quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A Economia convencional: uma pseudociência (IVb)

IV. Produtividade e Oferta
Vimos no artigo anterior a razão que leva os economistas neoclássicos a guiar-se em macroeconomia pela regra que pensam optimizar o lucro: a regra da receita marginal igualar o custo marginal. A razão é esta: a curto prazo (custos fixos constantes) a produtividade de uma firma diminui à medida que a produção aumenta.
Contudo, como também já vimos no artigo anterior, os dados empíricos do mundo real desmentem a crença dos economistas neoclássicos da diminuição da produtividade com a produção.
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As razões porque as coisas não se passam no mundo real como os economistas neoclássicos as imaginam, foram elucidadas já em 1926 pelo famoso economista neo-ricardiano e keynesiano Piero Sraffa. A análise detalhada dos argumentos de Sraffa, argumentos esses comprovados por firmas do mundo real, é apresentada no livro de Steve Keen. Cingimo-nos aqui a uma apresentação simplificada:
1 – O abaixamento da produtividade que os neoclássicos assumem, não se verifica na prática. No mundo real a produtividade é em geral constante (a firma só usa o número de trabalhadores adequado à capacidade instalada), pelo que a curva da receita total é uma recta (e não como mostrada na figura 3), logo o custo marginal é constante. Sendo assim, logo que a recta da receita total ultrapassa a recta do custo total, verificar-se-ia, se mais nada acontecesse, um lucro sempre igual por cada unidade extra produzida. Isto é, a produção continuaria até infinito!
2 – Efectivamente a produção não continua até infinito porque as assunções neoclássicas de que existem «factores de produção» fixos num ciclo produtivo (a) e de que a oferta e a procura no «mercado competitivo» são independentes (b) não podem ser satisfeitas simultaneamente. As assunções (a) e (b) são contraditórias.
3 – Factores que alteram a oferta (por exemplo, salários) também afectam a procura. Por conseguinte, a oferta e a procura intersectar-se-ão em múltiplos pontos sendo impossível dizer que preço ou quantidade prevalecerá. Portanto, a ideia neoclássica de receita marginal fixa e igual ao preço de mercado não tem fundamento. (Já vimos no artigo anterior outra abordagem deste aspecto.)
4 – Uma firma procura, racionalmente, produzir em cada momento com a maior produtividade possível, adequando os valores dos custos variáveis (trabalho) aos custos fixos (capital investido: maquinaria, etc.). A firma trabalha sempre na máxima eficiência possível, fixando o preço pelo custo total médio. A determinação da quantidade por um preço de mercado (intersecção de receita marginal com custo marginal da figura 4 acima) levaria a firma a operar muito acima do valor de máxima eficiência. (Já vimos atrás que o custo médio está acima do custo marginal até quase atingir o ponto de intersecção.) A teoria neoclássica só seria, assim, aplicável num cenário de utilização total (por todas as firmas) do trabalho e do capital. Ora, é sabido que para além do desemprego sempre presente, também a capacidade de utilização das firmas está sempre bem abaixo dos 100%. A figura 5 mostra isso mesmo para o sector industrial dos EUA. Vemos que a capacidade total utilizada face à instalada (grosso modo, maquinaria usada face à existente) está sempre abaixo de 100% e inclusive tem vindo a diminuir, estando em 2011 em 77% (os traços verticais assinalam inícios de recessões). O declínio da capacidade está correlacionado com o declínio do emprego.

Fig. 5. Evolução da capacidade de utilização nos EUA (Dados do NBER).

