sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O sector financeiro. II: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões do costume.

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«Na sua maturidade o capitalismo é cada vez menos um sistema de acréscimo das forças produtivas. É cada vez mais um parasita financeiro, repousando improdutivamente nos sectores produtivos da economia global (principalmente China, Índia, etc.).» ([1]).

Vimos no artigo anterior (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/10/o-sector-financeiro-i-o-ultimo-e.html) a crescente importância do sector financeiro nas economias desenvolvidas dos «países ocidentais». Na realidade, o domínio do capital financeiro em alguns países capitalistas desenvolvidos remonta a finais do século XIX, e esse domínio, como ingrediente básico do imperialismo, foi bem caracterizado por Vladimir Lenine na sua obra «Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo» ([2]). Lenine, contudo, não podia obviamente prever os desenvolvimentos tecnológicos (informática, telecomunicações) e históricos (globalização, divisão de trabalho entre países desenvolvidos e os que se libertaram do colonialismo) que culminaram no inflacionamento do sector financeiro e declínio do sector produtivo de que falámos no artigo anterior.
  
O sector financeiro nada produz. É o sector que trafica em dinheiro, o que não seria muito mau, na óptica capitalista, se por «traficar» entendermos o crédito a actividades produtivas com base num juro de investimento: o lucro dos capitalistas financeiros (banqueiros, executivos de direcção e de gestão financeira de bancos, de firmas de investimento, de firmas de concessão de crédito e de companhias seguradoras, gestores, grandes investidores, altos funcionários de Bolsas e de instituições que transaccionam valores mobiliários, etc.) e uma pequena parcela para os depositantes comuns. Mas o juro de investimento não é mais do que parte das mais-valias criadas pelo trabalho produtivo. E este, como vimos, está em declínio nas «sociedades opulentas», nas sociedades em que o preço da mão-de-obra já não permite lucros concorrenciais com os obtidos em países de grandes exércitos de mão-de-obra barata (ver o que dissemos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-vi-valor.html ).
  
Resta ao capital financeiro uma fonte de potenciais lucros fáceis e a curto ou muito curto prazo: a especulação financeira.
  
Consideramos impossível entender o que se passa actualmente no capitalismo a nível global e ao nível do nosso país, sem entender minimamente o que é e o que representa a actual especulação financeira; quais os seus agentes, móbeis e objectivos.
  
Note-se que a especulação financeira sempre acompanhou o capitalismo desde os seus primórdios, como notou o economista francês do séc. XIX Charles Coquelin ([3]; tradução nossa):
  
«Em cada país a maioria das transacções de crédito processam-se no circuito das relações industriais... O produtor de matérias-primas fornece-as ao manufactor e recebe um título de pagamento para certa data. O manufactor, tendo completado a sua parte de trabalho, fornece o seu produto em termos semelhantes a outro manufactor, que vai continuar o processamento, e desta forma o crédito continua a estender-se, de um para outro, até ao consumidor. O grande comerciante fornece mercadorias a crédito ao retalhista, ao mesmo tempo que recebe crédito do manufactor ou seu agente. […] Desta forma, uma troca incessante de créditos, que se combinam e intersectam em todos os sentidos, tem lugar nas relações industriais.»
  
Quanto ao sector bancário dizia assim o economista inglês J. W. Gilbart, também do séc. XIX ([4]; tradução e comentários nossos):
  
«O objectivo do sistema bancário é dar facilidades ao comércio [ou a investimentos], e seja o que for que dê facilidades ao comércio dá facilidades à especulação. Comércio [ou investimento] e especulação estão em alguns casos tão intimamente ligados que é impossível dizer em que ponto preciso o comércio [ou investimento] termina e a especulação começa… Onde quer que haja bancos, o capital é mais facilmente obtido e a um juro mais baixo. O baixo preço do capital dá facilidades à especulação […]»
  
Este tipo de especulação -- dar crédito a troco de promessas de futuros pagamentos com juros, crédito não suportado por quaisquer activos físicos, isto é, usando capital fictício – sempre foi e continua a ser vulgar na banca. É a causa de várias bolhas especulativas que a história regista e que quando rebentam causam recessões, como a última Grande Recessão de 2008 (despoletada pela crise especulativa do crédito imobiliário, sem garantias, nos EUA e que afectou também, através do sistema bancário, a UE).
  
