IIb. A curva da procura de mercado
No último artigo vimos que tipo de curva da procura de mercado os economistas gostam de considerar (estamos a seguir o livro de Steve Keen Debunking Economics; ver parte I neste blog): preço descendente com o aumento da quantidade. Vamos agora ver as razões que fundamentam tal tipo de curvas.
A ideia chave é a ideia de utilidade (benefício ou preferência) de um bem. Consideremos um único consumidor e dois tipos de bens: maçãs e laranjas. Suponhamos que o consumidor atribui valores de utilidade a esses bens segundo a regra: a utilidade é crescente com a quantidade (mais quantidade de qualquer um dos bens é sempre mais útil). Olhemos para a figura 1. Qualquer que seja a quantidade de laranjas (5, 10, etc.) a utilidade das maçãs cresce com a quantidade. Por exemplo, com zero laranjas 5 maçãs têm 0,2 de utilidade. Utilidade essa medida numa escala perfeitamente arbitrária; na figura a escala vai de 0 a 1, mas podia ser qualquer escala crescente. Para zero maçãs, 5 laranjas têm 0,22 de utilidade. Como a utilidade deve ser sempre crescente com a quantidade de qualquer dos bens, 5 maçãs e 5 laranjas com 0,8 de utilidade (seguir as curvas da figura 1) obedecem de facto à regra (0,8 é maior que 0,2 e 0,22).
Fig. 1
Em suma, a superfície crescente da figura 1 obedece à regra da utilidade. Temos assim satisfeito um dos axiomas a que deve obedecer o «consumidor racional», segundo os economistas neoclássicos. Outro axioma é o da continuidade: as superfícies de utilidade têm de ser contínuas. Portanto, quando o leitor for ao supermercado como «consumidor racional» terá de começar por construir uma superfície de utilidade contínua; por exemplo, entre 2 e 3 maçãs, terá de ver qual a utilidade que atribui a 2,5 maçãs, 2,5101 maçãs, etc.; é melhor ir preparado com um canivete ([1]).
Suponhamos que se fixa uma utilidade constante; por exemplo, de 0,8. Obtém-se então uma «curva de indiferença» (ou de igual utilidade), figurada a cheio na figura 1. As curvas de indiferença obviamente não se cruzam ([2]).
Outro axioma do «consumidor racional» imposto pelos economistas é o de que cabazes equilibrados de bens devem ser preferidos a cabazes extremos. Vejamos o que isto quer dizer com a ajuda da figura 2, onde se figuram duas curvas de indiferença de dois bens: x e y. O que os economistas pretendem (mais outro requisito do «consumidor racional») é que quando se toma qualquer combinação de duas quantidades dos dois bens – no caso da figura as médias das quantidades de x1 e x2 e de y1 e y2 –, deve-se obter um maior valor de utilidade que nos extremos. Exemplo concreto para 2 e 6 maçãs ou laranjas (x1=y1=2; x2=y2=6): a utilidade de 4 laranjas e 4 maçãs é maior do que a utilidade de 2 laranjas e 6 maçãs ou de 2 maçãs e 6 laranjas. Com este requisito (satisfeito pelas curvas de indiferença das figuras 1 e 2) obtêm-se curvas convexas («abrindo» para cima) que permitem obter o efeito que os economistas pretendem.
Fig. 2
Estamos agora em condições de passar àquilo que Steve Keen designa por «cálculo do hedonismo»: a maximização da utilidade. Suponha o leitor que dispõe de 10 euros e o preço das laranjas é de 1 €/kg e o das maçãs 2 €/kg. Se não comprar laranjas, então pode comprar 10/2 = 5 kg de maçãs; se não comprar maçãs, pode comprar 10/1 = 10 kg de laranjas. Um pouco de reflexão mostra que, de facto, pode comparar qualquer combinação de laranjas e maçãs sobre a recta da figura 3 que une os pontos (0,5) a (10,0).
Fig. 3
Qual a melhor combinação, no sentido de maximizar a utilidade? É fácil constatar que tal corresponde ao ponto de tangencia da recta com a curva de indiferença mais afastada, correspondendo a maior utilidade. Na figura 3, essa combinação óptima é de 3,5 kg de maçãs e 3 kg de laranjas (corresponde efectivamente a 3,5´2 + 3´1 = 10 euros; [3]).
