terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte III (Egipto)

III – Da Independência até à Primavera Árabe
Egipto
Tal como noutros países árabes a burguesia do Egipto nunca teve um papel progressista: sempre serviu lealmente o capital britânico, nomeadamente através do seu partido Wafd. Quanto aos líderes burgueses e pequeno-burgueses da Irmandade Muçulmana (IM) arrebanhavam as camadas mais atrasadas da população, com base em justificações religiosas obscurantistas.
Nos dias de 22 a 26 de Julho de 1952 um grupo de oficiais (os «oficiais livres»), liderado pelo coronel Gamal Nasser derrubou o regime do rei Faruk, um joguete dos britânicos; para além do sentimento de humilhação que sentiam pelo mau desempenho na breve guerra contra Israel em 1948, propunham-se acabar com a pobreza, a doença e o analfabetismo no Egipto. Cedo se verificou a natureza pequeno-burguesa dos oficiais e do seu Conselho do Comando Revolucionário (CCR): manifestações dos trabalhadores em Kafr Dawar, em 12 de Agosto, exigindo reformas imediatas, foram brutalmente esmagadas e com duas sentenças de morte. Nessa época existia um Partido Comunista Egípcio (PCE). Contudo, a posição da URSS em reconhecer na ONU a divisão da Palestina (!) e, mais tarde, ter sido o primeiro país a reconhecer Israel (!), espalhou a confusão e a desmoralização nas fileiras dos comunistas egípcios ([1]). O PCE limitou-se a aconselhar «calma» quando os dois dirigentes dos trabalhadores foram executados! Isto valeu-lhe uma cisão e a alienação de trabalhadores e dirigentes sindicais.
No seguimento de diferendos entre os «oficiais livres», reflectindo as lutas de classes da sociedade egípcia, acabou por emergir em 1954 a figura de Nasser que passou a governar como autocrata. Todos os partidos, incluindo o partido comunista foram proibidos. Todos os sindicatos foram proibidos. 20.000 pessoas foram presas em poucas semanas. Nasser foi eleito presidente do CCR e o seu partido «Convergência Revolucionária» passou a partido único.
Nasser, entretanto, introduziu nos anos seguintes, até à sua morte em 1970, várias medidas progressistas: a reforma agrária que melhorou as condições de vida de milhões de camponeses (na altura 0,5% dos egípcios eram proprietários de 1/3 da terra arável!); a produção de electricidade e a construção da imponente barragem de Assuão; o desenvolvimento de várias indústrias, com destaque para a indústria têxtil; a reforma do sistema educativo; a introdução de direitos dos trabalhadores como o dia de 7 horas de trabalho, garantias contra despedimentos e seguro contra acidentes de trabalho; legislação progressiva sobre os direitos das mulheres. A sociedade egípcia deu assim um enorme passo em frente. Introduziu também medidas socializantes («socialismo árabe») com a nacionalização de bancos e companhias de seguros e das indústrias mais importantes. Sem qualquer participação dos trabalhadores, claro.
Nasser granjeou também uma grande estima do povo egípcio quandodecidiu nacionalizar a Companhia do Canal de Suez em 1956. Esta decisão levou à intervenção de forças armadas da Inglaterra, França e Israel, que ocuparam o Sinai e a faixa de Gaza ([2]). A crise só foi resolvida, na sequência de posições das superpotências, da ONU, e de embargos de petróleo dos países árabes, em 1957. O incidente do Canal de Suez marca o fim do imperialismo franco-inglês e a ascensão do imperialismo americano (que se mostrou hostil às pretensões franco-inglesas); a partir daí o imperialismo europeu passou a ser um simples joguete obediente do imperialismo americano. (Os EUA sempre viram o petróleo do Médio Oriente como um recurso estratégico, apesar de 40% do petróleo que consomem ser das suas próprias reservas.) Nasser surgiu como figura anti-imperialista prestigiada, ainda mais quando, juntamente com a Jugoslávia e a Índia, fundou o Movimento dos Não-Alinhados em 1961. Por esta altura Nasser estabeleceu boas relações com a URSS que forneceu armamento e participou na construção da barragem de Assuão.
