«Na sua maturidade o capitalismo é cada vez
menos um sistema de acréscimo das forças produtivas. É cada vez mais um
parasita financeiro, repousando improdutivamente nos sectores produtivos da
economia global (principalmente China, Índia, etc.).» ([1]).
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Vimos no artigo anterior (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/10/o-sector-financeiro-i-o-ultimo-e.html)
a crescente importância do sector financeiro nas economias desenvolvidas dos
«países ocidentais». Na realidade, o domínio do capital financeiro em alguns
países capitalistas desenvolvidos remonta a finais do século XIX, e esse
domínio, como ingrediente básico do imperialismo, foi bem caracterizado por Vladimir
Lenine na sua obra «Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo» ([2]). Lenine,
contudo, não podia obviamente prever os desenvolvimentos tecnológicos
(informática, telecomunicações) e históricos (globalização, divisão de trabalho
entre países desenvolvidos e os que se libertaram do colonialismo) que
culminaram no inflacionamento do sector financeiro e declínio do sector
produtivo de que falámos no artigo anterior.
O sector financeiro nada produz. É o sector
que trafica em dinheiro, o que não seria muito mau, na óptica capitalista, se
por «traficar» entendermos o crédito a
actividades produtivas com base num juro de investimento: o lucro dos
capitalistas financeiros (banqueiros, executivos de direcção e de gestão
financeira de bancos, de firmas de investimento, de firmas de concessão de
crédito e de companhias seguradoras, gestores, grandes investidores, altos
funcionários de Bolsas e de instituições que transaccionam valores mobiliários,
etc.) e uma pequena parcela para os depositantes comuns. Mas o juro de
investimento não é mais do que parte das mais-valias criadas pelo trabalho
produtivo. E este, como vimos, está em declínio nas «sociedades opulentas», nas
sociedades em que o preço da mão-de-obra já não permite lucros concorrenciais
com os obtidos em países de grandes exércitos de mão-de-obra barata (ver o que
dissemos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-vi-valor.html
).
Resta ao capital financeiro uma fonte de potenciais
lucros fáceis e a curto ou muito curto prazo: a especulação financeira.
Consideramos
impossível entender o que se passa actualmente no capitalismo a nível global e
ao nível do nosso país, sem entender minimamente o que é e o que representa a
actual especulação financeira; quais os seus agentes, móbeis e objectivos.
Note-se que a especulação financeira sempre
acompanhou o capitalismo desde os seus primórdios, como notou o economista francês
do séc. XIX Charles Coquelin ([3]; tradução nossa):
«Em cada país a maioria das transacções de
crédito processam-se no circuito das relações industriais... O produtor de
matérias-primas fornece-as ao manufactor e recebe um título de pagamento para
certa data. O manufactor, tendo completado a sua parte de trabalho, fornece o
seu produto em termos semelhantes a outro manufactor, que vai continuar o
processamento, e desta forma o crédito continua a estender-se, de um para
outro, até ao consumidor. O grande comerciante fornece mercadorias a crédito ao
retalhista, ao mesmo tempo que recebe crédito do manufactor ou seu agente. […]
Desta forma, uma troca incessante de créditos, que se combinam e intersectam em
todos os sentidos, tem lugar nas relações industriais.»
Quanto ao sector bancário dizia assim o
economista inglês J. W. Gilbart, também do séc. XIX ([4]; tradução e comentários
nossos):
«O objectivo do sistema bancário é dar
facilidades ao comércio [ou a investimentos], e seja o que for que dê
facilidades ao comércio dá facilidades à especulação. Comércio [ou
investimento] e especulação estão em alguns casos tão intimamente ligados que é
impossível dizer em que ponto preciso o comércio [ou investimento] termina e a
especulação começa… Onde quer que haja bancos, o capital é mais facilmente
obtido e a um juro mais baixo. O baixo preço do capital dá facilidades à
especulação […]»
Este tipo de especulação -- dar crédito a
troco de promessas de futuros pagamentos com juros, crédito não suportado por
quaisquer activos físicos, isto é, usando capital
fictício – sempre foi e continua a ser vulgar na banca. É a causa de várias
bolhas especulativas que a história regista e que quando rebentam causam
recessões, como a última Grande Recessão de 2008 (despoletada pela crise
especulativa do crédito imobiliário, sem garantias, nos EUA e que afectou
também, através do sistema bancário, a UE).
