sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O sector financeiro. III: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões do costume (continuação).

Nos dois artigos anteriores (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/10/o-sector-financeiro-i-o-ultimo-e.html, http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/10/o-sector-financeiro-ii-fraudes.html ) vimos o que representa o sector financeiro nas economias capitalistas desenvolvidas, ligadas ao imperialismo. Vimos, em particular no último artigo, as causas do ambiente de gangsterismo que sempre rodeia aquilo que é hoje em dia a actividade dominante no sector financeiro: a especulação financeira.
  
No presente artigo vamos começar a caracterizar e exemplificar as burlas do sector financeiro.

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Uma grande parte das burlas financeiras corresponde a variantes dos seguintes esquemas/tipos básicos (classificação nossa):

- Bolha especulativa
Burla que consiste em fazer aumentar artificialmente o preço de valores mobiliários.
  
Provavelmente o primeiro exemplo histórico deste tipo de burla é o de John Blunt, presidente da Companhia dos Mares do Sul, constituída durante o reinado de Jorge I de Inglaterra em 1711 ([1]). John Blunt angariava subscritores de nomeada para as acções da Companhia, incluindo o próprio rei Jorge I, espalhando rumores de lucros substanciais da Companhia, lucros que de facto não existiam. Usava também alguns esquemas complicados de transacções de capitais para dar mais suporte aos rumores. Conseguiu, assim, que o valor das acções crescesse rapidamente de £130 para um pico de £1050 num período de 8 meses! A dada altura as ruas de Londres, perto da sede da Companhia, estavam apinhadas de gente que se acotovelavam para comprar acções. Quando a bolha ruiu -- e chega sempre o dia do «ajuste de contas» para qualquer bolha, quando o capital fictício tem de mostrar o que vale -- John Blunt e comparsas foram presos.
  
Actualmente, com as técnicas informáticas e a globalização das comunicações, as «bolhas» e outras burlas podem tornar-se bem mais perigosas ([2]) e alastrar aos sectores financeiros de praticamente todo o globo.
A bolha «dot.com», das empresas de vendas pela Internet, foi uma bolha especulativa que levou o índice NASDAQ das acções de empresas dos EUA a subir de 2000 para 5000 no período de um ano (de 1999 até ao início de 2000). Não houve neste caso um «vilão oficial», como John Blunt que foi detido quando a bolha rebentou, julgado (no julgamento mostrou-se amnésico, uma doença que já é hábito atacar os vilões oficiais e que veremos também aparecer em Dias Loureiro arguido nas fraudes do BPN) e teve de pagar uma indemnização que o deixou na pobreza (na altura, a burguesia mercantil não estava para brincadeiras). Em muitas bolhas modernas («dot.com», bolhas imobiliárias, etc.) não existem vilões oficiais; apenas os do costume: banqueiros, gestores, corretores, directores financeiros, etc. Tudo «boa gente» que continua incólume nos «negócios como de costume».
  
No caso da bolha imobiliária causadora da Grande Recessão iniciada em 2008, o engenho dos gestores de grandes bancos (J.P. Morgan, Goldman Sachs, etc.) e de firmas de investimento (Merryl Lynch, etc.) no invento e promoção dos tóxicos CDOs («Collaterized Debt Obligations», pacotes de títulos de hipoteca que combinavam títulos de baixo risco com títulos de alto risco, praticamente incobráveis) foi de tal ordem que o economista Steve Keen (um dos poucos que previu esta bolha imobiliária) diz no seu livro ([3]; ver nossos anteriores artigos sobre Economia) que nunca pensou que tal inventividade pudesse ser possível.
  

É claro que bolhas como a «dot.com», a «imobiliária», e outras, não são consideradas oficialmente como burlas. De facto, nos actuais Estados burgueses dominados pelo capital financeiro, a criação de tais «bolhas» faz parte da conduta normal da burguesia financeira, da forma como opera e sempre operou. Imaginar que Estados burgueses possam existir sem «bolhas» de especulação financeira (já estudadas por Marx em meados do séc. XIX, embora ainda sem as proporções actuais), simplesmente por aplicação de legislação adequada (a legislação ao serviço da burguesia), são simples devaneios de sonhadores. Trata-se, aqui das burlas normais contra o «povo», contra os trabalhadores, praticadas em nome dos interesses normais da burguesia. No fundo, trata-se de um dispositivo extra para sugar ainda mais-valia do trabalho, dado que estas burlas afectam em última instância os trabalhadores, que irão ter de aguentar os prejuízos causados pelas bolhas (através de resgates, etc.). E, num Estado burguês, o papel reservado pela grande burguesia para o «povo» é precisamente esse: o de aguentar a grande burguesia.
   

Uma versão soft deste tipo de burla (não chega a ocasionar uma «bolha») é o crime de «manipulação de mercado» de que foi acusado Jardim Gonçalves e comparsas do BCP por manipulação do preço das acções e angariação de accionistas para os aumentos de capital do banco, manobrando diversos funcionários e usando offshores.

- Pirâmide
Burla que consiste em pagar dividendos elevados a depositantes ou a compradores de bens mobiliários, à custa da angariação de novos depositantes ou compradores. 
  
Parece que o inventor da pirâmide foi o italo-americano Charles Ponzi que, em 1920, inventou um esquema simples pelo qual vendia títulos de investimento com juro de 50% a 45 dias! Ou seja, um aumento de capital anual de 2.463%! (não é «gralha»: é dois mil quatrocentos e sessenta e três por cento; ver [4]). Como justificava Ponzi tal maná aos investidores? Dizia que comprava «cupões-resposta internacional» (CRI) em Itália por um baixo preço vendendo-os nos EUA a um preço muito mais alto. Na realidade, quem se desse ao trabalho de analisar convenientemente o esquema de tráfico de CRIs veria que tais ganhos eram impossíveis por múltiplas razões ([5]). Na realidade ninguém se deu a esse trabalho, até um analista financeiro denunciar o esquema e levar ao ruir da pirâmide. O tráfico de CRIs era apenas a cortina de fumo usada por Ponzi, que parece nunca ter sequer tentado traficar em CRIs. Isto é, nenhuns lucros legítimos de quaisquer actividades económicas entravam no fundo de investimento de Ponzi, uma característica que se repete em muitas burlas financeiras. O fundo Ponzi baseava-se pura e simplesmente no esquema da pirâmide: o dinheiro de novos investidores (depositantes) servia para reembolsar os anteriores que (felizmente para eles) solicitavam o reembolso antes do colapso da pirâmide, em vez de reinvestir todo o dinheiro empatado, como muitos levados pela ganância fizeram. Enquanto a pirâmide durou Ponzi teria de atrair cada vez mais investidores (daí o nome de «pirâmide») para poder pagar aos anteriores investidores que reclamassem reembolsos; e convencer muitos desses a não reclamar reembolsos.
  