Em suma: Ao contrário do que assumem os economistas neoclássicos ¾ cada firma produz no ponto em que o custo marginal iguala a receita marginal ¾, a receita marginal da última unidade vendida será normalmente substancialmente superior ao custo marginal de a produzir; a quantidade produzida não é constrangida pelo custo marginal, mas sim pelo custo e dificuldade de expandir as vendas à custa das firmas competidores. A produção depende da competição.
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A teoria económica neoclássica da determinação do emprego e do valor do salário é um exemplo gritante das conclusões a que conduz a regra de «custo marginal iguala a receita marginal». A regra leva a fixar o salário real como equivalendo ao produto marginal do trabalho. O empregador toma o salário como fixo pelo mercado (no mercado competitivo, como já vimos, nenhum empregador pode afectar o preço das suas entradas). O empregador só empregará um trabalhador adicional se a quantidade que ele adiciona à produção ¾ a produção marginal do trabalhador ¾ exceder o salário real. Daí a frase predilecta dos economistas neoclássicos: se há desemprego é porque os salários estão muito altos!
Belo, não é? Uma demonstração científica das causas do desemprego! Com a desmontagem da regra de «custo marginal iguala a receita marginal» fica também desmontada a «teoria» explicativa do desemprego.
Uma outra influência da regra de «custo marginal iguala a receita marginal» é a da fixação de preços em empresas públicas. Seguindo a regra, os economistas neoclássicos normalmente pressionam as empresas públicas a fixar o preço igual ao custo marginal. Como o custo marginal é normalmente constante e bem abaixo do custo total médio (ver atrás), tal política leva a que normalmente as empresas públicas tenham prejuízo, impedindo-as de manter a qualidade desejável dos serviços prestados. Isso serve de pretexto para pressionar no sentido da privatização das empresas públicas e  para induzir os cidadãos a optarem pelo fornecimento de serviços fora do sector público. O resultado final, tal como Ken Galbraith o exprimiu, é «a abundância privada e o miserabilismo público».
De facto, como detalha Steve Keen no seu livro, a desmontagem da regra «custo marginal igual à receita marginal» corresponde ao colapso do edifício da economia neoclássica.
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Uma outra razão importante da fraqueza da economia convencional (neoclássica) é não tomar o factor tempo como parte integrante da análise.
De facto, a determinação do ponto de maximização do lucro pela regra «custo marginal igual a receita marginal» supõe, como já vimos anteriormente, um «curto prazo»; na realidade, a análise desenrola-se supondo constantes os salários e os custos fixos; isto é, trata-se de uma análise estática, de «tempo parado».
É óbvio que o tempo não está parado. Teremos, então, de ter em conta dois factores afectam o lucro: a quantidade da produção (factor já anteriormente considerado) e o tempo. Podemos escrever para a análise dinâmica ([1]):

Variação do lucro  =    (variação do lucro com o tempo) ´ variação do tempo +
                                    (variação do lucro com a quantidade) ´ variação da quantidade

A variação do lucro com a quantidade é o mesmo que «receita marginal menos custo marginal». Seguindo a teoria neoclássica o lucro é máximo quando esta quantidade é nula. Logo, quando o lucro é máximo, temos apenas:
Variação do lucro  = (variação do lucro com o tempo) ´ variação do tempo
Ora, a teoria neoclássica ignora o tempo. Segundo a teoria neoclássica uma firma deve maximizar o lucro agora; mesmo que isso signifique gastar recursos que faltem para a firma poder sobreviver e crescer mais tarde. As consequências negativas e drásticas de não ter em conta o comportamento dinâmico serão vistas num próximo artigo.

[1] Para os versados em Matemática, trata-se da bem conhecida regra dL = L/t.dt + L/q.dq, em que t é o tempo e q a quantidade.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Os 10% e os 25% do Fundo

