No presente artigo vamos começar a caracterizar
e exemplificar as burlas do sector financeiro.
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Uma grande parte das burlas financeiras corresponde
a variantes dos seguintes esquemas/tipos básicos (classificação nossa):
- Bolha
especulativa
Burla
que consiste em fazer aumentar artificialmente o preço de valores mobiliários.
Provavelmente o primeiro exemplo histórico
deste tipo de burla é o de John Blunt, presidente da Companhia dos Mares do
Sul, constituída durante o reinado de Jorge I de Inglaterra em 1711 ([1]). John
Blunt angariava subscritores de nomeada para as acções da Companhia, incluindo
o próprio rei Jorge I, espalhando rumores de lucros substanciais da Companhia,
lucros que de facto não existiam. Usava também alguns esquemas complicados de
transacções de capitais para dar mais suporte aos rumores. Conseguiu, assim,
que o valor das acções crescesse rapidamente de £130 para um pico de £1050 num
período de 8 meses! A dada altura as ruas de Londres, perto da sede da
Companhia, estavam apinhadas de gente que se acotovelavam para comprar acções. Quando
a bolha ruiu -- e chega sempre o dia do «ajuste de
contas» para qualquer bolha, quando o capital fictício tem de mostrar o que
vale -- John Blunt e comparsas foram presos.
Actualmente, com as técnicas informáticas e a
globalização das comunicações, as «bolhas» e outras burlas podem tornar-se bem
mais perigosas ([2]) e alastrar aos sectores financeiros de praticamente todo o
globo.
A bolha «dot.com», das empresas de vendas pela
Internet, foi uma bolha especulativa que levou o índice NASDAQ das acções de
empresas dos EUA a subir de 2000 para 5000 no período de um ano (de 1999 até ao
início de 2000). Não houve neste caso um «vilão oficial», como John Blunt que
foi detido quando a bolha rebentou, julgado (no julgamento mostrou-se amnésico,
uma doença que já é hábito atacar os vilões oficiais e que veremos também
aparecer em Dias Loureiro arguido nas fraudes do BPN) e teve de pagar uma
indemnização que o deixou na pobreza (na altura, a burguesia mercantil não
estava para brincadeiras). Em muitas bolhas modernas («dot.com», bolhas
imobiliárias, etc.) não existem vilões oficiais; apenas os do costume: banqueiros, gestores, corretores, directores
financeiros, etc. Tudo «boa gente» que continua incólume nos «negócios como
de costume».
No caso da bolha imobiliária causadora da
Grande Recessão iniciada em 2008, o engenho dos gestores de grandes bancos
(J.P. Morgan, Goldman Sachs, etc.) e de firmas de investimento (Merryl Lynch,
etc.) no invento e promoção dos
tóxicos CDOs («Collaterized Debt
Obligations», pacotes de títulos de hipoteca que combinavam títulos de
baixo risco com títulos de alto risco, praticamente incobráveis) foi de tal
ordem que o economista Steve Keen (um dos poucos que previu esta bolha
imobiliária) diz no seu livro ([3]; ver nossos anteriores artigos sobre
Economia) que nunca pensou que tal
inventividade pudesse ser possível.
É claro que bolhas como a «dot.com», a «imobiliária»,
e outras, não são consideradas oficialmente
como burlas. De facto, nos actuais Estados burgueses dominados pelo capital
financeiro, a criação de tais «bolhas» faz parte da conduta normal da burguesia
financeira, da forma como opera e sempre operou. Imaginar que Estados burgueses
possam existir sem «bolhas» de especulação financeira (já estudadas por Marx em
meados do séc. XIX, embora ainda sem as proporções actuais), simplesmente por
aplicação de legislação adequada (a legislação ao serviço da burguesia), são
simples devaneios de sonhadores. Trata-se, aqui das burlas normais contra o «povo», contra
os trabalhadores, praticadas em nome dos interesses normais da burguesia. No fundo, trata-se de um dispositivo extra para
sugar ainda mais-valia do trabalho, dado que estas burlas afectam em última
instância os trabalhadores, que irão ter de aguentar os prejuízos causados pelas
bolhas (através de resgates, etc.). E, num Estado burguês, o papel reservado
pela grande burguesia para o «povo» é precisamente esse: o de aguentar a grande burguesia.
Uma versão soft
deste tipo de burla (não chega a ocasionar uma «bolha») é o crime de
«manipulação de mercado» de que foi acusado Jardim Gonçalves e comparsas do BCP
por manipulação do preço das acções e angariação de accionistas para os
aumentos de capital do banco, manobrando diversos funcionários e usando offshores.