O conhecido caso da «Dona Branca, banqueira do povo» foi também um caso de burla tipo pirâmide.
  
Por vezes o esquema da pirâmide não é tão simplista como o de Ponzi (e de Dona Branca). Kari Nars descreve no seu livro ([1]) o elaborado esquema de pirâmide inventado por um finlandês residente nos EUA, onde lançou o «clube» de investimento WinCapita (2008), com contas em bancos prestigiados (como o Crédit Suisse), fundos de companhias investidoras e angariação de novos investidores à custa dos já existentes: cada sócio do clube que angariasse novos investidores recebia bónus do clube; bónus que podiam ser substanciais. O clube era algo de muito selecto, onde não entrava qualquer «bicho-careta», sendo exigida uma jóia de entrada de 3.000 euros. A fraude ascendeu a 130 milhões de dólares até ser desmantelada pelo FBI. A cortina de fumo para atrair investidores era a de supostos ganhos com um sistema sofisticado e confidencial de especulação no mercado cambial ([6]).
  
A pirâmide mais espectacular até hoje foi a usada por Bernie Maddof para burlar os seus riquíssimos clientes, juntamente com gestores de fundos de vários países, na sua muito selecta empresa Investment Securities. A burla ascendeu a 22 biliões de dólares (!) e até o maior amigo de Maddof sofreu um «rombo» que o deixou quase na pobreza (os vilões completos não têm amigos). A pirâmide durou mais de 20 anos (!), caso único, que se explica entre outros motivos pelas relações íntimas de Maddof com a entidade reguladora dos EUA (Oliveira e Costa, principal implicado no caso BPN, também tinha sido um alto quadro do Banco de Portugal, a entidade reguladora de Portugal), com o facto de que geria paralelamente um negócio legítimo de investimentos que servia de biombo à pirâmide e ainda por ter inúmeras ligações a bancos «prestigiados» dos EUA e da Europa.

- Transacções de activos fictícios ou com preços fictícios
Numa versão deste tipo de burla são vendidos activos inexistentes ou falsificados, ou, ainda, de valor muito abaixo do valor nominal. Um dos casos relatados por Kari Nars ([1]) é o do general Gregor MacGregor, que tendo participado nas campanhas de Simão Bolívar, se apresentava com grande pompa em Londres, em 1821, como Gregor I de Poyais, um Estado pretensamente paradisíaco perto das Honduras com imensas riquezas naturais incluindo ouro aos montes. A capital de Poyais teria uma Ópera, catedral, bancos e um grande porto. Gregor conseguiu atrair investimentos vultuosos para o seu Estado e inclusive armar navios (contra pagamento dos interessados, bem entendido) que se dirigiram à costa desolada da América Central onde alegadamente se situaria Poyais para verificar (dramaticamente) que o paraíso não existia. 
  
Outro caso deste tipo de burla foi a venda de falsos bilhetes do Tesouro italiano pelo rei dos fósforos sueco Ivar Kreuger, em 1929.
  
Note-se que no mercado de valores mobiliários é muito comum a chamada «venda a descoberto» (short selling): contrato de entrega futura de activos que, no momento do contrato, não se possuem mas são vendidos como se se possuíssem; quem vende tenciona obter mais tarde esses activos. Espera-se ganhar vendendo hoje caro para mais tarde comprar barato. É uma prática arriscada (quem garante que os activos se podem obter mais tarde e, inclusive, a mais baixo preço?) que pode resultar em burla efectiva.
  
Noutra versão deste tipo de burla são oferecidos, por burlões, créditos a outros burlões, muito acima do valor do activo. Um exemplo desta versão de burla foi a venda pela Sociedade Lusa de Negócios (SLN) da empresa Biometrics de Porto Rico, a Dias Loureiro (no âmbito do «caso BPN» de que falaremos num próximo artigo), por 35 milhões de euros; contudo, o documento da SLN regista a venda por apenas «um dólar»!

- Fundos para o bando: burla que assenta num conluio mais ou menos vasto de indivíduos que concorrem no desvio fundos de bancos e de instituições financeiras que controlam ou onde têm forte influência, para servir os seus bolsos e negócios escuros
  
O conluio também pode existir em menor grau noutros tipos de burlas financeiras; na presente categoria de «fundos para o bando», o conluio atinge grandes proporções, envolvendo muitas instituições financeiras numa enorme multiplicidade de negócios. Um dos primeiros casos de «bando» no pós-guerra foi o da prestigiada firma de investimentos International Overseas Services (IOS) «comandada» pelo americano Bernard Cornfeld que veio a sediar a IOS em Paris em 1955. A IOS tinha negócios em todo o mundo. Foi a primeira a usar uma enorme quantidade de firmas offshore em paraísos fiscais para encobrir negócios e contabilidade forjados. As offshores incluíam fundos de investimento, bancos, companhias de seguros e agências de imobiliário. A breve trecho os fundos de clientes passaram a ser investidos na própria IOS e eram feitos «empréstimos-dádivas» a directores e agentes de vendas da IOS para financiar negócios (reais ou forjados). Os «empréstimos» cresceram de tal forma que a IOS se tornou praticamente insolvente vindo a recorrer à burla da pirâmide até que por fim, em 1970, a IOS ruiu.
  
Um outro caso semelhante foi o da gigantesca Enron, que começou como empresa dos EUA na área da energia, até que em 1986 Kenneth Lay e cúmplices usaram uma rede de firmas de investimento e um Banco (Continental Illinois National Bank) para encherem os bolsos (Lay, p. ex., sacou 42,4 milhões de dólares da Enron apenas no ano de 1999) e para subsidiar o partido republicano. A Enron tinha ligações com Bush pai e filho e Lay chegou a ser encarado como sério candidato a Secretário do Tesouro (o equivalente ao nosso ministro das finanças) do governo George Bush. A burla foi alimentada à custa de contabilidade falsificada, com publicação de lucros inexistentes destinados a aumentar os preços das acções.
  
O famoso escândalo do banco Ambrosiano de Itália, em 1982, veio também a revelar-se um exemplo sinistro de «fundos para o bando» ([7]). O Banco Ambrosiano, com fortes ligações ao Banco do Vaticano, era um «banco católico» presidido por Roberto Calvi, conhecido por «banqueiro de Deus». 
  
O Banco do Vaticano, cujo nome oficial é «Instituto para as Obras Religiosas» (IOR), era um dos principais accionistas do Ambrosiano; era presidido pelo arcebispo Paul Marcinkus e estava estreitamente ligado a bancos suíços e italianos propriedade de Michele Sindona, um homem da máfia encarregado da lavagem de dinheiro.
  
