quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A Economia convencional: uma pseudociência (IIc)

IIc. A curva da procura de mercado
No último artigo vimos como os economistas neoclássicos obtinham curvas da procura de mercado para um consumidor; curvas descendentes como desejam considerar pelas razões que vimos na parte IIa (estamos a seguir o livro de Steve Keen Debunking Economics; ver parte I neste blog).
Vimos, nomeadamente, como para um consumidor com orçamento fixo e preço fixo de um de dois bens, se determinava a curva da procura de mercado do outro bem. No exemplo de maçãs e laranjas fixávamos o preço das maçãs e víamos como a quantidade de laranjas procurada no mercado se relacionava com o respectivo preço.
A construção efectuada para dois bens pode generalizar-se para mais de dois bens.
Vimos, também, como toda a teoria do «consumidor racional» envolvia construções, que no mundo real, seriam em geral impossíveis de realizar. Vamos, de momento, ignorar esse facto e avançar para o caso de dois consumidores. Antes disso, porém, ainda um detalhe para a situação de um consumidor. Tal como pudemos efectuar a construção para orçamento fixo, preço das maçãs fixo e preço das laranjas variável – tínhamos neste caso uma recta rodando em torno do ponto fixo da quantidade de maçãs –, seria também possível efectuar uma construção semelhante considerando a relação dos preços constante e o orçamento variável. Um pouco de reflexão mostra que, geometricamente, basta que a recta de orçamento se desloque paralelamente a si própria tal como na figura 1. Ao deslocar-se paralelamente, estamos a manter constante a relação entre os preços.

Fig. 1

Na figura 1 consideramos um número arbitrário de bens, de que destacamos um deles: pão, no gráfico da esquerda. Supomos os preços fixos e temos 3 rectas de orçamento constante: 500 €, 1000 € e 1500 € (podemos supor que é o salário mensal). Seguindo a teoria do «consumidor racional» determinamos os pontos de tangencia das curvas de indiferença às rectas de orçamento. Unimos os pontos de tangencia e obtemos o que os economistas chamam de curvas Engel: mostram como as quantidades consumidas variam com o orçamento disponível.
O gráfico da esquerda ilustra a curva Engel para um bem necessário, como o pão; à medida que o orçamento aumenta a procura de pão vai diminuindo e aumentando a de outros bens. O gráfico da direita ilustra a chamada curva Engel neutral, de um bem neutral (uma recta): Um aumento de orçamento implica um aumento proporcional do consumo do bem até…infinito! Ninguém sabe dizer que bem é esse. (Há outros tipos de curva Engel que não nos interessam.)

Avancemos, então, para o caso de dois ou mais consumidores. Em princípio, pareceria que bastava somar duas curvas ou mais de procura, uma para cada consumidor. Contudo, o problema não é tão simples, pela seguinte razão: os produtores são também consumidores e este simples facto acarreta duas consequências: uma variação de preço de um bem pode fazer variar o rendimento real do produtor, logo o seu orçamento disponível para o consumo; as quantidades adquiridas no mercado podem fazer variar o preço dos bens (como se verá aquando da discussão da curva da oferta). Isto é, enquanto a construção para um único consumidor assumia orçamento fixo (não dependente do preço; [1]) e preços fixados independentemente da procura de mercado, com dois ou mais consumidores tais requisitos são, em geral, inválidos.
Esta questão foi analisada por economistas neoclássicos (o leitor interessado pode ler a história com pormenores no livro de Steve Keen) tendo desembocado na demonstração teórica do seguinte resultado ([2]): a curva da procura de mercado é descendente se (se e só se) as curvas de Engel dos consumidores forem neutrais e iguais para todos os consumidores. Fora destas condições a curva da procura de mercado pode ter qualquer forma arbitrariamente sinuosa (mas sem cruzamentos, [3]), incluindo a curva da figura 2 que mostrámos na parte IIa deste blog!
Já vimos que uma curva de Engel neutral é extremamente exótica. Steve Keen é de opinião que tal corresponderia a um mundo em que só existisse um bem. A conclusão seria, portanto, que a famosa «lei da procura» - curva descendente à procura aumenta quando preço desce - só se realizaria no caso de consumidores todos iguais e consumindo apenas um único bem! Como este cenário é totalmente irreal resta a conclusão óbvia: a curva da procura de mercado não é descendente; é arbitrariamente sinuosa com secções em que a quantidade sobe quando o preço desce e outras em que a quantidade desce quando o preço desce. Já tínhamos visto a impossibilidade prática do «consumidor racional»; vemos agora que a procura de mercado dos «consumidores racionais», como os neoclássicos não se cansam de apresentar, é teoricamente impossível!
Steve Keen discute no seu livro as razões porque os economistas neoclássicos ocultam estes factos (que eles próprios demonstraram!) ou, quando não os ocultam, distorcem-nos.
No próximo artigo veremos algo de mais dramático acontecer com a curva da oferta de um mercado perfeitamente competitivo.

[1] Efectivamente, existe uma construção, dita compensação de Hicks, que separa o chamado efeito de substituição de um bem por outro do chamado efeito de orçamento, quando o preço de um dos bens varia. Mas o efeito de orçamento que é compensado com a construção de Hicks é um efeito indirecto; não um efeito de variação directa de orçamento.
[2] Condições Sonnenschein-Mantel-Debreu, 1972. O resultado essencial, de que a curva da procura podia ter qualquer forma, já tinha sido descoberto por Gorman em 1953.
[3] Em rigor, qualquer curva definida por um polinómio.