quarta-feira, 14 de novembro de 2012

«Governo de Esquerda» dizem eles

Ultimamente tem-se ouvido falar muito em promover um futuro «governo de esquerda», quer como resultado de novas eleições, quer mesmo como alternativa para o caso, por enquanto muito improvável, de queda do actual governo.
Têm-se pronunciado nesse sentido sectores ligados ao Bloco de Esquerda ¾ foi tema importante da Convenção que realizaram no último fim-de-semana ¾, renovadores comunistas, Congresso das Alternativas e outros grupos e individualidades que se dizem da esquerda, incluindo também um ou outro democrata com ligação ao PCP como o ex-Secretário Geral da CGTP.

Concretamente, o que dizem querer e entender estes sectores e individualidades por «governo de esquerda»?
1 - Isto: um governo com participação do PS, PCP e BE.
Entretanto, na realidade, o que estariam dispostos a aceitar esses sectores e muitas dessas individualidades como «governo de esquerda»?
2 - Isto: um governo de aliança do BE com o PS e, possivelmente, alguns independentes e/ou renovadores comunistas.

A hipótese 2 transpirou por todos os poros no Congresso das Alternativas e, novamente, agora, na Convenção do BE. Por exemplo, o ex-dirigente do BE, Daniel Oliveira, disse querer uma convergência à esquerda com o PS. “Não haverá um governo de esquerda que exclua o PS e mais retórica menos retórica todos nós sabemos isso”. Notem a ideia de «convergência à esquerda com o PS». Não é só Daniel Oliveira, como é óbvio, que pensa assim. Uma enorme quantidade de vozes que se dizem da esquerda pensam como Daniel Oliveira. Para eles o PS é de esquerda. E tudo que seja contra tal ideia é liminarmente afastado porque é só «retórica»!

Desde o 11 de Março de 1975 (já lá vão mais de 37 anos) que o PS largou o lastro das suas afirmações como partido marxista e das suas tiradas revolucionárias e anti-capitalistas, para se lançar com denodo na contra-revolução ao serviço do capital. De alma e coração como apoiante activo do 25 de Novembro de 1975 (a amizade entre Mário Soares e o embaixador Frank Carlucci da CIA data precisamente dessa altura), disparou logo depois nos primeiros governos constitucionais no ataque e destruição da Reforma Agrária (ministro António Barreto, Capoula Santos, etc.) e no ataque às nacionalizações e direitos dos trabalhadores (ministro Gonelha, etc.). Seguiu sempre de mão dada com a direita. Logo num dos primeiros governos constitucionais estabeleceu uma aliança com o CDS. O percurso do PS está indissoluvelmente ligado à trajectória de recuperação capitalista, às privatizações e destruição do sector produtivo, ao desemprego e destruição dos direitos dos trabalhadores, à transformação de Portugal em semi-colónia da Alemanha em que nos encontramos.

O PS é, objectivamente, um partido de direita. Independentemente de parte importante do eleitorado do PS ser constituída por trabalhadores com interesses e inclinações de esquerda.

No que se refere aos trabalhadores que votam PS, trata-se fundamentalmente de trabalhadores que não concebem, pelo menos por agora, outra política que não seja a do quase defunto «Estado Social», isto é, o capitalismo com retoques cosméticos. São, no fundo, os mesmos trabalhadores que logo nas primeiras eleições pós 25 de Abril (as eleições constituintes de 25/4/75) votaram PS e PSD (por essa altura, ainda o então PPD falava de socialismo). A diáspora da emigração que conduziu mais de um milhão de trabalhadores para a França, Alemanha, etc., não podia deixar de ter consequências ao nível da consciência. Muitos desses trabalhadores (e seus descendentes) ainda julgam que a crise actual será passageira e que, com a ajuda do PS (desde que com os dirigentes certos, claro!), ainda nos podemos tornar uma outra França, digamos.

Continuar a dizer que o PS é de esquerda e que um governo com o PS seria um «governo de esquerda» só contribui (e tem contribuído) para atrasar o desenvolvimento político das massas populares, só contribui (e tem contribuído) para manter ilusões nos trabalhadores, só contribui (e tem contribuído) para atrasar uma verdadeira solução de esquerda para Portugal.