Fig. 4
Em cima temos um gráfico semelhante ao da figura 3. O orçamento disponível é fixo: 10 €. O preço das maçãs é fixo: 2€/kg. Só pode variar o preço de um dos bens, neste caso, o das laranjas. Vemos a mesma recta para o preço das laranjas=1€/kg que mostrava a figura 3 com a quantidade óptima de laranjas do «consumidor racional»: 3kg. O gráfico em baixo relaciona quantidade de laranjas com o seu preço por kilo: marcamos, então, o ponto 1€/kg em correspondência com 3 kg de laranjas. Fazemos, em seguida variar o preço das laranjas; seja 2€/kg, o que corresponde à recta a vermelho (10/2=5 kg de laranjas se quantidade de maçãs=0). Determinamos a nova quantidade óptima (temos de ter «todas» as curvas de indiferença): 2 kg (por exemplo; depende das curvas de indiferença). Temos mais um ponto para o gráfico abaixo: para 2€/kg, 2 kg de laranjas. Etc. A construção repete-se e no fim, juntando todos os pontos, temos a curva da procura das laranjas no mercado para um consumidor.
Para curvas de indiferença que satisfaçam os requisitos acima a curva da procura encontrada é descendente e convexa; exactamente como os economistas neoclássicos gostam.
A construção efectuada para dois bens pode generalizar-se para mais de dois bens.
Podemos desde já assinalar um gravíssimo problema associado a esta laboriosa construção: Nenhum consumidor é «racional» segundo a teoria exposta. É simplesmente impossível a qualquer consumidor aplicar a construção acima.
No mundo real qualquer consumidor aplica uma variedade de regras simples e práticas quando vai ao mercado. Mas, na hipótese sumamente improvável de um consumidor se dar ao trabalho de aplicar a teoria exposta, depararia com duas inultrapassáveis dificuldades: 1 – É simplesmente impossível determinar pontos óptimos porque todas as quantidades de bens são representadas por valores inteiros. Já assinalámos isso acima: as laranjas podem vender-se à peça ou em sacos de determinado peso; nunca se vendem meias laranjas, etc., assim como não se vendem meios sacos de arroz, etc. 2 – Num cabaz de compras não muito pequeno, contendo por exemplo 12 bens, mesmo que um consumidor dispusesse de toda a paciência do mundo para fazer a construção acima, normalmente não o conseguiria. De facto, suponhamos que cada um dos bens tem 4 possíveis quantidades de aquisição; então os cálculos teriam que ter em conta 412 = 16,7 milhões de cabazes de compras diferentes! Se o carrinho de compras contiver 20 bens e cada bem tiver 3 quantidades diferentes de escolha, o total de diferentes carrinhos de compras possíveis é simplesmente astronómico: 320=3.486.784.401! Nem com a ajuda de um computador o consumidor conseguiria ser «racional». Diz Steve Keen, no seu livro, que os neoclássicos assobiam p'ro lado; ficam impávidos e serenos perante estas constatações.
No próximo artigo veremos o que acontece quando, em vez de um, temos mais de um consumidor. Migramos, portanto, da micro para a macroeconomia. Veremos que, mesmo seguindo à risca toda a teoria anterior, o resultado é uma machadada final na curva da procura de mercado descendente.
[1] Esta observação pode ser respondida dizendo que se trata apenas de um modelo matemático. Contudo, esta resposta não colhe, porque o tratamento matemático prosseguido pelos economistas leva ao cálculo de derivadas parciais para calcular pontos de tangencia. Quer as derivadas parciais quer os pontos de tangencia não estão definidos num espaço discretizado de bens. Mesmo aplicando métodos interpolativos de aproximação, resta a questão dos bens com muito poucos valores discretos. Por exemplo, a aproximação discreta de derivadas parciais e de pontos de tangencia é arbitrariamente má quando só existem dois valores para um bem (p. ex. 0 sacos e 1 saco).
[2] Os economistas chamam a isto o resultado da transitividade: se A é mais útil que B e B mais útil que C, então A é mais útil que C. Um «palavrão» para designar algo que decorre obviamente da superfície ser monótona crescente.
[3] Para os que gostam do rigor da matemática o ponto óptimo é dado por px/py = -dy/dx, onde os p's designam preços e x e y as quantidades.