Wall Street» tinham como slogan principal, que aparecia em muitos cartazes, o seguinte: We are the 99% («Nós somos os 99%»). O slogan tem directamente a ver com o problema das desigualdades sociais do mundo capitalista desenvolvido, problema esse que se vem agudizando dado o progressivo declínio do sistema capitalista (ver o que escrevemos sobre a descida da taxa de lucro no n/ artigo «A Crise do Euro» neste blog).
Porquê 99%? É esta questão que vamos aqui analisar, em termos simples, começando pelos EUA e indo depois para os países europeus da Zona Euro, que inclui Portugal.
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Vamos a factos.
A figura 1 mostra a distribuição de rendimento anual dos EUA em 2010. Gráficos de rendimento como este podem construir-se (e constroem-se), em muitos países do mundo, usando como dados as declarações de rendimento dos agregados familiares para o IRS. No eixo horizontal temos intervalos de rendimento (no caso da figura, intervalos de 5.000 dólares de amplitude, excepto para os dois últimos intervalos); no eixo vertical temos a percentagem de agregados familiares que aufere um rendimento que cai num dado intervalo. Por exemplo, para o intervalo de 5.000 a 9.999 dólares, verifica-se ter havido em 2010 cerca de 4,2% de agregados familiares (vamos chamar famílias para simplificar) com rendimentos anuais nesse intervalo.
Note-se como o gráfico mostra altas percentagens na zona dos baixos rendimentos exibindo uma tendência decrescente para os altos rendimentos. Aliás o gráfico da figura não está completo. Para estar completo teríamos que prolongar o gráfico até ao rendimento máximo auferido em 2010 por um cidadão americano: o espantoso rendimento anual de 3.710.000.000$ (quase 4 biliões de dólares) do Sr. Bill Gates. Isto é, o leitor terá de imaginar o gráfico da figura 1 prolongado para a direita cerca de 14 vezes!!!
Fig. 1. Distribuição do rendimento anual nos EUA em 2010.

Como a informação contida num destes gráficos, mesmo incompleto, é grande, os estatísticos procuraram arranjar maneiras de, através de poucos números, transmitir a informação essencial e permitir uma fácil comparação entre anos e países. Para tal, começam por determinar qual o valor abaixo do qual se situa o rendimento de uma certa percentagem de famílias. Por exemplo, relativamente ao rendimento anual dos EUA em 2010, os estatísticos determinaram que metade das famílias teve rendimento abaixo de 50 mil dólares e que 90% das famílias declarou um rendimento inferior a 135 mil dólares. Este último caso pode obviamente experimir-se de outra forma: 10% das famílias teve um rendimento superior a 135 mil dólares. Os 50 mil dólares e os 135 mil dólares designam-se por limiares do rendimento (respectivamente, limiar dos 50% e limiar dos 90%).
Estamos agora em condições de entender a questão inicial: qual é o rendimento acima do qual se situa 1% das famílias dos EUA em 2010? É cerca de 300 mil dólares. Mas, atenção: como já vimos que o gráfico se prolonga muito para além dos 300 mil dólares, o rendimento médio dos 1% do topo é bem maior!
A figura 2 mostra o que um estatístico calculou com base nas distribuições de rendimento dos EUA entre 1979 e 2007. São mostradas 3 curvas de rendimento médio ([1]): o rendimento médio de 1% das famílias no topo da distribuição, as famílias mais ricas; idem, para 60% das famílias com mais baixos rendimentos (lembrar o que dissemos acima sobre metade das famílias ter rendimentos abaixo de cerca de 50 mil dólares); idem, para 20% das famílias com mais baixos rendimentos. A figura é clara: O rendimento médio dos 1% do topo foi, em 2007, cerca de 27 vezes maior que o rendimento médio dos 60% do fundo! Além disso, à medida que o capitalismo como sistema vai declinando e tornando-se cada vez mais parasitário, as desigualdades sociais têm-se vindo a agravar brutalmente: em 1995 o fosso anterior correspondia a um factor de 10 vezes; em 2007 quase triplicou!
  