Perguntam alguns: Mas, sem o PS, qual é a solução?
A pergunta contém implicitamente, pelo menos, duas ideias, ambas erradas e perigosas:

1 – A ideia de que se o PS aceitasse formar governo com o BE, só por isso o PS se iria «converter» em esquerda. A ideia é sumamente irreal e até ridícula. Como se por osmose as ideias de esquerda se transferissem para os dirigentes do PS. No fundo é adoptar uma posição idealista, não-marxista, de que o que faz mover os dirigentes do PS são ideias, não são ligações concretas a interesses económicos.
(Mencionamos apenas BE porque o PCP desde finais dos anos setenta, princípios dos oitenta, abandonou a ideia, que correu muito na época, da «maioria de esquerda» PS-PCP; além disso o PCP afirmou no final da Convenção do BE estar disponível para um governo de esquerda com todos os que queiram romper com a política de "desgraça", mas considerou que "dificilmente" o PS o poderia integrar devido à sua prática governativa. Se fosse só isso!...)
Por vezes esta ideia surge com uma nuance. A de que, pelo menos, o PS devia fazer «profissão de fé» de que iria para a esquerda.
Por exemplo, João Semedo disse na Convenção: «Enquanto António José Seguro tiver um pé no Memorando e outro na oposição é impossível um governo de esquerda». Tudo bem, embora o problema não seja só A.J. Seguro mas sim os interesses de classe que defende toda a cúpula dirigente do PS. Toda. Sem excepção. Mas depois, o mesmo João Semedo, disse: «Empurrem por favor o PS para a esquerda e não peçam que façamos à esquerda as rábulas e contorcionismo que o CDS faz à direita». Santa ingenuidade! Como se a questão fosse apenas a de um empurrão! Edite Estrela respondeu-lhe apropriadamente: «Não há grande sinceridade nesta pretensa abertura, porque o que o Bloco de Esquerda diz é que o PS tem de mudar. Não compete ao Bloco dizer o que é que o PS tem que fazer». O BE é a formiga e o PS é o elefante e a formiga quer que o elefante siga as suas pisadas. Podemos estar certos de que num hipotético governo PS-BE o elefante ensinaria a formiga uma ou outra rábula e também como se faz um ou outro contorcionismo.

2 – A ideia dos «atalhos» políticos. Concretamente, o raciocínio é nestes moldes: BE e PCP são partidos de pouco peso eleitoral; procurar ganhar mais peso eleitoral é difícil, demorado e problemático, até porque BE e PCP, depois do colapso do «socialismo real», não têm grandes perspectivas a propor aos trabalhadores e à população em geral; trabalhando no sentido de trazer alguns dirigentes do PS para o «nosso lado» pode mais facilmente chegar-se onde se pretende.
Em suma, a ideia é a de que estabelecendo «pontes» com o PS (inclusive no âmbito de um acordo governamental que pode, até (!), ser do PS sozinho com independentes de esquerda) arranjou-se um «atalho» que leva rapidamente à Terra Prometida sem ter de singrar pela via do trabalho longo e árduo.
Mas a realidade é esta e não se pode fugir à realidade:

A esquerda tem pela frente um trabalho complexo, longo e árduo. Um trabalho que exige muito estudo e rigor. Não há «atalhos» que substituam o estudo e o rigor.