O fenómeno da pobreza em Portugal tem sido reconhecido e diagnosticado pelas mais diversas fontes. Na sequência da contra-revolução, de recuperação capitalista e monopolista, iniciada a 25 de Novembro de 1975, os três partidos que sempre têm participado em governos constitucionais – PS, PPD/PSD, CDS – não têm poupado palavras nem apresentações programáticas que incluem, como um dos grandes objectivos, a melhoria das condições de vida dos «mais desfavorecidos». Aliás, o próprio PS, que encabeçou politica, ideologicamente e até militarmente (através dos militares que lhe eram afectos) o golpe do 25 de Novembro que inflectiu o rumo da revolução dos cravos, justificou-se com a noção de que era necessário rejeitar o «socialismo de miséria». Não, com o PS as coisas não iriam ser assim. PPD/PSD e CDS apoiavam-no nessa cruzada. Estranhamente, ao fim de 37 anos de abnegados esforços do PS, PPD/PSD e CDS, a miséria em Portugal aumentou enormemente.
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No presente artigo vamos olhar para os 10% e os 25% do fundo da distribuição de rendimento em Portugal. O tema da distribuição de rendimento foi já por nós abordado nos artigos «Os 99% e os 1%» no passado 18 de Outubro e «Os 1% do topo», do passado 14 de Novembro.
Nos 10% do fundo da distribuição de rendimento situam-se os agregados familiares em situação de pobreza, crónica ou quase crónica. Nos 25% do fundo a situação pouco melhor é.
Vejamos alguns recortes de imprensa de anos recentes:
Diário Económico (16 de Outubro de 2007): «Há dois milhões de pobres em Portugal […] Um quinto dos portugueses vive com menos de 360 euros por mês. E 32% da população activa entre os 16 e os 34 anos seria pobre se dependesse só do seu trabalho.[…]»
Jornal Público (7 de Outubro de 2009): «[…] o Rendimento de Inserção Social beneficia cerca de 3,7% dos portugueses que recebem assim uma média de 89 euros por mês […]».
Jornal de Notícias (15 de Outubro de 2009): «Pobreza em Portugal não pára de crescer: "Os portugueses continuam a empobrecer". A conclusão é da Assistência Médica Internacional […].
A Assistência Médica Internacional (AMI) diz que há uma nítida tendência para um crescente número de casos de pobreza e que a grande maioria das pessoas que pede auxílio se encontra em plena idade activa, entre os 21 e os 59 anos de idade. […] a AMI refere que 5201 pessoas procuraram o apoio social da organização. "Mais 506 que em igual período de 2008 e um número que se aproxima perigosamente dos totais anuais de anos anteriores (em 2004, o número total foi de 5929)". Em comparação com o primeiro semestre do ano anterior, verifica-se um aumento de cerca de 10%.
No primeiro semestre deste ano, quase duas mil pessoas recorreram pela primeira vez ao apoio social da AMI, "mais 24% que durante o mesmo período no ano anterior".
A maioria da população que recorreu aos centros Porta Amiga encontra-se em situação de desemprego (80%), tendo como principais recursos os subsídios e apoios institucionais e o apoio de familiares ou amigos.»
Correio da Manhã (5 de Março de 2012): «Portugal tem 2,5 milhões de pobres: A pobreza (rendimento inferior ao Salário Mínimo Nacional) já atinge um quarto da população portuguesa […]».
Jornal de Notícias (17 de Outubro de 2012): «Há mais de 3 milhões de pobres. Governo destrói 20% de emprego: o programa de ajustamento com a troika resultará na destruição de 344.000 postos de trabalho dos quais 74.000 do sector público. Isto, no mínimo. […]»
«Isabel Jonet presidente do Banco Alimentar declara: Há 1 milhão de idosos em Portugal a viver com menos de 280€ por mês. Dados do INE relativos a 2010 mostram que quase metade da população (42,5%) estaria abaixo do limiar de pobreza se não beneficiasse de transferências sociais do Estado. Mesmo com ajuda 18% dos portugueses está em situação de pobreza: 1,9 milhões. Em 2 anos as prestações sociais sofreram cortes e o desemprego disparou. Isabel Jonet lembra que a estatística não contabiliza «o rendimento disponível depois de saldados os compromissos com os créditos bancários […]».
«O padre Jardim Moreira, Presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza afirma que o Orçamento de Estado vai deixar Portugal com «mais de três milhões de pobres». É 30% da população. Há quem diga que é mais. [Diz o padre] «[…] a troika tem atitude nazista para com o nosso país, na busca do dinheiro emprestado. Depois o Governo, que não o tem, quer ir buscá-lo a quem ainda tem menos, massacrando a população, a classe média. E os bancos que antes empurravam os empréstimos, agora querem receber rapidamente e a todo o custo».

Um fenómeno quase desconhecido antes dos anos 80 é o dos sem-abrigo. Ganhou expressão depois da primeira intervenção do FMI em Portugal pela mão do PS (1977). Eis três recortes recentes da imprensa sobre o assunto:
I – Informação (25 de Agosto de 2011): «Número de sem-abrigo aumenta cerca de 30% desde 2008».
Diário de Notícias (1 de Novembro de 2011): «O número de pessoas sem-abrigo que pedem ajuda ao centro Porta Amiga da AMI em Almada é "significativo" e "tende a agravar-se" […] Até Setembro de 2011 foram atendidas 1.322 pessoas. […] "este aumento vai ao encontro da tendência registada em todos os centros da AMI espalhados pelo país" […] Já entre 2009 e 2010 o centro [de Almada] registara uma subida de 900 para 1.268 pedidos de ajuda, mais de 150 feitos por pessoas com mais de 60 anos […]».
Jornal de Notícias (24 de Agosto de 2011): «Número de sem-abrigo aumentou 20% a 30% nos últimos três anos. […] Também o presidente da Cais, Henrique Pinto, admite não conhecer o número exacto de sem-abrigo em Portugal, até porque "muitas vezes a contagem é feita a partir dos albergues e dos quartos pagos pela Segurança Social ou pela Santa Casa da Misericórdia, mas há um grande número de pessoas que vive em casas abandonadas, devolutas e pessoas que vivem de facto na rua". […] Os órgãos de comunicação social "falam em três mil em Lisboa e cerca de dois mil no Porto, mas não há dados actualizados e rigorosos", ressalva Henrique Pinto.».