Em 1958 o Egipto juntou-se à Síria na chamada República Árabe Unida (RAU); uma tentativa pan-árabe que veremos mais em pormenor quando tratarmos da Síria. A Síria abandonou a RAU em 1961, embora o Egipto continuasse a chamar-se RAU até 1971.
Em 1967 o Egipto sofreu uma derrota humilhante com Israel na «guerra dos seis dias». Nasser, porém, permaneceu como presidente. O último período da sua vida é marcado por medidas reaccionárias: privatizações de empresas estatais entregues a burocratas do poder; diminuição de salários; repressão de manifestações e de greves; apoio ao reaccionarismo islâmico ([3]). Entretanto, a burguesia egípcia tinha-se reforçado; e à custa, precisamente, das medidas «socializantes» a que se tinha oposto. Estava agora capaz de ter um papel na história.
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Esse papel surgiu com Anwar Sadat, antigo membro dos «oficiais livres». Sadat introduziu «reformas de mercado», encorajando privatizações e investimentos estrangeiros. Aumentou, assim, o peso dos capitalistas e da pequena burguesia urbana na sociedade egípcia. A fim de combater a oposição popular e, particularmente, a oposição marxista, apoiou-se nos partidos islâmicos. Permitiu o regresso do exílio dos líderes da IM e a sua actividade política, fazendo-se proclamar como o «Presidente Crente».
Entretanto, em consequência das reformas económicas, aumentou a pobreza nas massas populares e a opressão sobre os trabalhadores. Desencadearam-se vários protestos e tumultos populares em 1977 devido aos aumentos dos bens de primeira necessidade (os chamados «tumultos do pão»). Devido às más condições de vida mais de três milhões de trabalhadores emigraram entre 1975 e 1985.
Em 1973 Sadat desencadeou uma guerra com Israel que lhe valeu uma meia vitória, tendo o Egipto reocupado o Sinai. Logo a seguir, porém, voltou-se abertamente para uma aliança com o imperialismo americano quebrando os laços de cooperação com a URSS. Tomou, então, a iniciativa de reconhecer o Estado de Israel e firmar os Acordos de Camp David; iniciativas que lhe alienaram amizades de outros estados árabes e levaram à expulsão do Egipto da Liga Árabe.
No final dos anos setenta Sadat já não tinha necessidade do apoio dos islamitas (IM e Jihad Islâmica), que aliás o censuravam pela aproximação a Israel e pelo apoio prestado aos direitos das mulheres (opôs-se ao uso do véu islâmico). Atacou-os e dissolveu as organizações estudantis da Irmandade. Como represália, em 6 de Outubro de 1981 Sadat foi assassinado por um tenente jihadista.
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Hosni Mubarak, vice-presidente desde 1975, tornou-se presidente num referendo no final de Outubro de 1981; assim permaneceu até à revolução de 2011, confirmado por referendos para períodos de 6 anos. Só no último, em 2005, teve opositor: um defensor dos direitos humanos que acabou por ir parar à prisão donde só saiu em 2009. Mubarak ganhou com 87% dos votos. No Parlamento o seu «Partido Democrático Nacional» (PND) dominava totalmente. Apenas 20% dos lugares eram de independentes, de facto da IM.
Mubarak governou como autocrata ([4]), sustentado e acolitado pelas altas patentes do exército e pelos serviços de segurança. O Egipto viveu desde a morte de Sadat num regime de «estado de emergência» com suspensão de direitos constitucionais. Isto queria dizer: censura, proibição de manifestações, proibição de partidos políticos. Os prisioneiros políticos ascenderam a 30.000. Qualquer pessoa podia ser presa por qualquer razão e qualquer período de tempo. O pretexto era o combate aos fundamentalistas islâmicos.