Entretanto, a especulação financeira evoluiu muito para além do que os economistas do séc. XIX poderiam imaginar. Do conceito actual de especulação financeira fazem parte transacções de alto risco de valores mobiliários (acções, obrigações, divisas, derivados, etc.) ou imobiliários (casas, propriedades, objectos de arte, colecções, etc.) com vista a aproveitar flutuações de preços, independentemente do valor intrínseco subjacente. Imaginemos que o investidor X pretende comprar acções da empresa ABC cujo desempenho e perspectivas de mercado lhe parecem boas. X actua como um investidor habitual, um capitalista que pretende obter uma posição accionista na empresa ABC, absorvendo, portanto, como qualquer outro capitalista rentista, parte das mais-valias que vierem a ser criadas pelos trabalhadores da ABC. Suponhamos, agora, que X efectua a encomenda de um grande número das acções da ABC a um corretor da Bolsa, Y. Y, sabendo que o preço das acções irá subir em consequência da compra do grande número de acções pretendido por X, faz o seguinte: compra para ele próprio acções da ABC ainda antes de efectuar a compra para X. Faz aquilo que se denomina de «front-running» (corrida em frente) com vista a beneficiar da esperada subida do preço das acções quando efectuar a compra para X. Para Y, ao contrário de X, não interessa analisar o valor intrínseco das acções da ABC. Para Y a ABC até pode ser uma má empresa, mal gerida, que irá ter mau desempenho. Só lhe interessa aproveitar-se da expectável subida de preço das acções a curto prazo.
  
O «front-running» é considerado uma simples falta de ética entre investidores. Mas a moral dos capitalistas financeiros é muito elástica e há muitas maneiras de fazer «front-running» incluindo em transacções de alto risco, nas quais, ao contrário do exemplo (um entre muitos possíveis), a flutuação de preços é bem mais difícil ou até impossível de prever.
  
Muitos especuladores pretendem convencer-nos de que a especulação até é um bem para a economia. Por exemplo, a wikipedia ([5]) cita as seguintes palavras de um especulador americano que escreveu o livro «O Especulador como Herói»: «Consideremos alguns dos princípios que explicam as causas das penúrias ou dos excedentes e o papel dos especuladores. Quando uma colheita é muito pequena para satisfazer o consumo normal, os especuladores entram no processo esperando lucrar com a escassez através da compra. As compras que efectuam aumentam o preço, por conseguinte diminuindo o consumo, de forma que a reduzida oferta dure mais tempo. […] quando o preço é mais elevado do que aquele que os especuladores julgam explicável pelos factos, então vendem.» Isto é, o nosso «herói especulador» diz que a especulação é boa porque permite o açambarcamento!
  
Outros incríveis disparates são apontados como benefícios da especulação. A wikipedia aponta, por exemplo, como benefício a «liquidez do mercado». Isto quando é bem conhecido que o ruir das bolhas especulativas e a repentina baixa de preços dos valores mobiliários é causa não de excesso de liquidez, mas sim de falta de liquidez; usada para justificar resgates e dificuldades de crédito dos bancos às famílias e às pequenas e médias empresas.
  
A wikipedia também aponta algumas desvantagens económicas da especulação. Mas esquece-se da mais importante: a especulação financeira corresponde a um desvio de fundos de investimento para «actividades de casino», em vez de serem aplicados para actividades produtivas. E, actualmente, esse desvio de fundos é um desvio colossal!
  