Como é óbvio, o desemprego é uma das principais causas da pobreza, como assinalam algumas notícias acima. Não vamos, contudo, debruçar-nos aqui na análise das causas da pobreza, mas simplesmente procurar dar uma contribuição esclarecedora na caracterização do fenómeno (há várias análises caracterizadoras disponíveis na Internet, nomeadamente da Rede Europeia Anti-Pobreza e do Observatório das Desigualdades).
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Vamos a factos.
Na notícia do JN de 17/10/2012 refere-se «1 milhão de idosos em Portugal a viver com menos de 280 € por mês». Como se pode chegar a estes números ou semelhantes? Vejamos os valores do Rendimento Social de Inserção (RSI) de 2012, publicados no portal da Segurança Social. São eles:
Pelo titular
189,52 €
Por cada indivíduo maior
94,76 €
Por cada indivíduo menor
56,86 €


Um casal de idosos que viva apenas do RSI aufere 189,52 + 94,76 = 284,28 €. Cá estão os 280 €/mês. Note-se que se o casal não for de idosos, e apenas um deles auferir o RSI (o outro pode estar sem rendimento e em situação que não o habilite ao RSI) teremos uma média de 94,76 € por indivíduo, um valor não muito longe dos 89 €/mês assinalado na notícia acima de 7/10/2009.
Um agregado familiar (família), constituído por um casal com um filho menor, que viva apenas do RSI aufere 189,52 + 94,76 + 56,86 = 341,14 €/mês, ou seja 4093,68 € por ano. A dimensão média dos agregados familiares em Portugal é de 2,7 (dados do Eurostat) pelo que o nosso valor de 4093,68 € deverá funcionar bastante bem como uma média por agregado familiar e por ano. Ora, acontece, que se olharmos para os percentis (ver definição no n/ artigo «Os 1% do topo») da distribuição de rendimento em Portugal em 2011 (disponíveis no Eurostat), verificamos que o percentil 10% para Portugal em 2011 era de 4038 €. É certo que os valores do RSI que indicámos são para 2012; mas a diferença não é importante; quer os valores dos percentis quer o RSI pouco têm variado nos últimos anos.
Em suma, podemos dizer que 10% dos agregados familiares em Portugal têm um rendimento abaixo do que corresponderia a só auferirem o rendimento médio do RSI.
Estamos, portanto, a falar dos 10% do fundo da distribuição de rendimento. Mas 10% de agregados familiares, admitindo uma variação pouco importante da dimensão média dos agregados familiares ao longo da distribuição de rendimento, corresponderão aproximadamente a 0,1´10.561.614 (população) = 1,056 milhões de pessoas.
Nos recortes de imprensa acima referem-se também valores mais elevados, por exemplo 2,5 milhões de pobres considerando como pobreza um rendimento inferior ao salário mínimo nacional (SMN). Este foi em 2011 de 485 € (Pordata), um valor bastante superior à média de 94 € por indivíduo a receber RSI. Supondo que um agregado familiar só tem de rendimento o SMN, obtemos um rendimento anual de 5820 €. É um valor muito próximo do percentil 25% (5.838 €) que corresponde a cerca de 2,5 milhões pessoas.
Portanto, em 2011:
10% das famílias portuguesas auferiam um rendimento abaixo de 4038 €/ano.
25% das famílias portuguesas auferiam um rendimento abaixo de 5838 €/ano.
Fisicamente, materialmente, o que significam estes números?
Notemos que 4038 €/ano representam 11,06 €/dia. Supondo um casal de idosos, o que consegue o casal comprar com este rendimento diário? Certamente que o mais necessário. E a necessidade das necessidades é o trio água, comida e habitação com o mínimo de condições.
Comecemos pela comida. Os cientistas calcularam que, além dos nutrientes fundamentais, é necessário um mínimo diário de 1300 kcal para que uma pessoa adulta sobreviva sem desnutrição. A reputada Food and Drugs Administration (FDA) dos EUA recomenda mesmo valores superiores (2000 kcal) para quem exerce qualquer actividade. Vamos restringir-nos ao mínimo e conceber uma dieta com os nutrientes necessários e de alimentos de baixo custo. Poderia ser, para uma pessoa e por dia:
Tabela 1
Alimento
Kcal
4 pães
540
1 ovo estrelado
108
2 copos de leite
304
2 colheres de arroz
88
1/4 frango
94
2 cafés com açúcar
56
2 laranjas ou maçãs
50
Outros (legumes, etc.)
35
TOTAL
1275