O Ambrosiano e o IOR tinham relações com offshores, com bancos de vários países da América Latina (e também das Bahamas, Liechtenstein e Luxemburgo), com a CIA e com a loja maçónica P2 de Itália dirigida pelo sinistro Licio Gelli, traficante de armas, relacionado com proeminentes chefes fascistas da Europa e América Latina, com nazis como Klaus Barbie o «carniceiro de Lyon». Marcinkus assinou cartas de recomendação para a instalação de sucursais do Ambrosiano na Argentina, Peru e Bolívia. 
  
O bando -- Marcinkus, Calvi, Gelli e mais de duas dezenas de comparsas que incluíam prelados da alta hierarquia do Vaticano, inclusive um cardeal --, além de locupletar-se, usou os fundos, por meio de offshores e contabilidade falsificada, para financiar: o partido democrata cristão italiano; Bettino Craxi, primeiro-ministro socialista e Giulio Andreotti primeiro-ministro democrata cristão, ambos com ligações à máfia; o sindicato Solidariedade da Polónia; vários movimentos e agrupamentos anti-comunistas que tiveram acção de relevo no colapso da Europa de Leste; os «contra» da Nicarágua; a Opus Dei; Juan Péron e, mais tarde, a junta militar fascista da Argentina, designadamente o sinistro Emílio Massera acusado de 30.000 mortes e desaparecimentos; vários movimentos fascistas europeus; lavagem de dinheiro de tráfico de drogas para a máfia. Marcinkus e comparsas do Vaticano (e não só) tiveram todo o apoio consciente de Paulo VI e de João Paulo II. Um buraco de 1,3 biliões de dólares levou à instauração de processos por parte da justiça italiana. Calvi foi condenado a quatro anos na prisão mas conseguiu fugir para Londres onde apareceu enforcado debaixo da ponte Blackfriars com pedras e tijolos nos bolsos, aparentemente assassinado pela máfia antes que se «descosesse»; Marcinkus (que quase chegou a cardeal e ficou famoso pela sua frase «Não se pode governar o Vaticano com Ave-Marias»), tal como outros prelados, conseguiu escapar à justiça graças à protecção oficial do Vaticano; acabou por fugir para os EUA. Marcinkus foi também atacado pela doença da amnésia: durante um interrogatório em 1973 nos EUA, disse «Michele [Sindona] e eu somos grandes amigos. Conhecemo-nos há vários anos. […] [Sindona] está muito à frente do seu tempo no que se refere às actividades bancárias»; menos de dois anos depois dizia numa entrevista «A verdade é que nem sequer conheço Sindona.».
  
Portugal também teve o seu «fundos para o bando»: o «caso BPN» que apresentaremos proximamente.

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Próximo artigo:
O sector financeiro. IV: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões do costume (conclusão).
Falaremos do uso de informação privilegiada e outras trapaças do mercado de acções, conluios e cartéis de bancos e o que (não) acontece aos vilões financeiros.

Referências:

[1] Kari Nars «Swindling Billions: An Extraordinary History of the Great Money Fraudsters», Marshall Cavendish Business, 2011.

[2] O livro de Kari Nars inclui um gráfico do índice Dow Jones da Bolsa de Nova Iorque, com anotações das datas de várias burlas financeiras. O reflexo dessas burlas na evolução do índice é evidente.

[3] Steve Keen (2011) "Debunking Economics. The Naked Emperor Dethroned?", Zed Books.

[4] Dado que 45 dias é um oitavo do ano (aproximadamente), 1$ ao fim de um ano valeria (1 + 0,5)8 = 25,63$.

[5] http://en.wikipedia.org/wiki/International_reply_coupon.  Um cupão-resposta internacional (CRI) é um título de valor postal permutável em todos os países membros da União Postal Universal por um ou mais selos postais, destinados a permitir ao expeditor pagar a franquia de uma carta de resposta do seu correspondente no estrangeiro. Deixaram de ser comercializados pelos CTT em 2010.

[6] As transacções especulativas no mercado cambial ("Foreign Exchange trading" ou "forex trading") procuram comprar uma divisa a um baixo preço vendendo-a mais tarde a um preço mais alto, por análise das flutuações de câmbio. Voltaremos a este assunto a propósito dos derivados.

[7] Vários livros se escreveram tendo como pano de fundo o escândalo do Banco Ambrosiano e Banco do Vaticano. Provavelmente o mais famoso e fruto de uma investigação cuidada é o aclamado livro do jornalista de investigação David Yallop, «Em Nome de Deus», publicado em português pela D. Quixote em 2006. Vale a pena também ler: Euler de França Belém, «O livro negro do Vaticano», Jornal Opção, Estado de Goiás, http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/o-livro-negro-do-vaticano; Peter Stoler, Barry Kalb and Jonathan Beaty, «Italy - The Great Vatican Bank Mystery», Time Magazine, http://www.offnews.info/verArticulo.php?contenidoID=34757.  O Banco do Vaticano parece condenado a escândalos permanentes, estando um em curso de investigação por uma comissão do actual Papa.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O sector financeiro. II: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões do costume.

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«Na sua maturidade o capitalismo é cada vez menos um sistema de acréscimo das forças produtivas. É cada vez mais um parasita financeiro, repousando improdutivamente nos sectores produtivos da economia global (principalmente China, Índia, etc.).» ([1]).

Vimos no artigo anterior (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/10/o-sector-financeiro-i-o-ultimo-e.html) a crescente importância do sector financeiro nas economias desenvolvidas dos «países ocidentais». Na realidade, o domínio do capital financeiro em alguns países capitalistas desenvolvidos remonta a finais do século XIX, e esse domínio, como ingrediente básico do imperialismo, foi bem caracterizado por Vladimir Lenine na sua obra «Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo» ([2]). Lenine, contudo, não podia obviamente prever os desenvolvimentos tecnológicos (informática, telecomunicações) e históricos (globalização, divisão de trabalho entre países desenvolvidos e os que se libertaram do colonialismo) que culminaram no inflacionamento do sector financeiro e declínio do sector produtivo de que falámos no artigo anterior.
  
O sector financeiro nada produz. É o sector que trafica em dinheiro, o que não seria muito mau, na óptica capitalista, se por «traficar» entendermos o crédito a actividades produtivas com base num juro de investimento: o lucro dos capitalistas financeiros (banqueiros, executivos de direcção e de gestão financeira de bancos, de firmas de investimento, de firmas de concessão de crédito e de companhias seguradoras, gestores, grandes investidores, altos funcionários de Bolsas e de instituições que transaccionam valores mobiliários, etc.) e uma pequena parcela para os depositantes comuns. Mas o juro de investimento não é mais do que parte das mais-valias criadas pelo trabalho produtivo. E este, como vimos, está em declínio nas «sociedades opulentas», nas sociedades em que o preço da mão-de-obra já não permite lucros concorrenciais com os obtidos em países de grandes exércitos de mão-de-obra barata (ver o que dissemos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-vi-valor.html ).
  
Resta ao capital financeiro uma fonte de potenciais lucros fáceis e a curto ou muito curto prazo: a especulação financeira.
  