 Fig. 2. Evolução do rendimento médio nos EUA para o topo de 1% e os 60% e 20% de mais baixos rendimentos ([1]).

Não dispomos dos números mais recentes, mas podemos ter a certeza que com os enormes resgates do Estado americano aos bancos e corporações financeiras (ver n/ artigo «A Crise do Euro»), isto é, com a dádiva de mão beijada do dinheiro dos contribuintes ao grande capital financeiro, a evolução não se alterou substancialmente e o fosso pode até ter-se agravado.
Mas há outro lado da questão que é igualmente importante: é o de quanto representa o rendimento total de uma certa fatia das famílias em termos do rendimento nacional bruto (RNB), isto é, em termos de toda a riqueza que é criada num país num dado ano ([2]). A figura 3 mostra como evoluiu nos EUA essa fracção do RNB. Vemos, por exemplo, que em 2005 os rendimentos dos 1% de famílias mais ricas correspondiam a 17% do RNB e 1 milésimo das famílias mais ricas correspondia a mais de 7% de toda a riqueza produzida! Pior: sabe-se que em 2007 a fracção do RNB correspondente aos 1% das famílias mais ricas era de 20,9%!

Fig. 3. Fracção do RNB de percentagens de famílias de mais altos rendimentos, nos EUA. Fonte: wikipedia.

Percebe-se, agora, as razões de ser da justa indignação dos participantes do «Ocupem a Wall Street».
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Vejamos agora o que acontece na Zona Euro, incluindo Portugal. Para tal, vamos usar os dados disponíveis no Eurostat, de bem menor quantidade que os disponíveis para os EUA. Também, infelizmente, não dispomos dos valores dos rendimentos máximos para cada país ([3]), pelo que não é possível obter rendimentos médios como na figura 2.
Vamos começar por inspeccionar os quocientes dos limiares de rendimento para 60% e 99% das famílias, tal como se apresentam na tabela 1, relativamente ao ano de 2010 (para muitos países, no momento em que escrevemos, não estão disponíveis os valores para 2011). Apenas se apresentam os valores para 15 dos 17 países da Zona Euro; os dois países não representados são de muito pequena população (Malta e Chipre).
Por exemplo, na Alemanha e em 2010, 60% das famílias tiveram um rendimento anual abaixo de 21.141 € e 99% das famílias tinveram um rendimento anual abaixo de 67.597 €. O quociente destes dois valores é 3,2: o limiar dos 99% é mais de três vezes maior do que o limiar dos 60%. Países com maior desigualdade social, deste ponto de vista, terão um maior quociente.

Tabela 1. Limiar do rendimento anual de 60% e 99% das famílias em países da Zona Euro (2010).
País
(A)
60% das famílias com rendimento abaixo de (€)
(B)
99% das famílias com rendimento abaixo de (€)
Quociente B/A
Alemanha
21.141
67.597
3,20
Áustria
22.874
72.565
3,17
Bélgica
21.815
58.071
2,66
Eslovénia
12.959
32.109
2,48
Eslováquia
6.820
16.995
2,49
Espanha
14.900
46.721
3,14
Estonia
6.650
21.931
3,30
Finlândia
23.636
67.253
2,85
França
22.427
84.055
3,75
Grécia
13.908
52.619
3,78
Holanda
22.568
66.122
2,03
Irlanda
22.799
98.027
4,30
Itália
18.251
57.611
3,16
Luxemburgo
36.427
102.971
2,83
Portugal
10.043
38.794
3,86