Não seria certamente esta a dieta que recomendaríamos. Mas, como é óbvio, estamos a seguir o exercício possível com os valores do RSI e do SMN que não escolhemos.
Chegámos a um valor próximo do «mínimo» diário em kilo calorias. Alguns cálculos simples revelam que esta dieta, para duas pessoas, custa da ordem de 5€/dia, ou seja, 150 €/mês.
Quanto á habitação, a renda de um T1 nos grandes centros atinge valores da ordem dos 300 €. É claro que isto é incomportável para o nosso casal de idosos. Vamos supor um T1 antigo de 100 € de renda. Chegaremos, então, a um orçamento mensal que, com mais ou menos variações andará, julgamos, à volta disto:
Tabela 2
Componente
Custo mensal (€)
% do Total
1 - Alimentação
150
36,9
2 - Renda (ou amortização) de casa
100
24,6
3 - Água
12
2,9
4 - Electricidade (e gás)
30
7,4
5 - Telefone (telemóvel)
10
2,5
6 - Vestuário e calçado
(novo, reparações, etc.)
10
2,5
7 - Saúde
30
7,4
8 - Medicamentos
30
7,4
9 - Transportes públicos
30
7,4
10 - Artigos de higiene, limpeza, etc.
5
1,2
TOTAL
407
100
Chegámos a um valor que supera os 11,06 €/dia e isto mantendo-nos nos «mínimos». Não é, assim, de espantar, notícias tantas vezes divulgadas de os idosos não poderem comprar todos os medicamentos que necessitam.
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O Eurostat permite prontamente obter as percentagens do PIB (Produto Interno Bruto) a que correspondem os 10% e 25% das famílias do fundo da distribuição de rendimento. Assim, em 2011, 10% das famílias de mais baixos rendimento tinham um rendimento total que representava 2,9 % do PIB (de toda a riqueza produzida nesse ano) e 25% das famílias de mais baixos rendimento representavam 10,1% do PIB. Em comparação, os 1% do topo da distribuição ¾ logo, um número de famílias 10 e 25 vezes menor ¾ «comiam» 6,4 % do PIB.
Mas, qual é a evolução da miséria dos 10% e dos 25%? Será que tem diminuído, como alguns afirmam? A figura 1 abaixo representa a evolução da percentagem do PIB correspondente aos 10% e 25% do fundo (os dados de 2002 não constam da tabela do Eurostat para nenhum país).

Fig. 1
Olhando para o gráfico, parece que os que afirmam que os pobres estão menos pobres têm alguma razão. Mais: parece que a entrada de Portugal na Zona Euro em 2002 trouxe algum benefício aos mais desfavorecidos, como alguns não se cansam de dizer. Mas será assim?
A questão é que estamos a esquecer a evolução dos preços ao longo de todos estes anos. Felizmente, o Eurostat fornece os chamados valores dos índices harmonizados dos preços de vários bens de consumo. Usando também os dados da percentagem de actualização das rendas de casas antigas, e considerando o ano de 2005 como o ano de referência (valor do índice = 100), obtém-se a tabela dos índices de preços (referentes aos componentes do orçamento da tabela 2) que estão na nota [1]. Usando as percentagens dos componentes de orçamento familiar da tabela 2 é, então, fácil calcular um índice de evolução de orçamento: como evoluiu o custo do orçamento acima. Os valores são estes:

1997
1998
1999
2000
2001
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
81,1
84,2
85,4
87,1
90,7
94,6
95,8
97,0
99,8
103,2
106,0
104,3
104,5
108,1


Assim, vê-se, por exemplo, que o orçamento da tabela 2 custava em 2011 cerca de 8% mais do que em 2005.
O gráfico da evolução da percentagem do PIB, entrando em linha de conta com a variação do custo do orçamento é mostrado na figura 2. O mito de que os «pobres» têm melhorado a sua condição e, em particular, que essa melhoria se verificou após a entrada na Zona Euro, desfaz-se completamente.
Pouco importa que o orçamento que consideramos não seja o da tabela 2. Será sempre um orçamento em que o que pesa menos são as rubricas de comunicações (5) e vestuário e calçado (6) cujos preços pouco variaram ou até desceram. Os restantes 8 componentes do orçamento sofreram aumentos percentuais de preço importantes de 2005 para 2011, com particular relevância para: alimentação (7,4%), renda de casa (12%), água (27,4%), electricidade (32,1%), saúde (12,3%), transportes (23,1%), artigos de limpeza e higiene (16,1%).
Fig. 2