- Pirâmide
Burla
que consiste em pagar dividendos elevados a depositantes ou a compradores de
bens mobiliários, à custa da angariação de novos depositantes ou compradores.
Parece que o inventor da pirâmide foi o italo-americano
Charles Ponzi que, em 1920, inventou um esquema simples pelo qual vendia
títulos de investimento com juro de 50% a 45 dias! Ou seja, um aumento de
capital anual de 2.463%! (não é «gralha»: é dois mil quatrocentos e sessenta e
três por cento; ver [4]). Como justificava Ponzi tal maná aos investidores? Dizia
que comprava «cupões-resposta internacional» (CRI) em Itália por um baixo preço
vendendo-os nos EUA a um preço muito mais alto. Na realidade, quem se desse ao
trabalho de analisar convenientemente o esquema de tráfico de CRIs veria que
tais ganhos eram impossíveis por múltiplas razões ([5]). Na realidade ninguém
se deu a esse trabalho, até um analista financeiro denunciar o esquema e levar ao
ruir da pirâmide. O tráfico de CRIs era apenas a cortina de fumo usada por
Ponzi, que parece nunca ter sequer tentado traficar em CRIs. Isto é, nenhuns lucros legítimos de quaisquer
actividades económicas entravam no fundo de investimento de Ponzi, uma
característica que se repete em muitas burlas financeiras. O fundo Ponzi baseava-se
pura e simplesmente no esquema da pirâmide: o dinheiro de novos investidores (depositantes)
servia para reembolsar os anteriores que (felizmente para eles) solicitavam o
reembolso antes do colapso da pirâmide, em vez de reinvestir todo o dinheiro
empatado, como muitos levados pela ganância fizeram. Enquanto a pirâmide durou
Ponzi teria de atrair cada vez mais investidores (daí o nome de «pirâmide»)
para poder pagar aos anteriores investidores que reclamassem reembolsos; e
convencer muitos desses a não reclamar reembolsos.
O conhecido caso da «Dona Branca, banqueira do
povo» foi também um caso de burla tipo pirâmide.
Por vezes o esquema da pirâmide não é tão
simplista como o de Ponzi (e de Dona Branca). Kari Nars descreve no seu livro ([1])
o elaborado esquema de pirâmide inventado por um finlandês residente nos EUA,
onde lançou o «clube» de investimento WinCapita
(2008), com contas em bancos prestigiados (como o Crédit Suisse), fundos de
companhias investidoras e angariação de novos investidores à custa dos já
existentes: cada sócio do clube que angariasse novos investidores recebia bónus
do clube; bónus que podiam ser substanciais. O clube era algo de muito selecto,
onde não entrava qualquer «bicho-careta», sendo exigida uma jóia de entrada de
3.000 euros. A fraude ascendeu a 130 milhões de dólares até ser desmantelada
pelo FBI. A cortina de fumo para atrair investidores era a de supostos ganhos
com um sistema sofisticado e confidencial de especulação no mercado cambial ([6]).
A pirâmide mais espectacular até hoje foi a usada
por Bernie Maddof para burlar os seus riquíssimos clientes, juntamente com
gestores de fundos de vários países, na sua muito selecta empresa Investment Securities. A burla ascendeu
a 22 biliões de dólares (!) e até o maior amigo de Maddof sofreu um «rombo» que
o deixou quase na pobreza (os vilões completos não têm amigos). A pirâmide
durou mais de 20 anos (!), caso único, que se explica entre outros motivos
pelas relações íntimas de Maddof com a entidade reguladora dos EUA (Oliveira e
Costa, principal implicado no caso BPN, também tinha sido um alto quadro do
Banco de Portugal, a entidade reguladora de Portugal), com o facto de que geria
paralelamente um negócio legítimo de investimentos que servia de biombo à
pirâmide e ainda por ter inúmeras ligações a bancos «prestigiados» dos EUA e da
Europa.
- Transacções
de activos fictícios ou com preços fictícios
Numa
versão deste tipo de burla são vendidos activos inexistentes ou falsificados, ou,
ainda, de valor muito abaixo do valor nominal. Um dos
casos relatados por Kari Nars ([1]) é o do general Gregor MacGregor, que tendo
participado nas campanhas de Simão Bolívar, se apresentava com grande pompa em
Londres, em 1821, como Gregor I de Poyais, um Estado pretensamente paradisíaco
perto das Honduras com imensas riquezas naturais incluindo ouro aos montes. A
capital de Poyais teria uma Ópera, catedral, bancos e um grande porto. Gregor
conseguiu atrair investimentos vultuosos para o seu Estado e inclusive armar
navios (contra pagamento dos interessados, bem entendido) que se dirigiram à
costa desolada da América Central onde alegadamente se situaria Poyais para verificar
(dramaticamente) que o paraíso não existia.