Entretanto, a especulação financeira evoluiu
muito para além do que os economistas do séc. XIX poderiam imaginar. Do
conceito actual de especulação financeira fazem parte transacções de alto risco
de valores mobiliários (acções, obrigações, divisas, derivados, etc.) ou
imobiliários (casas, propriedades, objectos de arte, colecções, etc.) com vista
a aproveitar flutuações de preços, independentemente
do valor intrínseco subjacente. Imaginemos que o investidor X pretende
comprar acções da empresa ABC cujo desempenho e perspectivas de mercado lhe
parecem boas. X actua como um investidor habitual, um capitalista que pretende
obter uma posição accionista na empresa ABC, absorvendo, portanto, como
qualquer outro capitalista rentista, parte das mais-valias que vierem a ser
criadas pelos trabalhadores da ABC. Suponhamos, agora, que X efectua a
encomenda de um grande número das acções da ABC a um corretor da Bolsa, Y. Y,
sabendo que o preço das acções irá subir em consequência da compra do grande
número de acções pretendido por X, faz o seguinte: compra para ele próprio
acções da ABC ainda antes de efectuar
a compra para X. Faz aquilo que se denomina de «front-running» (corrida em frente) com vista a beneficiar da esperada
subida do preço das acções quando efectuar a compra para X. Para Y, ao
contrário de X, não interessa analisar o valor
intrínseco das acções da ABC. Para Y a ABC até pode ser uma má empresa, mal
gerida, que irá ter mau desempenho. Só lhe interessa aproveitar-se da
expectável subida de preço das acções a curto prazo.
O «front-running»
é considerado uma simples falta de ética entre investidores. Mas a moral dos
capitalistas financeiros é muito elástica e há muitas maneiras de fazer «front-running» incluindo em transacções de alto risco, nas quais, ao contrário do exemplo
(um entre muitos possíveis), a flutuação de preços é bem mais difícil ou até
impossível de prever.
Muitos especuladores pretendem convencer-nos de
que a especulação até é um bem para a economia. Por exemplo, a wikipedia ([5]) cita as seguintes
palavras de um especulador americano que escreveu o livro «O Especulador como
Herói»: «Consideremos alguns dos princípios que explicam as causas das penúrias
ou dos excedentes e o papel dos especuladores. Quando uma colheita é muito
pequena para satisfazer o consumo normal, os especuladores entram no processo
esperando lucrar com a escassez através da compra. As compras que efectuam
aumentam o preço, por conseguinte diminuindo o consumo, de forma que a reduzida
oferta dure mais tempo. […] quando o preço é mais elevado do que aquele que os
especuladores julgam explicável pelos factos, então vendem.» Isto é, o nosso
«herói especulador» diz que a especulação é boa porque permite o
açambarcamento!
Outros incríveis disparates são apontados como
benefícios da especulação. A wikipedia
aponta, por exemplo, como benefício a «liquidez do mercado». Isto quando é bem
conhecido que o ruir das bolhas especulativas e a repentina baixa de preços dos
valores mobiliários é causa não de excesso de liquidez, mas sim de falta de
liquidez; usada para justificar resgates e dificuldades de crédito dos bancos às
famílias e às pequenas e médias empresas.
A wikipedia
também aponta algumas desvantagens económicas da especulação. Mas esquece-se da
mais importante: a especulação financeira
corresponde a um desvio de fundos de investimento para «actividades de casino»,
em vez de serem aplicados para actividades produtivas. E, actualmente, esse
desvio de fundos é um desvio colossal!