Pode-se argumentar que a mesma evolução dos índices de preços afecta outras camadas da população, incluindo os 1% do topo. Contudo, já vimos nos nossos artigos anteriores, que o património e rendimentos dos muito ricos não mostram decréscimos recentes; bem pelo contrário. Concomitantemente, no que se refere aos preços, a questão está em que não é a alimentação, a renda de casa, etc., que pesa no orçamento dos ricos. O que os preocupa é o montante dos bens imobiliários e os fundos que podem transferir para off-shores. Podemos ter a certeza que continuarão a poder consumir o mesmo número de lagostas por ano e a viver em mansões luxuosas.
*    *    *
Um aspecto importante quando se fala de pobreza em países da União Europeia (UE) é que, para o organismo estatístico oficial da UE, o Eurostat, não há pobreza! Há simplesmente o risco de cair na pobreza. Além disso, quanto a indicadores de carências materiais, a visão dos burocratas da UE (bem afastados do odor da pobreza) é muito sui-generis.
Comecemos por este último tópico. O Eurostat publica aquilo que designa por estatísticas de carências de habitação, bens duradouros e ambientais. Baseiam-se em entrevistas a agregados familiares (desconhecemos os critérios e o tamanho da amostra porque o Eurostat não os revela) e seguem os ditames do Regulamento n.º 362/2008 da Comissão Europeia (CE). Note-se que só a partir de 2008, depois da crise mundial da «bolha imobiliária», os burocratas da CE se lembraram de que poderia haver «carências».
Mas, o que entendem eles por «carências»? Bom, nas carências de bens duradouros entendem, por exemplo, não ter Internet, não ter telemóvel, não praticar desporto e ir ao cinema, não ter actividades de lazer, não ir de férias, etc.! Sim, leitor, é verdade. Uma série de carências típicas dos pobres. Nas carências ambientais incluem questões como fraca acessibilidade aos transportes e aos CTT. Nas carências habitacionais incluem, para além de despejo e de dificuldades hipotecárias, o viver longe do trabalho ou da Universidade, o desejo de viver noutra vizinhança (talvez, quem sabe, se possível afastada da pobreza), etc. Mais uma vez uma série de preocupações típicas dos pobres. Por fim, na catadupa de folhas de dados inúteis que publicam, lá aparece uma única folha de dados sobre a «carência» alimentar, assim definida: «impossibilidade de ter uma refeição de carne, frango ou peixe, ou equivalente vegetariano, em cada dia alternado». Note-se o arbitrário da formulação. Por exemplo, relativamente à carne: trata-se de um farrapo de gordura de carne de cozer ou de um bife de lombo de 200 g? Mas, prestemo-nos ao exercício. Como é que Portugal se comportou em 2011 neste indicador? Nada mal, segundo nos mostra a figura 3 construída com os dados do Eurostat. Pelos vistos, a crise que atravessamos até tem diminuído a percentagem de população portuguesa com «impossibilidade de ter uma refeição de carne, frango ou peixe, ou equivalente vegetariano, em cada dia alternado». Que digo eu? Nunca estivemos tão bem! Dá azo a pensar que os pobres, ultimamente com a crise, têm vindo a comer carne, frango ou peixe com todo o à vontade; isto, claro, quando não vão ao restaurante comer o «equivalente vegetariano». Todos os dias tais atoardas são desmentidas por personalidades bem dentro do problema (ver notícias acima); agora até estudantes e pessoas da «classe média» em Portugal recorrem à sopa dos pobres.