Os marxistas, nomeadamente, deverão, a nosso ver, estudar com profundidade a realidade contemporânea (economia, história e ciência) seguindo as pisadas dos grandes revolucionários na apreensão e compreensão materialista e dialéctica da realidade. O «atalho» seria aqui substituir o estudo pela aplicação acéfala de pré-modelos e dogmas. Não há «atalhos» que substituam o «aprender, aprender sempre» de Lenine.
Infelizmente, a esquerda portuguesa, incluindo os que se reclamam como marxistas ou como marxistas-leninistas, têm, a nosso ver, seguido por trilhos rotineiros, substituído a análise rigorosa pela aplicação de chavões e mantendo uma posição low-profile. A impreparação e debilidade ideológica revelam-se a cada passo. Os militantes oscilam entre o seguidismo e falta de sentido crítico de muitos que militam no PCP ao ecletismo e pot-pourri de ideias libertárias e modernaças de muitos que militam no BE. A falta de rigor é de norma (com raríssimas excepções). Uns e outros não vão mais longe do que colocar-se numa posição defensiva: isto é, defendem medidas de «esquerda» no plano e lógica que a própria direita lhes coloca (como as 4 medidas da CGTP: ver n/ artigo «Por uma solução de esquerda»). O desconhecimento de economia marxista é abissal. As grandes questões não são formuladas. Por exemplo: onde está o debate sobre uma possível saída do euro? Só muito poucos economistas se têm preocupado com isto. E o debate sobre a saída da U.E.? Tudo se passa como se a esquerda estivesse conformada com o actual capitalismo de especulação financeira da U.E. e Zona Euro. Tudo se passa como se o ruir do «socialismo real» tivesse derrubado para sempre a ideia do socialismo e a esquerda se conformasse aos ditames da U.E. desde que com «ajustamentos». Até mesmo o pacto de agressão não é liminarmente rejeitado; pretende-se apenas limar algumas arestas, com mais uma taxa ali, uma progressividade de imposto acolá, etc., tudo para «gerar uma poupança para o Estado de mais de 6 mil milhões de euros». Poupança, claro, para o Estado dos capitalistas e dos banqueiros. E não é por se mencionar a intenção de tal poupança ir para os apoios sociais que a intenção se concretiza.
Será de admirar que com este desempenho e postura da esquerda o sentimento popular generalizado é de que a esquerda não tem alternativas? Claro que não! É que, de facto, pese embora dizê-lo, a esquerda portuguesa está sem alternativas!!! Anos e anos de perda de tempo com preocupações de arranjinhos com o PS, com uso de chavões, com uso do marxismo-leninismo como se fosse uma Bíblia com resposta para tudo, com o «só fazem falta os que cá estão» ecoando o «orgulhosamente sós» de Salazar, com caças às bruxas, com o total abandono pela preparação ideológica, com festinhas e incensos da Coreia do Norte e do PC da China (um PC onde desde há uns anos fazem parte capitalistas; isto é um partido capitalisto-comunista), levou ao triste estado em que se encontra a esquerda portuguesa: uma esquerda desarmada ideologicamente, sem ideias e cobarde.

A esquerda portuguesa não sabe o que quer.
A direita portuguesa sabe o que quer.

É urgente pôr fim a esta miséria.
Pôr fim a esta miséria passa por denunciar incansavelmente o PS, como um partido que só contribuirá para o caminho para o desastre. Pôr fim a esta miséria passa pelo reforço ideológico, passa por estudo e rigor. Só com base em estudo e rigor será possível construir propostas credíveis capazes de mobilizar as massas populares e proporcionar o crescimento dos partidos de esquerda. Só assim será possível construir um «governo de esquerda»; não no futuro imediato, mas no futuro possível que as próprias massas populares e os trabalhadores determinarem. Futuro possível tanto mais próximo quanto menos tempo se perder a olhar para o PS como parte desse futuro. Futuro possível que encontrará os partidos de esquerda não impreparados, mas sim armados ideologicamente e com conhecimentos sólidos que permitam construir o futuro.

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P.S. Catarina Martins disse na convenção do BE: «Passou o tempo dos jogos do bloco central, de meias palavras, de vénias à sra. Merkel, de calculismo sobre o prolongamento da vida deste governo para que tudo fique pior dentro de um ano ou dois. Uma esquerda que representa trabalhadores, jovens e reformados, não vira a cara. Demitir o Governo e abrir o caminho para um governo de esquerda contra a troika é a voz desta convenção, é por ela que vamos dar tudo. Saímos daqui com um Bloco mais arrojado, mais determinado, mais atento, mais unitário, coerente como sempre. Um Bloco para a esquerda toda, para a luta toda».
Achamos este discurso simplesmente lamentável. Transpira voluntarismo («Passou o tempo dos jogos do bloco central»: Passou? Porquê? É o BE que vai impedir?), truísmos («Uma esquerda … não vira a cara»), boas intenções («[…] um Bloco mais arrojado [etc.]») e alguma megalomania («Um Bloco para a esquerda toda»). Só foguetório. Propostas concretas, coerentes e consistentes: zero.
Foguetório é precisamente algo que não serve a esquerda. Temos tido em Portugal lançadores de foguetes que cheguem. Desde o Manuel Alegre ao Otelo. Repetem sempre a velha história: «Entradas de leão e saídas de sendeiro.»