Outro caso deste tipo de burla foi a venda de
falsos bilhetes do Tesouro italiano pelo rei dos fósforos sueco Ivar Kreuger,
em 1929.
Note-se que no mercado de valores mobiliários
é muito comum a chamada «venda a descoberto» (short selling): contrato de entrega futura de activos que, no momento do contrato, não se possuem
mas são vendidos como se se possuíssem; quem vende tenciona obter mais
tarde esses activos. Espera-se ganhar vendendo hoje caro para mais tarde
comprar barato. É uma prática arriscada (quem garante que os activos se podem
obter mais tarde e, inclusive, a mais baixo preço?) que pode resultar em burla
efectiva.
Noutra
versão deste tipo de burla são oferecidos, por burlões, créditos a outros
burlões, muito acima do valor do activo. Um exemplo
desta versão de burla foi a venda pela Sociedade Lusa de Negócios (SLN) da
empresa Biometrics de Porto Rico, a Dias Loureiro (no âmbito do «caso BPN» de
que falaremos num próximo artigo), por 35 milhões de euros; contudo, o
documento da SLN regista a venda por apenas «um dólar»!
- Fundos
para o bando: burla que assenta num
conluio mais ou menos vasto de indivíduos que concorrem no desvio fundos de
bancos e de instituições financeiras que controlam ou onde têm forte
influência, para servir os seus bolsos e negócios escuros.
O conluio também pode existir em menor grau noutros
tipos de burlas financeiras; na presente categoria de «fundos para o bando», o
conluio atinge grandes proporções, envolvendo muitas instituições financeiras numa
enorme multiplicidade de negócios. Um dos primeiros casos de «bando» no
pós-guerra foi o da prestigiada firma de investimentos International Overseas Services (IOS) «comandada» pelo americano
Bernard Cornfeld que veio a sediar a IOS em Paris em 1955. A IOS tinha negócios
em todo o mundo. Foi a primeira a usar uma enorme quantidade de firmas offshore em paraísos fiscais para
encobrir negócios e contabilidade forjados. As offshores incluíam fundos de investimento, bancos, companhias de
seguros e agências de imobiliário. A breve trecho os fundos de clientes
passaram a ser investidos na própria IOS e eram feitos «empréstimos-dádivas» a
directores e agentes de vendas da IOS para financiar negócios (reais ou
forjados). Os «empréstimos» cresceram de tal forma que a IOS se tornou
praticamente insolvente vindo a recorrer à burla da pirâmide até que por fim,
em 1970, a IOS ruiu.
Um outro caso semelhante foi o da gigantesca Enron, que começou como empresa dos EUA na
área da energia, até que em 1986 Kenneth Lay e cúmplices usaram uma rede de
firmas de investimento e um Banco (Continental
Illinois National Bank) para encherem os bolsos (Lay, p. ex., sacou 42,4
milhões de dólares da Enron apenas no
ano de 1999) e para subsidiar o partido republicano. A Enron tinha ligações com Bush pai e filho e Lay chegou a ser
encarado como sério candidato a Secretário do Tesouro (o equivalente ao nosso
ministro das finanças) do governo George Bush. A burla foi alimentada à custa
de contabilidade falsificada, com publicação de lucros inexistentes destinados
a aumentar os preços das acções.
O famoso escândalo do banco Ambrosiano de
Itália, em 1982, veio também a revelar-se um exemplo sinistro de «fundos para o
bando» ([7]). O Banco Ambrosiano, com fortes ligações ao Banco do Vaticano, era
um «banco católico» presidido por Roberto Calvi, conhecido por «banqueiro de
Deus».
O Banco do Vaticano, cujo nome oficial é
«Instituto para as Obras Religiosas» (IOR), era um dos principais accionistas do
Ambrosiano; era presidido pelo arcebispo Paul Marcinkus e estava estreitamente
ligado a bancos suíços e italianos propriedade de Michele Sindona, um homem da
máfia encarregado da lavagem de dinheiro.
O
Ambrosiano e o IOR tinham relações com offshores,
com bancos de vários países da América Latina (e também das Bahamas,
Liechtenstein e Luxemburgo), com a CIA e com a loja maçónica P2 de Itália
dirigida pelo sinistro Licio Gelli, traficante de armas, relacionado com
proeminentes chefes fascistas da Europa e América Latina, com nazis como Klaus
Barbie o «carniceiro de Lyon». Marcinkus assinou cartas de recomendação para a
instalação de sucursais do Ambrosiano na Argentina, Peru e Bolívia.