Para vermos quão colossais são os investimentos em especulação financeira basta ter em conta que a estimativa actual do mercado global de derivados (um tipo de jogo que analisaremos noutro artigo) é de um quatrilião de dólares: 1.000.000.000.000.000 $. Corresponde a 14 vezes o PIB anual de todo o globo ([6])! Desse quatrilião de dólares em derivados só uma reduzidíssima parcela não é capital fictício, podendo ser atribuída a actividade não especulativa. O jogo da especulação com derivados também atingiu Portugal, em particular, no recente caso dos «swaps».
  
A «investopedia» ([7]) diz que não, que a especulação não é jogatina. Diz que «a diferença principal é que a especulação corresponde geralmente a assumir um risco calculado e não é dependente apenas da pura sorte, enquanto o jogo depende totalmente de resultados aleatórios ou do acaso». Esta afirmação é absolutamente mentirosa, porque: 1 - O risco de muitos jogos é calculável; 2 - O resultado de uma especulação financeira não é previsível, não é um fenómeno determinístico mas sim aleatório; se não fosse assim todos os especuladores poderiam ganhar com a especulação, o que manifestamente não é verdade; 3 - Na realidade, a especulação financeira é ainda mais «jogo» do que o jogo normal, dado que, enquanto neste os resultados são estatisticamente calculáveis, os daquele não o são porque obedecem a distribuições de dados (flutuações de câmbios, flutuações de cotações, etc.) não estacionárias: as estimativas do comportamento passado e presente podem ser arbitrariamente más como estimativas do comportamento futuro (ao contrário do atirar de um dado ao ar, do extrair uma carta de um baralho, etc.); por isso mesmo, e ao contrário do que afirma a «investopedia», são os riscos dos jogos usuais que são calculáveis, enquanto que os da especulação financeira não são calculáveis. Isto mesmo deixámos na «investopedia» como comentário ([7]); ainda não recebemos qualquer contestação.
  
Mas precisamente porque a especulação financeira é um jogo (e a especulação é hoje em dia responsável pela maior parte dos negócios financeiros), pensar que possa existir um sector financeiro livre de burlas e de escândalos é como desejar que haja jogos sem haver batoteiros, profissionais ou de ocasião
  
Além disso, o próprio clima de casino que impera no sector financeiro do «mundo ocidental» instala também um clima de ganguesterismo que extravasa a simples especulação, e de que iremos dar exemplos gritantes. Clima que afecta tudo que é sector financeiro e contamina outros serviços. Tanto faz serem pequenos como grandes e respeitáveis bancos, pequenas ou grandes firmas de investimento e pequenas ou grandes companhias de seguros.
  
De facto, a única e grande diferença que existe entre a especulação financeira e o jogo é a seguinte: enquanto os desaires ao jogo só afectam os jogadores, os «desaires» da especulação financeira afectam a vida de milhões de trabalhadores, conforme vimos recentemente com o ruir da bolha especulativa imobiliária de 2008 que iniciou a Grande Recessão. Quanto aos desaires dos capitalistas financeiros, podemos dizer que são os «desaires» habituais de jogadores com falta de sorte. Com esta diferença, porém: para muitos deles, lá está o «seu» Estado para os resgatar à custa dos trabalhadores (activos, aposentados e pensionistas). Portanto, para os capitalistas financeiros o jogo da especulação é um jogo viciado contra os trabalhadores; é um jogo em que ganham quase sempre, de uma forma ou de outra. E quanto mais poderosos forem os capitalistas financeiros mais o jogo é viciado. Haja em vista os resgates monumentais a que se vem assistindo no «mundo ocidental», em particular em Portugal no caso do BPN com um resgate que já é estimado em 8,3 biliões de euros (1/9 do resgate «concedido» pela troika; neste caso não foi apenas especulação financeira mas ganguesterismo puro e simples), no BPP com um resgate de 750 milhões de euros, etc.
  