Para vermos quão colossais são os
investimentos em especulação financeira basta ter em conta que a estimativa
actual do mercado global de derivados (um tipo de jogo que analisaremos noutro
artigo) é de um quatrilião de dólares: 1.000.000.000.000.000 $. Corresponde a
14 vezes o PIB anual de todo o globo ([6])! Desse quatrilião de dólares em
derivados só uma reduzidíssima parcela não é capital fictício, podendo ser
atribuída a actividade não especulativa. O jogo da especulação com derivados
também atingiu Portugal, em particular, no recente caso dos «swaps».
A «investopedia»
([7]) diz que não, que a especulação não é jogatina. Diz que «a diferença
principal é que a especulação corresponde geralmente a assumir um risco
calculado e não é dependente apenas da pura sorte, enquanto o jogo depende
totalmente de resultados aleatórios ou do acaso». Esta afirmação é
absolutamente mentirosa, porque: 1 - O risco de muitos jogos é calculável; 2 -
O resultado de uma especulação financeira não é previsível, não é um fenómeno
determinístico mas sim aleatório; se não fosse assim todos os especuladores poderiam
ganhar com a especulação, o que manifestamente não é verdade; 3 - Na realidade,
a especulação financeira é ainda mais «jogo» do que o jogo normal, dado que,
enquanto neste os resultados são estatisticamente calculáveis, os daquele não o
são porque obedecem a distribuições de dados (flutuações de câmbios, flutuações
de cotações, etc.) não estacionárias: as estimativas do comportamento passado e
presente podem ser arbitrariamente más como estimativas do comportamento futuro
(ao contrário do atirar de um dado ao ar, do extrair uma carta de um baralho,
etc.); por isso mesmo, e ao contrário do que afirma a «investopedia», são os riscos dos jogos usuais que são calculáveis,
enquanto que os da especulação financeira não são calculáveis. Isto mesmo
deixámos na «investopedia» como
comentário ([7]); ainda não recebemos qualquer contestação.
Mas precisamente porque a especulação
financeira é um jogo (e a especulação é hoje em dia responsável pela maior
parte dos negócios financeiros), pensar
que possa existir um sector financeiro livre de burlas e de escândalos é como
desejar que haja jogos sem haver batoteiros, profissionais ou de ocasião.
Além disso, o próprio clima de casino que
impera no sector financeiro do «mundo ocidental» instala também um clima de
ganguesterismo que extravasa a simples especulação, e de que iremos dar
exemplos gritantes. Clima que afecta tudo que é sector financeiro e contamina
outros serviços. Tanto faz serem pequenos como grandes e respeitáveis bancos,
pequenas ou grandes firmas de investimento e pequenas ou grandes companhias de
seguros.
De facto, a única e grande diferença que
existe entre a especulação financeira e o jogo é a seguinte: enquanto os
desaires ao jogo só afectam os jogadores, os «desaires» da especulação
financeira afectam a vida de milhões de trabalhadores, conforme vimos
recentemente com o ruir da bolha especulativa imobiliária de 2008 que iniciou a
Grande Recessão. Quanto aos desaires dos capitalistas financeiros, podemos
dizer que são os «desaires» habituais de jogadores com falta de sorte. Com esta
diferença, porém: para muitos deles, lá está o «seu» Estado para os resgatar à
custa dos trabalhadores (activos, aposentados e pensionistas). Portanto, para
os capitalistas financeiros o jogo da especulação é um jogo viciado contra os
trabalhadores; é um jogo em que ganham quase sempre, de uma forma ou de outra.
E quanto mais poderosos forem os capitalistas financeiros mais o jogo é
viciado. Haja em vista os resgates monumentais a que se vem assistindo no
«mundo ocidental», em particular em Portugal no caso do BPN com um resgate que
já é estimado em 8,3 biliões de euros (1/9 do resgate «concedido» pela troika;
neste caso não foi apenas especulação financeira mas ganguesterismo puro e
simples), no BPP com um resgate de 750 milhões de euros, etc.