Consideramos impossível entender o que se passa actualmente no capitalismo a nível global e ao nível do nosso país, sem entender minimamente o que é e o que representa a actual especulação financeira; quais os seus agentes, móbeis e objectivos.
  
Note-se que a especulação financeira sempre acompanhou o capitalismo desde os seus primórdios, como notou o economista francês do séc. XIX Charles Coquelin ([3]; tradução nossa):
  
«Em cada país a maioria das transacções de crédito processam-se no circuito das relações industriais... O produtor de matérias-primas fornece-as ao manufactor e recebe um título de pagamento para certa data. O manufactor, tendo completado a sua parte de trabalho, fornece o seu produto em termos semelhantes a outro manufactor, que vai continuar o processamento, e desta forma o crédito continua a estender-se, de um para outro, até ao consumidor. O grande comerciante fornece mercadorias a crédito ao retalhista, ao mesmo tempo que recebe crédito do manufactor ou seu agente. […] Desta forma, uma troca incessante de créditos, que se combinam e intersectam em todos os sentidos, tem lugar nas relações industriais.»
  
Quanto ao sector bancário dizia assim o economista inglês J. W. Gilbart, também do séc. XIX ([4]; tradução e comentários nossos):
  
«O objectivo do sistema bancário é dar facilidades ao comércio [ou a investimentos], e seja o que for que dê facilidades ao comércio dá facilidades à especulação. Comércio [ou investimento] e especulação estão em alguns casos tão intimamente ligados que é impossível dizer em que ponto preciso o comércio [ou investimento] termina e a especulação começa… Onde quer que haja bancos, o capital é mais facilmente obtido e a um juro mais baixo. O baixo preço do capital dá facilidades à especulação […]»
  
Este tipo de especulação -- dar crédito a troco de promessas de futuros pagamentos com juros, crédito não suportado por quaisquer activos físicos, isto é, usando capital fictício – sempre foi e continua a ser vulgar na banca. É a causa de várias bolhas especulativas que a história regista e que quando rebentam causam recessões, como a última Grande Recessão de 2008 (despoletada pela crise especulativa do crédito imobiliário, sem garantias, nos EUA e que afectou também, através do sistema bancário, a UE).
  
Entretanto, a especulação financeira evoluiu muito para além do que os economistas do séc. XIX poderiam imaginar. Do conceito actual de especulação financeira fazem parte transacções de alto risco de valores mobiliários (acções, obrigações, divisas, derivados, etc.) ou imobiliários (casas, propriedades, objectos de arte, colecções, etc.) com vista a aproveitar flutuações de preços, independentemente do valor intrínseco subjacente. Imaginemos que o investidor X pretende comprar acções da empresa ABC cujo desempenho e perspectivas de mercado lhe parecem boas. X actua como um investidor habitual, um capitalista que pretende obter uma posição accionista na empresa ABC, absorvendo, portanto, como qualquer outro capitalista rentista, parte das mais-valias que vierem a ser criadas pelos trabalhadores da ABC. Suponhamos, agora, que X efectua a encomenda de um grande número das acções da ABC a um corretor da Bolsa, Y. Y, sabendo que o preço das acções irá subir em consequência da compra do grande número de acções pretendido por X, faz o seguinte: compra para ele próprio acções da ABC ainda antes de efectuar a compra para X. Faz aquilo que se denomina de «front-running» (corrida em frente) com vista a beneficiar da esperada subida do preço das acções quando efectuar a compra para X. Para Y, ao contrário de X, não interessa analisar o valor intrínseco das acções da ABC. Para Y a ABC até pode ser uma má empresa, mal gerida, que irá ter mau desempenho. Só lhe interessa aproveitar-se da expectável subida de preço das acções a curto prazo.
  
O «front-running» é considerado uma simples falta de ética entre investidores. Mas a moral dos capitalistas financeiros é muito elástica e há muitas maneiras de fazer «front-running» incluindo em transacções de alto risco, nas quais, ao contrário do exemplo (um entre muitos possíveis), a flutuação de preços é bem mais difícil ou até impossível de prever.
  
Muitos especuladores pretendem convencer-nos de que a especulação até é um bem para a economia. Por exemplo, a wikipedia ([5]) cita as seguintes palavras de um especulador americano que escreveu o livro «O Especulador como Herói»: «Consideremos alguns dos princípios que explicam as causas das penúrias ou dos excedentes e o papel dos especuladores. Quando uma colheita é muito pequena para satisfazer o consumo normal, os especuladores entram no processo esperando lucrar com a escassez através da compra. As compras que efectuam aumentam o preço, por conseguinte diminuindo o consumo, de forma que a reduzida oferta dure mais tempo. […] quando o preço é mais elevado do que aquele que os especuladores julgam explicável pelos factos, então vendem.» Isto é, o nosso «herói especulador» diz que a especulação é boa porque permite o açambarcamento!
  
Outros incríveis disparates são apontados como benefícios da especulação. A wikipedia aponta, por exemplo, como benefício a «liquidez do mercado». Isto quando é bem conhecido que o ruir das bolhas especulativas e a repentina baixa de preços dos valores mobiliários é causa não de excesso de liquidez, mas sim de falta de liquidez; usada para justificar resgates e dificuldades de crédito dos bancos às famílias e às pequenas e médias empresas.
  
A wikipedia também aponta algumas desvantagens económicas da especulação. Mas esquece-se da mais importante: a especulação financeira corresponde a um desvio de fundos de investimento para «actividades de casino», em vez de serem aplicados para actividades produtivas. E, actualmente, esse desvio de fundos é um desvio colossal!
  
Para vermos quão colossais são os investimentos em especulação financeira basta ter em conta que a estimativa actual do mercado global de derivados (um tipo de jogo que analisaremos noutro artigo) é de um quatrilião de dólares: 1.000.000.000.000.000 $. Corresponde a 14 vezes o PIB anual de todo o globo ([6])! Desse quatrilião de dólares em derivados só uma reduzidíssima parcela não é capital fictício, podendo ser atribuída a actividade não especulativa. O jogo da especulação com derivados também atingiu Portugal, em particular, no recente caso dos «swaps».
  
A «investopedia» ([7]) diz que não, que a especulação não é jogatina. Diz que «a diferença principal é que a especulação corresponde geralmente a assumir um risco calculado e não é dependente apenas da pura sorte, enquanto o jogo depende totalmente de resultados aleatórios ou do acaso». Esta afirmação é absolutamente mentirosa, porque: 1 - O risco de muitos jogos é calculável; 2 - O resultado de uma especulação financeira não é previsível, não é um fenómeno determinístico mas sim aleatório; se não fosse assim todos os especuladores poderiam ganhar com a especulação, o que manifestamente não é verdade; 3 - Na realidade, a especulação financeira é ainda mais «jogo» do que o jogo normal, dado que, enquanto neste os resultados são estatisticamente calculáveis, os daquele não o são porque obedecem a distribuições de dados (flutuações de câmbios, flutuações de cotações, etc.) não estacionárias: as estimativas do comportamento passado e presente podem ser arbitrariamente más como estimativas do comportamento futuro (ao contrário do atirar de um dado ao ar, do extrair uma carta de um baralho, etc.); por isso mesmo, e ao contrário do que afirma a «investopedia», são os riscos dos jogos usuais que são calculáveis, enquanto que os da especulação financeira não são calculáveis. Isto mesmo deixámos na «investopedia» como comentário ([7]); ainda não recebemos qualquer contestação.
  