Em 1986 houve um motim das forças de segurança exigindo melhores pagamentos. Foi reprimido pelo exército. Em 1992 o exército (14.000 soldados) ocupou um bairro do Cairo para reprimir seguidores de fundamentalistas islâmicos: 5000 pessoas foram presas. Os fundamentalistas continuaram com atentados terroristas visando, inclusive, turistas estrangeiros.
Em 1989, apesar da sua patente aliança com o imperialismo e da acomodação com o sionismo Mubarak conseguiu ver o Egipto de novo aceite na Liga Árabe. Diz bem do estado a que tinha chegado a Liga.
Mubarak foi um dos grandes aliados dos EUA no Médio Oriente: pagaram-lhe uma ajuda financeira de 2 biliões de dólares até à assinatura dos acordos de Camp David. O Egipto fez também parte da coligação da primeira guerra do Golfo (expulsão do Iraque do Kuwait); mas não da segunda. Foi devidamente recompensado pelos EUA: além de pagamentos da ordem de 500 mil dólares por soldado, foi perdoada a dívida do Egipto. Segundo um texto do The Economist ([5]): «o programa funcionou maravilhosamente: um exemplo académico, diz o FMI.[…] Depois da guerra a sua recompensa [de Mubarak] foi que a América, os estados árabes do Golfo Pérsico e a Europa perdoaram o Egipto de uma dívida de cerca de 14 biliões de dólares». O PIB do Egipto em 2005 foi de 78,8 biliões de dólares.
Como sempre, a falta de direitos humanos não incomodava os EUA. Conforme afirmou cinicamente Condolleeza Rice na visita ao Egipto em Junho de 2005 «durante 60 anos, o meu país, os Estados Unidos, procuraram estabilidade à custa de democracia nesta região, aqui no Médio Oriente, e não obtivemos nem uma nem outra».

Amigos do coração e grandes paladinos dos direitos humanos

Por essa altura Mubarak permitiu que partidos «registados» pudessem concorrer às eleições para a Assembleia. O registo em si já era complicado; para além disso as reuniões dos partidos eram constantemente incomodadas pela polícia. O PND ganhou esmagadoramente, como seria de esperar: 417 lugares; seguiu-se o partido Wafd, conservador e apoiante da antiga monarquia, no qual se concentraram os votos da IM: 6 lugares; dois partidos nasseristas ganharam conjuntamente 6 lugares e o partido liberal 1 lugar. As eleições foram classificadas de fraudulentas por observadores independentes. Mubarak proibiu o acompanhamento de monitores internacionais. Uma organização de juízes conseguiu que Mubarak consentisse a monitorização das diversas fases da eleição, com exclusão de cerca de 2000 juízes considerados «críticos».
As eleições de 2005 representaram um esforço de Mubarak, aconselhado pelo imperialismo, de promover a «estabilidade» na região: perpetuar o status quo que permitia a hegemonia imperialista e o controlo económico do FMI. Como dizia o Economist (9/9/2005) citando uma fonte oficial egípcia ([5]): «a eleição foi apenas um exercício, que o governo nunca teria aceite sem incitamento estrangeiro».