O bando -- Marcinkus, Calvi, Gelli e mais de
duas dezenas de comparsas que incluíam prelados da alta hierarquia do Vaticano,
inclusive um cardeal --, além de locupletar-se, usou os fundos, por meio de offshores e contabilidade falsificada,
para financiar: o partido democrata cristão italiano; Bettino Craxi,
primeiro-ministro socialista e Giulio Andreotti primeiro-ministro democrata cristão,
ambos com ligações à máfia; o sindicato Solidariedade da Polónia; vários
movimentos e agrupamentos anti-comunistas que tiveram acção de relevo no
colapso da Europa de Leste; os «contra» da Nicarágua; a Opus Dei; Juan Péron e,
mais tarde, a junta militar fascista da Argentina, designadamente o sinistro
Emílio Massera acusado de 30.000 mortes e desaparecimentos; vários movimentos
fascistas europeus; lavagem de dinheiro de tráfico de drogas para a máfia. Marcinkus
e comparsas do Vaticano (e não só) tiveram todo o apoio consciente de Paulo VI e de João Paulo II. Um buraco de 1,3 biliões
de dólares levou à instauração de processos por parte da justiça italiana. Calvi
foi condenado a quatro anos na prisão mas conseguiu fugir para Londres onde
apareceu enforcado debaixo da ponte Blackfriars com pedras e tijolos nos bolsos,
aparentemente assassinado pela máfia antes que se «descosesse»; Marcinkus (que
quase chegou a cardeal e ficou famoso pela sua frase «Não se pode governar o
Vaticano com Ave-Marias»), tal como outros prelados, conseguiu escapar à
justiça graças à protecção oficial do Vaticano; acabou por fugir para os EUA.
Marcinkus foi também atacado pela doença da amnésia: durante um interrogatório
em 1973 nos EUA, disse «Michele [Sindona] e eu somos grandes amigos.
Conhecemo-nos há vários anos. […] [Sindona] está muito à frente do seu tempo no
que se refere às actividades bancárias»; menos de dois anos depois dizia numa
entrevista «A verdade é que nem sequer conheço Sindona.».
Portugal também teve o seu «fundos para o
bando»: o «caso BPN» que apresentaremos proximamente.
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Próximo artigo:
O
sector financeiro. IV: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões
do costume (conclusão).
Falaremos do uso de informação privilegiada e
outras trapaças do mercado de acções, conluios e cartéis de bancos e o que
(não) acontece aos vilões financeiros.
Referências:
[1] Kari Nars «Swindling Billions: An Extraordinary History
of the Great Money Fraudsters», Marshall Cavendish Business, 2011.
[2] O livro de Kari
Nars inclui um gráfico do índice Dow Jones da Bolsa de Nova Iorque, com
anotações das datas de várias burlas financeiras. O reflexo dessas burlas na
evolução do índice é evidente.
[3] Steve Keen (2011) "Debunking
Economics. The Naked Emperor Dethroned?", Zed Books.
[4] Dado que 45 dias
é um oitavo do ano (aproximadamente), 1$ ao fim de um ano valeria (1 + 0,5)8
= 25,63$.
[5] http://en.wikipedia.org/wiki/International_reply_coupon. Um cupão-resposta
internacional (CRI) é um título de valor postal permutável em todos os
países membros da União Postal Universal por um ou mais selos postais,
destinados a permitir ao expeditor pagar a franquia de uma carta de resposta do
seu correspondente no estrangeiro. Deixaram de ser comercializados pelos CTT em
2010.
[6] As transacções
especulativas no mercado cambial ("Foreign Exchange trading" ou
"forex trading") procuram comprar uma divisa a um baixo preço
vendendo-a mais tarde a um preço mais alto, por análise das flutuações de
câmbio. Voltaremos a este assunto a propósito dos derivados.
[7]
Vários livros se escreveram tendo como pano de fundo o escândalo do Banco
Ambrosiano e Banco do Vaticano. Provavelmente o mais famoso e fruto de uma
investigação cuidada é o aclamado livro do jornalista de investigação David
Yallop, «Em Nome de Deus», publicado em português pela D. Quixote em 2006. Vale
a pena também ler: Euler de França Belém, «O livro negro do Vaticano», Jornal
Opção, Estado de Goiás, http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/o-livro-negro-do-vaticano;
Peter Stoler, Barry Kalb and Jonathan Beaty, «Italy - The Great Vatican Bank
Mystery», Time Magazine, http://www.offnews.info/verArticulo.php?contenidoID=34757. O Banco do Vaticano parece condenado a
escândalos permanentes, estando um em curso de investigação por uma comissão do
actual Papa.