Mas precisamente porque a especulação financeira é um jogo (e a especulação é hoje em dia responsável pela maior parte dos negócios financeiros), pensar que possa existir um sector financeiro livre de burlas e de escândalos é como desejar que haja jogos sem haver batoteiros, profissionais ou de ocasião
  
Além disso, o próprio clima de casino que impera no sector financeiro do «mundo ocidental» instala também um clima de ganguesterismo que extravasa a simples especulação, e de que iremos dar exemplos gritantes. Clima que afecta tudo que é sector financeiro e contamina outros serviços. Tanto faz serem pequenos como grandes e respeitáveis bancos, pequenas ou grandes firmas de investimento e pequenas ou grandes companhias de seguros.
  
De facto, a única e grande diferença que existe entre a especulação financeira e o jogo é a seguinte: enquanto os desaires ao jogo só afectam os jogadores, os «desaires» da especulação financeira afectam a vida de milhões de trabalhadores, conforme vimos recentemente com o ruir da bolha especulativa imobiliária de 2008 que iniciou a Grande Recessão. Quanto aos desaires dos capitalistas financeiros, podemos dizer que são os «desaires» habituais de jogadores com falta de sorte. Com esta diferença, porém: para muitos deles, lá está o «seu» Estado para os resgatar à custa dos trabalhadores (activos, aposentados e pensionistas). Portanto, para os capitalistas financeiros o jogo da especulação é um jogo viciado contra os trabalhadores; é um jogo em que ganham quase sempre, de uma forma ou de outra. E quanto mais poderosos forem os capitalistas financeiros mais o jogo é viciado. Haja em vista os resgates monumentais a que se vem assistindo no «mundo ocidental», em particular em Portugal no caso do BPN com um resgate que já é estimado em 8,3 biliões de euros (1/9 do resgate «concedido» pela troika; neste caso não foi apenas especulação financeira mas ganguesterismo puro e simples), no BPP com um resgate de 750 milhões de euros, etc.
  
No mundo anglo-saxónico existe uma expressão para designar resgates de grandes bancos, empresas, etc.: «too big too fail» («demasiado grande para falir»). Pois é. No actual capitalismo serôdio, que sobrevive parasitariamente à custa de jogos e vigarices, há duas categorias de vilões: os que são apanhados pelas instituições reguladoras e são catalogados como vilões oficiais; os que são demasiado grandes para falir e os que os apoiam, os vilões do costume. Quer uns quer outros raramente respondem pelos seus actos. Para eles o sistema judicial ao serviço da burguesia raramente encontra razões para penhorar os activos que possuem. Geralmente safam-se com pequenas multas e, inclusive, os vilões do costume costumam ser recompensados com chorudos bónus pela sua perícia em esconder do grande público as sujeiras que se praticam no sector financeiro. Veremos exemplos gritantes disso quando falarmos do caso BPN num próximo artigo.
  
Para terminar apontamos um exemplo esclarecedor (noticiado em alguns canais de televisão estrangeiros e no JN [8]) do completo despudor com que os vilões do costume do sector financeiro operam; despudor e sentimento de impunidade por se sentirem a cúpula do «seu» Estado. Em Junho de 2013, órgãos de comunicação da Irlanda revelavam escutas telefónicas de 2008 a dois dirigentes do Anglo Irish Bank, nas quais estes fazem paródia sobre o pedido de resgate feito pelo banco e a hipótese de nacionalização. Os dois dirigentes conversam, muito divertidos, sobre as mentiras que avançaram para obter do Governo o apoio financeiro desejado supostamente para impedir a insolvência do banco. Riem-se com o facto de terem pedido ao Governo uma injecção de 7 biliões de euros, quando, na verdade, o banco precisava de muito mais. Quando um deles pergunta ao outro como chegou à estimativa de 7 biliões, este diz que foi apenas um número «sacado da cartola» e que não convinha avançar com o montante correcto para não assustar nem o Governo nem os contribuintes. Ambos concordam que o ideal era partir dos 7 biliões e ir aumentando a verba gradualmente, recorrendo sempre ao argumento de que seria «bem pior para toda a gente deixar o banco afundar-se». O Anglo Irish Bank acabou por receber 30 biliões de euros e veio a ser nacionalizado em Janeiro de 2009. Os dois dirigentes mantiveram-se incólumes na administração.
  
Pois bem, como veremos noutro artigo, algo semelhante aconteceu com o BPN e, em menor medida, com outros bancos portugueses. E podemos estar certos de que aquilo que se conhece das vilanias oficiais e do costume é apenas a ponta do icebergue.
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Próximo artigo:
O sector financeiro. III: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões do costume (continuação).
Neste artigo procuraremos explicar e tipificar, com exemplos, os vários tipos de fraudes praticadas no sector financeiro. O nosso propósito é fornecer esclarecimentos que permitam compreender casos portugueses recentes, a apresentar em artigos posteriores.



[1] Michael Roberts (2009) The Great Recession. Profit cycles, economic crisis. A Marxist View. ISBN 978-1-4452-4408-2.
[2] V. I. Lenine, «Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo», tomo 2 das Obras Escolhidas em seis tomos, Editorial «Avante!», 1984.
[3] A citação de Charles Coquelin, "Du crédit et des banques dans la industrie", vem em Karl Marx, "Capital", vol. III, Cap. 25, "Crédito e Capital Fictício", p. 527, Penguin Books Ltd, 1981.
[4] A citação de G. W. Gilbart, "The History and Principles of Banking" vem em Karl Marx, "Capital", vol. III, Cap. 25, "Crédito e Capital Fictício", p. 532, Penguin Books Ltd, 1981.
[6] Michael Sivy "Why Derivatives May Be the Biggest Risk for the Global Economy", Time (Business & Money), 27/2/2013 (http://business.time.com/2013/03/27/why-derivatives-may-be-the-biggest-risk-for-the-global-economy/)
[8] "Banqueiros escutados a parodiar pedido de resgate ao Estado", JN, 25/6/2013.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A «sociedade participativa» e Portugal

No passado dia 17 de Setembro a Associated Press noticiava que o rei holandês tinha feito um anúncio histórico numa reunião comemorativa conjunta da Câmara Alta e da Câmara Baixa holandesas. Anunciou que o «Estado de bem-estar social» do século XX tinha terminado ([1]). Em substituição desse «Estado de bem-estar» estava a emergir a «sociedade participativa» (ou «sociedade de participação»: «participation society» no original [2]).