Um aspecto importante do regime era o papel dos militares ([6]). Logo que os «oficiais livres» tomaram o poder imediatamente passaram a controlar em grande parte o aparelho de estado. No tempo de Nasser a percentagem de oficiais em ministérios oscilou entre 32% e 65%. Entre 1952 e 1967 só uma vez um civil teve papel de topo no governo. Isto isolou os «oficiais livres» do resto da população. Por outro lado, ainda durante Nasser, o chefe das forças armadas, Abdel Hakim Amer, converteu-se, ele e outros militares, numa casta isolada onde só eram promovidos os que mostrassem lealdade a Amer. Nasser procurou remover Amer do poder mas não conseguiu. Sadat, apesar de não ter o carisma de Nasser, depois de anos de manobrismo cauteloso, devido à necessidade de remover os oficiais opostos aos acordos de Camp David, colocou no topo das forças armadas homens que lhe eram leais, tais como o vice-presidente Hosni Mubarak e o ministro da defesa Abu Gazala. O esquema de promoções com base da lealdade manteve-se. Com Mubarak, um novo fenómeno, dantes larvar, desabrocha em toda a sua pujança na atracção de lealistas: a concessão de lugares na administração de empresas. Surge assim o chamado Complexo Militar-Industrial-Comercial (CMIC). O CMIC é uma «vasta empresa comercial que tentaculiza cada canto da sociedade egípcia» ([6]) produzindo alimentos (azeite, leite, pão, água mineral), cimento, gasolina, veículos e infra-estruturas. No topo do CMIC estava (e ainda está) o Comando Supremo das Forças Armadas (CSFA) com Mubarak e familiares à cabeça. As empresas militares não pagavam impostos e não sofriam as dificuldades burocráticas que pesavam sobre o sector privado. Muitos terrenos públicos foram transformados em condomínios fechados e instâncias de férias dos militares. As altas patentes usavam os recrutas como mão-de-obra. A cadeia lealista estendia-se até às mais baixas patentes; os suspeitos de crítica, oposicionismo ou de pertencerem a partidos islâmicos, não eram promovidos; eram enviados para as regiões mais inóspitas, nomeadamente no extremo sul do país.
Nos últimos anos do regime de Mubarak era esta a situação económica e social:
·         Segundo a Freedom House, uma NGO dos EUA, Mubarak tinha aumentado dramaticamente em 2005 o número de regulamentos burocráticos e requisitos de registos e outros instrumentos que alimentavam a corrupção (exigência de pagamentos de «luvas»). Tinha também aumentado a diferença de rendimento entre os muito ricos (directores de empresas estatais, bancos, seguros, petróleo, canal do Suez, meios de comunicação, etc.) e os trabalhadores.
·         Em 2011 o Índice de Percepção de Corrupção do Egipto era de 3,1 (índice de 0 a 10, sendo 0 o máximo de corrupção) em 112.º lugar em 174 países.
·         No Egipto a prisão arbitrária sem julgamento e a aplicação de torturas eram coisas comuns. Segundo a Organização Egípcia dos Direitos Humanos, 204 presos morreram devido a torturas entre 1985 e 2004.
·         O Egipto é ainda um país largamente agrícola, embora com forte componente industrial. A contribuição para o PIB dos vários sectores era em 2010 a seguinte: 13,5% para a agricultura, 37,9% para a indústria e 48,6% para os serviços. Uma distribuição comparável à da China (respectivamente, 10,1%, 46,8% e 43,1%) mas muito diferente de Portugal (respectivamente, 2,6%, 23% e 74,5%).
·         No Egipto não existiam sindicatos geridos pelos próprios trabalhadores. Existia, sim, uma Federação Geral de Sindicatos (FGS) ao serviço do regime de Mubarak (os dirigentes eram nomeados pelo regime). Embora legalmente fossem permitidas greves, na prática elas não eram permitidas porque necessitavam da anuência da FGS e essa anuência era sempre impossível de obter. Isto não obstou a que imensas greves espontâneas fossem levadas a cabo, como referimos a seguir.
·         O Egipto seguiu desde os anos oitenta uma política neoliberal imposta pelo FMI. Diminuiu a dívida pública e externa à custa do congelamento dos salários e da diminuição drástica do poder de compra dos trabalhadores. Desde 2003 a inflação manteve-se sempre alta, atingindo níveis bem acima dos 10% nas vésperas da revolução. Para dar uma ideia do baixo poder de compra dos trabalhadores basta referir que a média salarial no sector privado, em 2007, era de 214 LE (LE=Libra Egípcia), e no sector público era de 308 LE. (Nessa altura, 1 LE = 0,125 €. Logo, estamos a falar em salários mensais de 26,75 € e de 38,5 €) Ora, 500 g de pão custavam 6 LE, 12 ovos 11 LE e 1 kg de frango 31 LE ([7]). Nem os quadros técnicos escapavam à penúria: um professor do ensino secundário ganhava, em 2008, cerca de 540 LE; um médico recém-licenciado, 300 LE. Isto quando vários estudos económicos mostravam que 1200 LE seria o mínimo para uma vida decente. Em Setembro de 2011 houve uma greve dos médicos tendo o ministro da saúde prometido para Outubro um aumento para 1000 LE.