Fig. 3

Vejamos, agora, a questão do «risco de cair na pobreza».
Os indicadores de pobreza podem ser de dois tipos: absolutos e relativos. Os indicadores absolutos correspondem a estabelecer um montante absoluto de limiar de pobreza. É o que faz o Banco Mundial quando estabelece um montante abaixo do qual considera pobre um cidadão. As estatísticas do Banco Mundial tomam como limiares 1,25 e 2 dólares americanos (relativos a 2005) por dia. É claro que estes limiares têm alguma arbitrariedade. Como já dissemos no nosso artigo anterior («os 1% do topo») o nível de pobreza tem de ser enquadrado num dado contexto sócio-económico e civilizacional. Por exemplo, no estádio tribal primitivo, os índios do Amazonas ou os hotentotes de África sentem-se perfeitamente bem com rendimentos abaixo daqueles valores.
Uma outra abordagem é a dos indicadores relativos: por exemplo, uma certa percentagem do rendimento mediano. É o que faz o Eurostat com o indicador «taxa de risco de pobreza» definido assim: «A taxa de risco de pobreza [at-risk-poverty rate em inglês] é a porção [share no original em inglês] da população com um rendimento disponível «equivalizado» [aspas nossas para tradução de equivalised, termo inventado] abaixo do limiar de risco de pobreza [at-risk-poverty threshold em inglês] que é fixado em 60% da mediana do rendimento disponível depois de [efectuadas] transferências sociais». Os burocratas da UE gostam muito de usar formulações complicadas; afastam, assim, o comum dos mortais da sua compreensão.
Bom, desmontemos esta «definição»:
1 – A «porção da população» é de facto a percentagem da população.
2 – O «rendimento disponível equivalizado» é definido como o «rendimento disponível total do agregado familiar dividido pela sua dimensão equivalente», sendo esta calculada em termos de um equivalente em adultos (entre outras coisas, para o Eurostat uma criança abaixo de 14 anos vale 30% de um adulto; o que quer dizer que se um pobre adulto comer um farrapo de gordura de carne de cozer, então a criança terá de comer um terço do farrapo). Também não entendemos o porquê da invenção do estranhíssimo termo equivalised que traduzimos por «equivalizado» para dar o sabor do texto original; peder-se-ia simplesmente dizer «equivalente a».
3 – O limiar da «taxa de risco de pobreza» corresponde a 60% da mediana da distribuição de rendimentos de cada país, tendo em conta que deverão estar contabilizados nos rendimentos as transferências sociais (por exemplo, o rendimento de inserção social no caso português).
Mas, atenção! Para o Eurostat, isto não é um limiar de pobreza, mas sim um limiar de «risco de pobreza». O Eurostat faz questão de sublinhar isto mesmo. Trata-se, portanto, de uma espécie de probabilidade de cair numa situação de pobreza. Mas o que é isso de «situação de pobreza»? O Eurostat não diz e não sabe.
Contactámos o Eurostat ao qual solicitámos esclarecimento sobre esta questão. A nossa pergunta foi: «Nas v/ estatísticas há indicadores do "at-risk-of-poverty rate". Ora, se há risco de cair na pobreza, então implicitamente há um limiar de pobreza. Qual é então para o Eurotat o limiar da pobreza? Refiro-me ao "limiar de pobreza" e NÃO ao "limiar do risco de cair na pobreza" (definido pelo Eurostat como "60% da mediana dos rendimentos..."). Ou será que o Eurostat quantifica o risco de cair na pobreza mas não a pobreza? Isto é, para o Eurostat não há pobres na Europa?»
Foi-nos respondido o seguinte (tradução, ênfase e comentários nossos): «Os indicadores usados para monitorizar o progresso a nível da UE da inclusão social (no Método Aberto de Coordenação) baseiam-se principalmente no rendimento monetário. O principal indicador, a taxa de risco de pobreza, baseia-se na definição de rendimento e contabiliza como indivíduos pobres os que vivem em agregados familiares cujo rendimento disponível equivalizado está abaixo do limiar de 60% da mediana do rendimento nacional equivalizado. [Contradiz a definição do Eurostat que declara não ser a taxa de risco de pobreza um indicador de pobreza] Dada a natureza do limiar definido [retained=retido, no original] e o facto de que por ter um rendimento abaixo deste limiar não é nem condição necessária nem suficiente para ter um baixo nível de vida, este indicador é referido como uma medida de risco de pobreza [circunlóquio e nova contradição; agora com a frase anterior, que afirmava textualmente que os pobres eram contabilizados abaixo do limiar dos 60%, pelo que, se a condição não é suficiente é pelo menos necessária!] Como complemento a estes indicadores monetários um novo indicador de carência material foi adicionado ao conjunto de dados da EU a partir de 2009. […]» A frase final é uma forma bonita de confessar que toda a «conversa» anterior se podia resumir assim: Não; o Eurostat antes de Fevereiro de 2009 não tinha um indicador de pobreza. Agora já tem os indicadores de «carência material» cuja qualidade já vimos qual era. Resumindo e concluindo: para o Eurostat não há pobres na Europa da UE (Sabem? Não é politicamente correcto) e, portanto, também não os há em Portugal. Para que serve então a intrincadíssima definição de «taxa de risco de pobreza», feita para especialistas e não para o cidadão comum?
Mas imaginemos que o limiar do Eurostat servia para qualquer coisa, como parece ser a convicção de alguns em Portugal (nomeadamente do Observatório das Desigualdades). A tabela 3 mostra os valores medianos dos rendimentos anuais de quatro países europeus incluindo Portugal.