O que é a «sociedade participativa»? perguntará o leitor. Algum novo e progressivo estádio do desenvolvimento humano, mais avançado que o capitalismo do «Estado de bem-estar»?
Note-se que mesmo quanto ao «Estado de bem-estar» do Norte da Europa haveria muito a dizer. Os capitalistas dessas «opulentas sociedades de bem-estar» limitaram-se a desviar uma pequena parte das mais-valias criadas pelos imigrantes (turcos, marroquinos, etc.) e pela exploração desalmada de povos inteiros do planeta de onde sacaram matérias-primas estratégicas a baixo custo (basta apontar como exemplo o saque do petróleo nigeriano pela anglo-holandesa Shell e o desastre social e ecológico que causou) para proporcionar um razoável nível de vida aos trabalhadores autóctones e, claro, bónus substanciais aos dirigentes sindicais que apoiaram a colaboração de classes (estabelecendo acordos anti-greve). Quanto a turcos, marroquinos, etc., foram empurrados para guetos com modestos níveis de vida.

Mas voltemos à questão inicial: é a «sociedade participativa» um estádio mais avançado do desenvolvimento humano?

Não.

É um estádio regressivo do capitalismo e do desenvolvimento humano das sociedades «ocidentais» que começaram desde há uns anos a experimentar os efeitos desse estádio emergente.

De facto, o rei explicou o que se entendia por «sociedade participativa»: é a sociedade em que «cada um toma responsabilidade pelo seu próprio futuro e cria os seus próprios apoios de segurança social e financeira, com a ajuda do governo». «Esta mudança para a "sociedade participativa" é especialmente visível na segurança social e nos cuidados a longo prazo». Isto porque «O estado de bem-estar clássico da segunda metade do século XX, particularmente nas citadas áreas [segurança social e financeira, cuidados a longo prazo] desenvolveu organismos que não são sustentáveis na forma actual».

Em suma, e tirando os eufemismos, o que o rei disse é que a «sociedade participativa» é o retrocesso ao capitalismo sem segurança social, sem garantias de emprego e salário (sem «segurança financeira») e sem perspectivas de reformas, pensões e cuidados de saúde (sem «cuidados a longo prazo»). Cada um que se desenrasque -- tome «responsabilidade pelo seu próprio futuro» -- «com a ajuda do governo». Mas esta «ajuda do governo» pós-«Estado-providência» é meramente decorativa e só serve para enternecer os ouvintes, dado que não pode significar mais do que meros aconselhamentos. E cheios de bons conselhos estão o grande capital e o seu Estado. Vimos bem isso em Portugal quer com o banqueiro Fernando Ulrich (achou que devemos aguentar com a austeridade porque até os sem-abrigo aguentam), quer com Passos Coelho (achou que o desemprego e a emigração criam novas oportunidades), quer com outros.

Convém, desde já, notar que quem escreveu o discurso do rei foi o primeiro-ministro do actual governo holandês que é do Partido Liberal. E também convém notar que o Partido Liberal está no governo em coligação com o Partido do Trabalho (o equivalente ao nosso PS), de que uma figura de proa é o Sr. Jeroen Dijsselbloem, actual Presidente do Eurogrupo, instituição que congrega os ministros da Economia e Finanças dos Estados-Membros da Eurozona. E é bem sabido que o Sr. Jeroen Dijsselbloem é um grande apoiante das políticas de Angela Merkel.

Portanto, a ideia da «sociedade participativa» não proveio do rei (aliás, bem alheado dessas «coisas» teóricas, [3]). Podemos estar seguros que é uma ideia de propaganda, despudoradamente construída pelos teóricos de Bruxelas ao serviço do grande capital, em particular dos que decretam as políticas de austeridade na Zona Euro, com vista a deitar poeira aos olhos dos trabalhadores. Note-se que a austeridade já não toca só os países do Sul da Europa. Na própria Holanda têm vindo a ser aplicadas várias medidas de austeridade com as consequências habituais: recessão, falências (existem, como cá, centros comerciais com quase todas as lojas fechadas), desemprego (que já está em 8,7% e deverá subir). Se fosse só nos países do Sul provavelmente o governo holandês nem se teria dado ao incómodo do anúncio do advento da «sociedade participativa» (anúncio feito, com toda a solenidade, através da sacrossanta boca do rei), deixando-nos a nós, os pobretanas do Sul, na santa ignorância de tão seráfico advento. 

De tudo isto, o importante a reter é: a falta de perspectivas do sistema capitalista é implicitamente admitida pelos corifeus económicos e financeiros de Bruxelas. Eles sabem perfeitamente que as políticas de austeridade não vão trazer qualquer solução no sentido de proporcionar um nível de vida digno aos trabalhadores. Resta-lhes apenas vender a solução capitalista anterior à 2.ª Guerra Mundial (e, em certos aspectos, anterior a ela, [4]) como se fosse uma ideia inovadora, anunciada com trombetas reais.

Temos vindo, ao longo de muitos artigos deste blog, a chamar a atenção para o facto de que a actual crise não é uma «crise do euro», isto é, tendo como causa principal o uso de uma moeda única. É uma crise do capitalismo. Mais: ainda não conhecíamos nem o discurso do rei holandês nem a ideia da «sociedade participativa» quando procurámos demonstrar com factos e números a insustentabilidade do desenvolvimento económico no sistema capitalista (ver, em particular: http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-iv-causa-da.html; http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-vi-valor.html ).

Mas voltemos ao discurso do rei. Diz ele que as pessoas esperam e «querem fazer as suas próprias escolhas, organizar as suas próprias vidas, e tomar conta umas das outras.». As pessoas querem ser «independentes do governo» e devem pedir às famílias, amigos e vizinhos para os ajudar quando têm necessidade.

O cinismo destas frases é evidente. Recapitulando:

Desemprego: não há mal nenhum nisso porque os desempregados até «querem ser independentes do governo», querem ser ajudados pelas famílias, amigos e vizinhos.

Pensões, reformas, cuidados de saúde, etc.: nada de Estado; as pessoas esperam e «querem fazer as suas próprias escolhas, organizar as suas próprias vidas, e tomar conta umas das outras.»

Só faltou dizer que os milhões de cidadãos que vivem actualmente na miséria ou à beira dela também não querem nada do Estado, não querem sequer ouvir falar de segurança social, cuidados médicos, etc. (A propósito: segundo dados do Eurostat, a percentagem da população holandesa em risco de cair na pobreza ou na exclusão social subiu para 15,7% em 2011; em Portugal é de 24,4%). Nada disso. Querem, sim, ser «independentes», ser capazes de «fazer as «suas próprias escolhas». Se alguém do governo lhes aparece a oferecer uma reforma ou um cuidado médico ainda são capazes de o correr a pontapé por estar a impedir de serem «independentes» e capazes de «fazer a sua própria escolha» à custa da participação de familiares, amigos e vizinhos. Viva a «sociedade participativa»!