No mundo anglo-saxónico existe uma expressão para designar resgates de grandes bancos, empresas, etc.: «too big too fail» («demasiado grande para falir»). Pois é. No actual capitalismo serôdio, que sobrevive parasitariamente à custa de jogos e vigarices, há duas categorias de vilões: os que são apanhados pelas instituições reguladoras e são catalogados como vilões oficiais; os que são demasiado grandes para falir e os que os apoiam, os vilões do costume. Quer uns quer outros raramente respondem pelos seus actos. Para eles o sistema judicial ao serviço da burguesia raramente encontra razões para penhorar os activos que possuem. Geralmente safam-se com pequenas multas e, inclusive, os vilões do costume costumam ser recompensados com chorudos bónus pela sua perícia em esconder do grande público as sujeiras que se praticam no sector financeiro. Veremos exemplos gritantes disso quando falarmos do caso BPN num próximo artigo.
  
Para terminar apontamos um exemplo esclarecedor (noticiado em alguns canais de televisão estrangeiros e no JN [8]) do completo despudor com que os vilões do costume do sector financeiro operam; despudor e sentimento de impunidade por se sentirem a cúpula do «seu» Estado. Em Junho de 2013, órgãos de comunicação da Irlanda revelavam escutas telefónicas de 2008 a dois dirigentes do Anglo Irish Bank, nas quais estes fazem paródia sobre o pedido de resgate feito pelo banco e a hipótese de nacionalização. Os dois dirigentes conversam, muito divertidos, sobre as mentiras que avançaram para obter do Governo o apoio financeiro desejado supostamente para impedir a insolvência do banco. Riem-se com o facto de terem pedido ao Governo uma injecção de 7 biliões de euros, quando, na verdade, o banco precisava de muito mais. Quando um deles pergunta ao outro como chegou à estimativa de 7 biliões, este diz que foi apenas um número «sacado da cartola» e que não convinha avançar com o montante correcto para não assustar nem o Governo nem os contribuintes. Ambos concordam que o ideal era partir dos 7 biliões e ir aumentando a verba gradualmente, recorrendo sempre ao argumento de que seria «bem pior para toda a gente deixar o banco afundar-se». O Anglo Irish Bank acabou por receber 30 biliões de euros e veio a ser nacionalizado em Janeiro de 2009. Os dois dirigentes mantiveram-se incólumes na administração.
  
Pois bem, como veremos noutro artigo, algo semelhante aconteceu com o BPN e, em menor medida, com outros bancos portugueses. E podemos estar certos de que aquilo que se conhece das vilanias oficiais e do costume é apenas a ponta do icebergue.
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Próximo artigo:
O sector financeiro. III: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões do costume (continuação).
Neste artigo procuraremos explicar e tipificar, com exemplos, os vários tipos de fraudes praticadas no sector financeiro. O nosso propósito é fornecer esclarecimentos que permitam compreender casos portugueses recentes, a apresentar em artigos posteriores.



[1] Michael Roberts (2009) The Great Recession. Profit cycles, economic crisis. A Marxist View. ISBN 978-1-4452-4408-2.
[2] V. I. Lenine, «Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo», tomo 2 das Obras Escolhidas em seis tomos, Editorial «Avante!», 1984.
[3] A citação de Charles Coquelin, "Du crédit et des banques dans la industrie", vem em Karl Marx, "Capital", vol. III, Cap. 25, "Crédito e Capital Fictício", p. 527, Penguin Books Ltd, 1981.
[4] A citação de G. W. Gilbart, "The History and Principles of Banking" vem em Karl Marx, "Capital", vol. III, Cap. 25, "Crédito e Capital Fictício", p. 532, Penguin Books Ltd, 1981.
[6] Michael Sivy "Why Derivatives May Be the Biggest Risk for the Global Economy", Time (Business & Money), 27/2/2013 (http://business.time.com/2013/03/27/why-derivatives-may-be-the-biggest-risk-for-the-global-economy/)
[8] "Banqueiros escutados a parodiar pedido de resgate ao Estado", JN, 25/6/2013.