·         Em 1984 o salário mínimo era de 35 LE. Passou para 280 LE nas véspera da revolução. Só depois da revolução foi fixado o salário mínimo de 700 LE ([7]).

Taxa de inflação do Egipto. Fonte: Trading Economics.

·         A sociedade egípcia é uma sociedade de fraca classe média; só existem os muito ricos e os muito pobres. Num estudo bastante detalhado de 2007 ([8]) o Banco Mundial analisou a pobreza no Egipto. Uma das principais conclusões é que 45% dos trabalhadores que recebiam salários eram pobres (rendimento de menos de 0,56 euros por dia). No geral, verificava-se, na véspera da revolução, que 19,6% (13,6 milhões) dos egípcios era pobre não conseguindo satisfazer necessidades básicas, 3,8% dos quais (2,6 milhões) extremamente pobres não conseguindo satisfazer necessidades alimentares básicas, mesmo quando gastassem todo o rendimento em comida.
·         O Egipto tem, entretanto, o maior número de bilionários do continente africano, 7 em 40, segundo a revista Forbes.
·         A taxa de desemprego tinha-se mantido da ordem dos 10% entre 2007 e 2011, tendo chegado a 12% em 2006.
·         A taxa de analfabetismo era de 17% nos homens e 40,6% nas mulheres.
A grande oposição ao regime de Mubarak veio dos trabalhadores, que lutaram durante vários anos por melhores condições de vida. Foram particularmente grandiosas as ondas de greves dos anos de 2005 a 2007. A firmeza e tenacidade dos trabalhadores egípcios foram verdadeiramente admiráveis. Vamos apenas cingir-nos aqui à luta dos trabalhadores da fábrica de têxteis Misr, situada em Gazl el-Mahala, que em Setembro de 2007 empregava 27.000 trabalhadores, trabalhando por turnos ([9]). No domingo de 23 de Setembro 10.000 trabalhadores pararam o trabalho em resposta a provocações dos gestores que procuravam voltar atrás em anteriores acordos, alcançados em prévia greve. Exigiram a demissão o director corrupto e seus homens de mão, aumentos de salários e de benefícios e melhores condições de trabalho. A polícia cercou a fábrica e a direcção declarou que fechava a fábrica para férias. Procuraram também enganar os trabalhadores com pequenas promessas. Entre 10 a 15 mil trabalhadores dormiram nessa noite na fábrica.
O regime enviou um representante da Confederação de Sindicatos oficial. As trabalhadoras quase o matavam, sendo salvo pelos dirigentes da greve. Entretanto, outras greves de apoio desencadeiam-se noutras fábricas. Em várias cidades é recolhido dinheiro em apoio aos grevistas. O regime, uma vez falhadas as tentativas de engano, envereda pela repressão e prende cinco dirigentes da greve por sabotagem, incitamento a insurreição e perdas de biliões de libras egípcias. Esta prisão desencadeou ondas de manifestações solidariedade de trabalhadores e estudantes. Os cinco dirigentes acabaram por ser soltos. Os trabalhadores, contudo, não desmobilizaram; mantiveram-se firmes e o regime foi obrigado a ceder e a assinar um acordo que satisfazia todas as reivindicações. De realçar o apoio da população aos grevistas.
Em 2007 e 2008 continuaram as greves e manifestações (150) em vários sectores: «algumas foram violentas e exigiram o envio em força das forças de segurança» ([10]). Por essa época nasceu o movimento opositor Kefaya ("Basta!").