Isto é, regressamos a essa abençoada época em que os trabalhadores eram pobrezinhos, e gozavam desse gozo inebriante de serem alvo da caridadezinha, das sociedades filantrópicas, dos exércitos de salvação, etc.
Os capitalistas, é claro, também vão ter a sua dose de «participação». Vão continuar a participar no saque de mais-valias criadas pelos trabalhadores. Mas agora vão ter ainda mais possibilidades de participação: vão poder participar em acrescidas e inúmeras sociedades caritativas de ajuda aos pobres. Em Portugal, se calhar, ainda iremos assistir ao ressurgir do Movimento Nacional Feminino, com ampla e honrosa participação de primeiras-damas, de socialites e de esposas de abastados banqueiros, todas prenhes de virtudes cristãs, todas comandando a distribuição de sopa dos pobres e de alguns trapos velhos.

*    *    *

Se há coisa em que Portugal bate a Holanda aos pontos é que já estamos muito mais avançados na construção da «sociedade participativa»:

- Temos um desemprego em crescimento, que o governo estima aumentar em 2014 para 17,4%. Isto, apesar de algum decréscimo anunciado em Setembro; só que se tratava de decréscimo causado pelo trabalho sazonal de serviço à mesa em esplanadas por 310 euros por mês (JN, 26/9/2013). Além de que, no cômputo do desemprego, o governo não tem em conta a emigração. Ora, se ao menos todos os desempregados emigrassem, em vez de andarem para aí com reivindicações, o governo teria o grato prazer de anunciar a descida da taxa desemprego para 0%.

- Para além dos cortes já efectuados nas reformas e pensões, sabemos agora que em 2014 vai haver novos cortes, da ordem de 10%, em pensões de sobrevivência e noutras (JN, 7/10/2013).

- Temos um sistema de educação em ruínas com um número de docentes correspondente ao que tínhamos há 16 anos atrás (JN, 5/10/2013).

- Temos postos de finanças fechados que obrigam muitos contribuintes a andar 100 km (JN, 7/10/2013) para tratarem dos impostos.

- Temos cada vez menos médicos e enfermeiras nos centros de saúde e cada vez mais valências fechadas nesses centros (e mesmo extinção de centros).

- Temos um sistema de justiça absolutamente ridículo e desacreditado (ver, a propósito, [5]).

- etc., etc.

E, finalmente, a coroar superiormente a nossa «sociedade participativa» temos uma «sopa dos pobres» que faz inveja à que existia em 1945.

A continuar neste caminho vamos fazer inveja à restante Europa com a nossa inovativa, criadora, espantosa e magnífica construção de uma «sociedade participativa».




[1] Toby Sterling, "Dutch King: Say Goodbye to Welfare State" Associated Press, 17/9/2013. Ver também Vonk (Netherlands), "Dutch king declares the end of the welfare state",  www.marxisten.nl  27/9/2013.


[2] A palavra (composta) holandesa «participatiesamenleving» significa precisamente «sociedade de participação».


[3] O rei está ligado aos interesses do grande capital através dos bens próprios e fundos de investimento que detém ou em que participa. Quis aplicar em 2009 um vultuoso investimento para construir uma estância de luxo em Moçambique, o que gerou controvérsia no parlamento holandês tendo sido questionado sobre a moralidade de construir tal instância num país tão pobre como é Moçambique.


[4] Citamos aqui um texto do Instituto de Segurança Social. «Foi a Lei n.º 1.884, de 16 de Março de 1935 que, em conjunto com diversos diplomas posteriores de regulamentação, lançou a estrutura para a criação de um sistema de seguros sociais obrigatórios correspondente ao modelo então em vigor em muitos países europeus. Em obediência aos princípios corporativos estabelecidos na constituição política de 1933 e no estatuto do trabalho nacional, esta lei determinava as bases da então designada previdência social que, tendencialmente, deveria abranger os trabalhadores por conta de outrem, do comércio, indústria e serviços. O âmbito material do sistema era limitado a prestações de doença (cuidados de saúde e subsídio de doença), invalidez, velhice e morte, geridas fundamentalmente por caixas sindicais de previdência, na sua maioria de âmbito nacional. Os trabalhadores do sector agrícola e do sector das pescas viriam a ser enquadrados em sistemas de protecção social específica geridos pelas casas do povo e casas dos pescadores.


[5] A. Marinho e Pinto, "Diarreia legislativa", JN 2/9/2013.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O sector financeiro. I: o último e decadente refúgio da «economia de mercado»

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«A verdade nua e crua é que as opulentas sociedades ocidentais encorajam valores, atitudes e estruturas de personalidade conducentes ao crime de colarinho branco. Nas palavras de Ian Taylor*, a economia de mercado promove o crime através da

"exaltação da cultura de competição darwiniana por estatuto [social] e por recursos, e encoraja um nível de consumo que não é capaz de proporcionar a todos por meios legítimos"
Neste ambiente os vigaristas criaram tentadoras e frequentemente engenhosas armadilhas de fazer dinheiro, prometendo recompensas principescas aos crédulos. As vítimas sucumbem às tentações que lhes oferecem, na esperança de obter muito dinheiro, ao qual se julgam com direito, aqui e agora, já.
Vigaristas impiedosos e concertados quebram a lei porque é a maneira mais fácil de obterem dinheiro. Juntamente com o desejo de riqueza coexiste o desejo de provar que conseguem ganhar as lutas competitivas, que têm um lugar proeminente nos nossos sistemas económicos. Os vencedores são admirados pela sua habilidade e energia.»



*[Pensamos que não se trata de uma citação de Ian Taylor, mas sim do sociólogo Currie, E. (1997), do seu livro "Market Society and Social Disorder"]

 

O texto acima (por nós traduzido da versão inglesa) não é de um marxista, mas sim de um defensor do capitalismo. O seu autor é Kari Nars, ex-presidente do Banco Central da Finlândia. O texto consta da primeira página do livro de Kari Nars «Swindling Billions: An Extraordinary History of the Great Money Fraudsters» («Burlas de Biliões: Uma História Extraordinária dos Grandes Burlões Financeiros», [1]; note-se que temos vindo a usar «bilião» neste blog com o significado de mil milhões).
O livro contém muita informação de interesse. Nele o autor revela alguns mecanismos de burla financeira que se tornaram «exemplos» históricos. Nas 250 páginas do livro só há espaço para revelar «alguns» dos mecanismos de burla. O conjunto de todas as variantes de burlas financeiras encheria vários volumes. Principalmente desde que o neoliberalismo, que rege as «opulentas sociedades ocidentais» a partir de meados dos anos setenta, tornou o sector financeiro no último e decadente refúgio da «economia de mercado». Refúgio dos vigaristas oficiais e dos vigaristas do costume (a estes não se refere Kari Nars).