Tabela 3. Rendimentos em €.

Mediana anual
60% da mediana anual
60% da mediana mensal
60% da mediana diária
Alemanha
19043
11425,8
952,2
31,3
Espanha
12514
7508,4
625,7
20,6
França
19995
11997,0
999,8
32,9
Portugal
8410
5046,0
420,5
13,8
Noruega
36453
21871,8
1822,7
59,9


Vemos que 60% da mediana corresponde mensalmente a um valor próximo do indicado acima para uma casal com um filho recebendo RSI. Corresponde a cerca de 20% da população. Mas, vejamos por exemplo o caso da Noruega: 1823 € por mês é estar em risco de cair na pobreza? Muito estranho; tanto mais que se o leitor se der ao trabalho de obter preços de bens de consumo verificará que 1823 € por mês na Noruega valem, de facto, muitíssimo mais do que 421 € em Portugal. Idênticas observações se fariam para os países da tabela 3.
Mas existe uma outra razão poderosa para rejeitar o critério dos 60% da mediana, conforme ilustra a figura 4. Temos duas curvas de distribuição de rendimento com a mesma mediana (igual área à esquerda e à direita da recta a tracejado da mediana). Enquanto a curva de cima é fortemente assimétrica, com uma grande concentração na zona dos baixos rendimentos, a curva de baixo é bastante menos assimétrica e a concentração na zona dos baixos rendimentos é bem menor. A área abaixo da curva e à esquerda da recta a tracejado grosso (os 60% da mediana) é bastante maior em cima (logo, maior pobreza ou «risco de pobreza») do que em baixo.

Fig. 4

Portanto, duas distribuições de rendimento com a mesma mediana podem corresponder a percentagens de pobreza totalmente distintas.
Conclusão: quer os critérios de limiares absolutos quer os de limiares relativos em voga, falham redondamente na avaliação da pobreza; e falham, em particular, quando queremos ter uma descrição evolutiva ou comparativa.
O único método cientificamente apropriado é o que esboçámos acima. O método do «cabaz de compras» de artigos de primeira necessidade num dado contexto socio-económico e civilizacional. Dizemos «cientificamente apropriado» porque o critério básico de cientificidade de um método é a sua capacidade de descrever a realidade material.

[1] Indíces de preços para os componentes (itens) da tabela 2.
Item.
1997
1998
1999
2000
2001
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
1
82,9
85,8
87,7
89,7
95,7
99,4
100,5
100
102,9
105,5
109,5
105,5
105,2
107,4
2
84,2
85,9
87,7
89,5
91,3
95,1
97,0
100
103,0
106,5
109,2
110,9
111,6
112,0
3
75,8
78,1
81,9
83,5
84,6
90,9
95,8
100
105,2
111,0
116,0
120,2
123,8
127,4
4
82,0
83,2
80,7
83,7
87,8
92,1
94,4
100
104,1
107,9
112,7
113,2
119,9
132,1
5
117,3
113,3
109,2
103,9
101,6
101,2
100,2
100
99,1
97,4
95,4
94,4
92,5
95,3
6a
105,9
99,6
100,0
100,4
100,8
102,5
101,1
100
100,7
102,7
104,0
102,0
100,1
95,8
6b
90,4
86,9
87,3
89,0
93,2
101,6
101,2
100
99,9
102,8
105,6
104,7
103,4
100,6
7
79,8
83,1
85,5
87,7
90,9
97,5
99,2
100
101,5
109,1
110,5
108,9
107,5
112,3
8
102,9
102,9
102,9
102,9
103,0
103,6
102,3
100
99,6
107,2
103,9
98,8
96,9
104,4
9
73,0
76,2
77,9
81,5
85,7
93,3
95,8
100
107,7
110,2
116,4
112,4
112,5
123,1
10
76,6
78,8
82,3
85,3
89,8
97,3
98,7
100
101,0
102,6
106,1
109,9
114,0
116,1