Nos últimos anos a IM tinha também aumentado o número de apoiantes. Representante da burguesia, usa a religião para arrebanhar as camadas politicamente mais atrasadas. Durante os anos oitenta os homens de negócios da IM controlavam 40% das corporações do sector privado ([11]).
Politicamente a IM é de um evidente reaccionarismo: defende um Estado teocrático com a legislação baseada na sharia para os muçulmanos e leis específicas para os crentes de outras religiões; defende o uso do véu para as mulheres; pretende proibir o uso de bebidas alcoólicas para os egípcios; pretende, nas artes e na música, controlar o que é ou não aceitável em termos religiosos; tem uma posição ambígua em relação ao imperialismo, criticando-o em palavras mas aceitando a sua ajuda. A IM criticou sempre as greves dos trabalhadores, actuando algumas vezes como polícias do regime ([7]). Na Economia a IM defende a política de mercado livre, com um forte sector privado e atracção de capitais estrangeiros. Figuras do topo da IM têm interesses em grandes negócios: mobílias, vestuário, construção de autocarros, produtos farmacêuticos, etc. ([12]). Para dar um exemplo, Essam al-Haddad, actual conselheiro do Presidente Morsi e membro do Gabinete de Orientação da IM, com um doutoramento em biologia na Inglaterra, tem (só!) os seguintes cargos: membro do Grupo Árabe de Desenvolvimento, da União das Exposições Árabes, do Forum Internacional de Negócios, da Câmara de Comércio e Indústria Germano-Árabe, da Associação de Negócios Anglo-Egípcia, e da Câmara de Comércio Canadiana. É fundador daInter-Build Egypt” a maior expositora egípcia do sector de construção. Muitas outras figuras de proa do IM são de idêntico calibre, controlando uma larga parte da economia Egípcia ([13]). São estes os «Irmãos» que merecem a confiança dos pobres dos pobres…

[1] Frederik Ohsten, Frank Harper (2011) Nasser and the Arab Revolution, publicado pela International Marxist Tendency. Este artigo aborda todo o período anterior à revolução de 2011. A wikipedia na versão inglesa contém também muita informação de interesse
[2] Um acordo secreto entre a Inglaterra, a França e Israel estabelecia que Israel invadiria o Egipto dando assim um pretexto à intervenção da Inglaterra e da França. Assim foi feito. Nasser recusou um ultimato para cessar as hostilidades; hostilidades que não tinham iniciado! Os EUA, URSS e ONU condenaram a acções militar anglo-francesa, com a URSS a ameaçar intervir a favor de Nasser. Os EUA não tinham interesse em ver uma acção imperialista anglo-francesa subsidiada com fundos seus (plano Marshall) e ocupando o espaço que os próprios EUA desejavam ocupar.
[3] Depois da derrota da «guerra dos seis dias» Nasser apelou a uma maior participação da religião na vida da sociedade. Incentivou programas de religião na TV, o uso de barbas e de véus islâmicos. O clima de incentivo à religião foi de tal ordem que até consagrados escritores materialistas se converteram de repente ao islamismo e incensaram os seus benefícios!
[4] Mubarak não era prezado pelos seus dotes de inteligência. Era apelidado pelo povo por «la vache qui rit» (marca de queijo conhecida no Egipto) pela sua estupidez algo bovina. Tinha, contudo, a dose adequada de esperteza saloia que lhe permitiu manobrar e granjear uma entourage dedicada.
 [5] citado na Wikipedia, versão inglesa.
 [6] Ahmed Hashim (2011) The Egyptian Military – Part I. Middle East Policy, vol. 18, 3:63-78. This study, the first of two parts, is a short version of a book-length manuscript –Guardians of the State: The Political Roles of the Egyptian Military from Revolution to Revolution– that is due for publication at the end of 2011.
[7] Hamid Alizadeh, Frederik Ohsten (2010) Egypt: The Gathering storm. International Marxist Tendency. Estes números podem ser confirmados noutras fontes.