*    *    *
A «história» de Kari Nars começa nos primórdios do capitalismo com a bolha especulativa de John Blunt em 1711-1721. John Blunt vendia acções da Companhia dos Mares do Sul, em Londres, a preços inflacionados. Pela mesma época o escocês John Law ludibriava em Paris a corte de Luís XV e a burguesia parisiense com um esquema semelhante, envolvendo acções da Companhia do Mississipi. Entretanto, os instrumentos e estratagemas usados pelo capital financeiro para ludibriarem o próximo têm crescido dramaticamente. Actualmente, com as técnicas informáticas e a globalização das comunicações, «nascem» todos os meses novos esquemas de burla financeira. Além disso, como já assinalámos várias vezes neste blog (ver, p. ex., [2]) nas «opulentas sociedades ocidentais» (opulentas apenas para uma pequena camada da população, bem entendido) o sector produtivo do capitalismo (designadamente, agricultura, minas e indústrias transformadoras) enfrenta baixas taxas de lucro o que empurra todos os dias os grandes capitalistas a procurarem a obtenção de grandes lucros em sectores de serviços, principalmente no sector de serviços financeiros. Nas sociedades «ocidentais» (EUA, Canadá, UE, Japão) o sector financeiro é, actualmente, um sector muito importante e em crescimento da economia (juntamente com o sector de serviços) enquanto o sector produtivo está em declínio. Por exemplo, nos EUA entre 1948 e 2009, o sector financeiro (agregando, para além das actividades financeiras propriamente ditas, o imobiliário e serviços a empresas) mais que duplicou a sua contribuição para o PIB: de 10% para 22,6%. Por comparação, o sector produtivo (agregando agricultura, minas, indústrias e transportes) decresceu na sua contribuição para o PIB de 58,6% para 23,3% ([3]; ver também [4]).
Se nos restringirmos às actividades financeiras propriamente ditas (bancos, empresas de investimento, seguros) a contribuição para o PIB nos EUA era em 2011 de 8,6% (ver figura abaixo). No Canadá era de 6,5% em 2012. No Japão era de cerca de 5% em 2010, mas o partido no governo propunha-se aumentar a importância do sector financeiro para valores acima de 10% ([5]).


Evolução da contribuição percentual do sector financeiro para o PIB dos EUA ([4]). Source: Bureau of Economic Analysis.

Em quase todos os países da UE (as excepções são a Alemanha e a França que continuam a apostar forte no sector produtivo, embora também aqui se observe a tendência de declínio) constata-se o mesmo fenómeno. Por exemplo, na Irlanda, o sector financeiro viu a sua contribuição para o PIB aumentar de 7,3% para 11,8% entre 2000 e 2009 ([6]). No mesmo período e em Portugal aumentou de 5,5% para 7,1% (7,8% em 2008). No Reino Unido aumentou espectacularmente de 5,4% para 10,4%. Na Holanda, de 5,9% para 8,2%.

Face a estas «sociedades opulentas» existem as «oficinas do mundo», de que o exemplo mais saliente é a China, onde se produzem as quantidades enormes de mercadorias consumidas pelas «sociedades opulentas». O quadro seguinte mostra a contribuição para o PIB de vários sectores da economia em vários países (dados da wikipedia, Eurostat e fontes autorizadas; os dados dos serviços financeiros para a Índia e Rússia foram obtidos, respectivamente, de [7] e [8]). Note-se a menor percentagem de contribuição para o PIB dos serviços em geral e serviços financeiros dos BRICS face a países da OCDE, e a maior percentagem da indústria dos BRICS. Analisar também os casos da França e da Alemanha.

Contribuição (em %) para o PIB de quatro sectores da economia. Valores para 2011 excepto quando indicado outro ano em rodapé.
Sector
Alguns Países da OCDE
BRICS

EUA
UK
Suíça
Port.
França
Alem.
Brasil
Rússia
Índia
China
África do Sul
Agricultura
1,2
0,7
1,3
2,6
1,9
0,8
5,5
4,4
17,2
10,1
2,5
Indústria
19,2
21,1
27,7
22,6
18,3
28,6
27,5
37,6
26,4
45,3
31,6
Serviços (a)
79,6
78,2
71,0
74,8
79,6
70,6
67,0
58,0
56,4
44,6
65,9
S. Financeiros
8,6
9,4
11,1
6,4
4,7
4,2
5,9 (b)
4,5
< 4 (c)
n.d. (d)
< 3,4%(e)
(a) Inclui serviços financeiros (banca, empresas de investimento, seguros).
(b) Relatório do Banco do Brasil de 2010.
(c) O valor de 10% indicado em [7] agrega "real estate" e "business services"; subtraindo os valores que encontrámos para estes subsectores obtém-se um valor inferior a 4%.
(d) Não foi possível encontrar o valor global para a China. Com excepção de regiões autónomas (Hong-Kong e Macau) e regiões especiais (Xangai, etc.) o sector bancário é estatal.
(e) O valor oficial de 3,4% agrega "real estate" e "business services".

Frequentemente, quando um país tem um forte sector de serviços tem também um forte subsector de serviços financeiros (há excepções, como por exemplo as Maldivas, com um forte sector de serviços de Turismo mas fraco sector financeiro). O gráfico da figura abaixo ([9]) mostra a razão percentual do sector de serviços face ao sector industrial (eixo vertical) em termos do PIB per capita (representado em escala logarítmica no eixo horizontal); embora use valores de 2005 permite ter uma ideia do posicionamento de vários países, separando os que em 2005 tinham um sector de serviços proeminente (países acima da recta) dos países com um sector industrial proeminente (abaixo da recta).




Próximo artigo:
O sector financeiro. II: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões do costume.

[1] Kari Nars «Swindling Billions: An Extraordinary History of the Great Money Fraudsters», Marshall Cavendish Business, 2011.


[3] Ver [2]; a fonte dos dados é: Bureau of Economic Analyses, NIPA Table 6.1. Ver também: http://en.wikipedia.org/wiki/Financialization

[4] Mark Thoma, "The Elevated Position of the Financial Sector", Economist's View, October 27, 2011, http://economistsview.typepad.com/economistsview/2011/10/the-elevated-position-of-the-financial-sector.html

[5] Yasuyuki Fuchita «How Much Should Japan Raise the Financial Sector's Share of the Economy?», Nomura Journal of Capital Markets, vol.4, no. 4, 2013

[6] Ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-iii.html . Os dados são do Eurostat e dizem respeito ao valor acrescentado bruto (= PIB sem impostos e com subsídios ao consumo).



[9] Ejaz Ghani, "The Service Revolution", Internacional Labor Organization Conference, Genebra 2011.