No mundo anglo-saxónico existe uma expressão
para designar resgates de grandes bancos, empresas, etc.: «too big too fail» («demasiado grande para falir»). Pois é. No
actual capitalismo serôdio, que sobrevive parasitariamente à custa de jogos e
vigarices, há duas categorias de vilões: os que são apanhados pelas
instituições reguladoras e são catalogados como vilões oficiais; os que são
demasiado grandes para falir e os que os apoiam, os vilões do costume. Quer uns
quer outros raramente respondem pelos seus actos. Para eles o sistema judicial
ao serviço da burguesia raramente encontra razões para penhorar os activos que
possuem. Geralmente safam-se com pequenas multas e, inclusive, os vilões do
costume costumam ser recompensados com chorudos bónus pela sua perícia em
esconder do grande público as sujeiras que se praticam no sector financeiro.
Veremos exemplos gritantes disso quando falarmos do caso BPN num próximo
artigo.
Para
terminar apontamos um exemplo esclarecedor (noticiado em alguns canais de
televisão estrangeiros e no JN [8]) do completo despudor com que os vilões do
costume do sector financeiro operam; despudor e sentimento de impunidade por se
sentirem a cúpula do «seu» Estado. Em Junho de 2013, órgãos de comunicação da
Irlanda revelavam escutas telefónicas de 2008 a dois
dirigentes do Anglo Irish Bank, nas
quais estes fazem paródia sobre o pedido de resgate feito pelo banco e a
hipótese de nacionalização. Os dois dirigentes conversam, muito divertidos,
sobre as mentiras que avançaram para obter do Governo o apoio financeiro
desejado supostamente para impedir a insolvência do banco. Riem-se com o facto
de terem pedido ao Governo uma injecção de 7 biliões de euros, quando, na
verdade, o banco precisava de muito mais. Quando um deles pergunta ao outro
como chegou à estimativa de 7 biliões, este diz que foi apenas um número «sacado
da cartola» e que não convinha avançar com o montante correcto para não
assustar nem o Governo nem os contribuintes. Ambos concordam que o ideal era
partir dos 7 biliões e ir aumentando a verba gradualmente, recorrendo sempre ao
argumento de que seria «bem pior para toda a gente deixar o banco afundar-se». O
Anglo Irish Bank acabou por receber
30 biliões de euros e veio a ser nacionalizado em Janeiro de 2009. Os dois
dirigentes mantiveram-se incólumes na administração.
Pois
bem, como veremos noutro artigo, algo semelhante aconteceu com o BPN e, em
menor medida, com outros bancos portugueses. E podemos estar certos de que
aquilo que se conhece das vilanias oficiais e do costume é apenas a ponta do
icebergue.
* * *
Próximo artigo:
O
sector financeiro. III: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões
do costume (continuação).
Neste artigo procuraremos explicar e tipificar,
com exemplos, os vários tipos de fraudes praticadas no sector financeiro. O
nosso propósito é fornecer esclarecimentos que permitam compreender casos
portugueses recentes, a apresentar em artigos posteriores.
[1] Michael Roberts (2009) The Great Recession. Profit cycles, economic
crisis. A Marxist View. ISBN 978-1-4452-4408-2.
[2] V. I. Lenine, «Imperialismo, Fase Superior
do Capitalismo», tomo 2 das Obras Escolhidas em seis tomos, Editorial
«Avante!», 1984.
[3] A
citação de Charles Coquelin, "Du crédit et des banques dans la
industrie", vem em Karl Marx, "Capital", vol. III, Cap. 25,
"Crédito e Capital Fictício", p. 527, Penguin Books Ltd, 1981.
[4] A
citação de G. W. Gilbart, "The History and Principles of Banking" vem
em Karl Marx, "Capital", vol. III, Cap. 25, "Crédito e Capital
Fictício", p. 532, Penguin Books Ltd, 1981.
[6] Michael Sivy "Why
Derivatives May Be the Biggest Risk for the Global Economy", Time (Business & Money), 27/2/2013 (http://business.time.com/2013/03/27/why-derivatives-may-be-the-biggest-risk-for-the-global-economy/)
[8] "Banqueiros escutados a parodiar pedido de
resgate ao Estado", JN,
25/6/2013.