Ora, Portugal exibe o segundo maior valor, 3,86. Isto é, do ponto de vista da razão entre os dois limiares, Portugal é o segundo pior país. O pior de todos é a Irlanda com 4,3.
Note-se que estes quocientes expressam apenas uma comparação entre dois estratos de famílias: o estrato dos 99% e o estrato dos 60% (sub-estrato do anterior). Dito de outro modo: os quocientes reflectem uma repartição de riqueza do estrato dos 60% face ao total dos 99%.
Seria interesante construir uma tabela com valores análogos aos da figura 2 (rendimento médios dentro de cada estrato), mas tal não é possível porque não estão disponíveis os dados necessários para tal. Entretanto, para Portugal, consegue-se obter uma medida parecida com a da figura 2 para o ano de 2010. Nesse ano a maior declaração de rendimentos parece ter sido a do presidente do Banco Espírito Santo ([4]): 1,5 milhões de euros (a módica quantia de 125 mil € por mês). Isto quer dizer que o valor médio nos 1% do topo andará à volta de 750.000 € e o rendimento médio dos 60% de mais baixos rendimentos andará perto do limiar dos 40%: 7,5 mil €. O quociente entre as duas estimativas de médias é 100; bem maior do que a dos EUA para 2007!
Analisemos agora a fracção do rendimento nacional bruto correspondente a 99% das famílias nos mesmos países da Zona Euro (tabela 2). Por subtracção para 100% fica-se a conhecer a fracção do RNB dos 1% do topo (3.ª coluna da tabela 2).

Tabela 2. Fracção do RNB dos 99% das famílias (e 1% do topo) em países da Zona Euro (2010).
País
O rendimento total de 99% das famílias corresponde à seguinte percentagem do RNB:
Logo, o 1% do topo corresponde à
seguinte percentagem do RNB:
Alemanha
93,6
6,4
Áustria
94,1
5,9
Bélgica
94,1
5,9
Eslovénia
95,0
5,0
Eslováquia
94,5
5,5
Espanha
96,1
3,9
Estonia
91,9
8,1
Finlândia
93,7
6,3
França
93,1
6,9
Grécia
93,4
6,6
Holanda
94,6
5,4
Irlanda
92,9
7,1
Itália
94,4
5,6
Luxemburgo
94,0
6,0
Portugal
93,7
6,3

O país com o 1% mais rico é a Estónia. Portugal fica na 5.ª posição em 15 países, ex-aequo com a Finlândia.
Isto é, Portugal situava-se, em 2010, no terço superior dos países da zona Euro que têm a mais rica camada do topo dos 1%.
Mas será que a evolução, ao menos, tem sido no sentido de os mais ricos ficarem menos ricos?
A figura 4 mostra a evolução da fracção do RNB dos 1% do topo em Portugal e, s média da Zona Euro. Claramente se nota que:
1 - Portugal esteve sempre acima da média da Zona Euro. Isto é, os muito ricos em Portugal foram sempre, comparativamente, mais ricos do que acontece em média na Zona Euro (17 países).
2 – A evolução recente da concentração da riqueza no topo é no sentido de ser mais elevada em Portugal do que a média da Zona Euro. Inclusive, já em plena crise e com o pacto de agressão da troika, a concentração de riqueza de 2010 (6,3%) para 2011 (6,4%) aumentou, aumentando também o desvio face à média da Zona Euro! Quem disse que a austeridade é para todos?

Fig. 4. Evolução da concentração da riqueza nos 1% do topo.

Sim, os 99% de Portugal têm todas as razões possíveis para manifestar a sua indignação. Já o estão a fazer.


Manifestação no Terreiro do Paço em 29 de Setembro de 2012. Uma autêntica manifestação dos 99%!

 [1] Fonte: http://lanekenworthy.net/2010/07/20/the-best-inequality-graph-updated/. Este gráfico teve em conta a taxa de inflação; contudo, este aspecto não é importante dado tratar-se de uma comparação de valores que sofrem a mesma depreciação.
[2] O rendimento nacional bruto inclui os lucros de capitais de um país investidos no exterior e exclui os lucros de empresas estrangeiras exportados para fora do país.
[3] Os rendimento máximos são, contudo, do conhecimento dos serviços de impostos dos respectivos países.
[4] Fonte: http://www.agenciafinanceira.iol.pt/economia/ricos-milionarios-irs-impostos-rendimentos-agencia-financeira/1275539-1730.html.