[8] Arab Republic of Egypt: Poverty Assessment Update. World Bank, report no. 39885 EGT, Setembro de 2007.
[9] Frederik Ohsten, Francesco Merli (2007) Egypt: The victory of Mahalla workers exposes the weakness of Mubarak's regime. International Marxist Tendency.
[10] Ver: wikipedia; Tarek Osman (2010) Egypt on the Brink, Yale University Press.
[11] Alan Woods (2011), Egyptian workers take the lead, International Marxist Tendency.
[12] Factbox - Policies of Freedom and Justice Party of Egypt’s Muslim Brotherhood, by Reuters Staff December 5, 2011.
[13] Ver: Eric Trager, Katie Kiraly, Cooper Klose, and Eliot Calhoun, Who's Who in Egypt's Muslim Brotherhood. Washington Institute monographs and Special Studies. Setembro 2012; Ahram (jornal egípcio) online, Brotherhood business heads enter spotlight, Março 2012; http://www.pearltrees.com/#/N-u=1_146917&N-p=51659105&N-s=1_5501956&N-f=1_5501956&N-fa=1556413.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte III (Preâmbulo, Tunísia)

III – Da Independência até à Primavera Árabe
Vimos na Parte II como os países árabes alcançaram a independência a seguir à 2.ª guerra mundial, ainda num estado de desenvolvimento incipiente do capitalismo, com uma burguesia débil e a sobrevivência de relações feudais e tribais. Dos quatro países que temos vindo a analisar a Tunísia era o mais desenvolvido, com algumas indústrias locais; a Líbia e a Síria os menos desenvolvidos, com largas sobrevivências de feudalismo e tribalismo.
Nos países árabes, como também vimos, o capitalismo não foi algo que nascesse como resultado do desenvolvimento económico mercantilista nas comunidades urbanas, como na Europa. No mundo árabe não existiu nada de parecido com a revolução inglesa de 1640 e muito menos com a grande Revolução Francesa de 1789. O capitalismo foi, em grande medida, imposto do exterior, pelas potências europeias colonizadoras. Também, como consequência da evolução imposta do exterior num contexto feudal, muito pouco existia no mundo árabe que se pudesse comparar com a filosofia racionalista, própria ao desenvolvimento burguês europeu do séc. XVIII: a filosofia das luzes. A oposição à opressão colonial e depois às desigualdades impostas pelo desenvolvimento capitalista autóctone, mais depressa buscava fundamentação em considerações religiosas do Corão, do que numa análise racionalista e materialista.
Na Europa, o campesinato, desde que a burguesia se tornou a força principal de oposição ao feudalismo, aliou-se (no essencial) à burguesia na luta pelo desmantelamento feudal e pela conquista de melhores condições de vida. No mundo árabe os burgueses autóctones eram muitas vezes vistos como simples apêndices dos burgueses estrangeiros; como em todos os países coloniais ou semi-coloniais a burguesia árabe desenvolveu-se como classe debaixo do patrocínio do domínio imperialista, com privilégios que correspondiam às migalhas do saque das riquezas do próprio país pelos imperialistas ([1]). O campesinato, na sua luta, tendia a não distinguir entre capitalistas autóctones e estrangeiros, procurando no clero muçulmano os condutores e ideólogos das suas lutas. Daí, o grande peso do confessionalismo islamita nos partidos políticos árabes, mesmo na actualidade. Daí, também, que apareçam como grandes inimigos do imperialismo ocidental importantes movimentos e forças políticas de componente popular (apoiados pelos mais pobres dos pobres) mas de ideologia clerical extremamente reaccionária. É um fenómeno praticamente desconhecido na História europeia moderna.
A seguir à independência, as camadas mais esclarecidas dos países árabes sentiam a necessidade urgente de desenvolver as respectivas economias, criando uma base industrial e infra-estrutural; só com a emancipação económica e política seria possível acabar com a miséria extrema, disponibilizar serviços de educação e saúde e singrar na via do desenvolvimento. Não esqueçamos que se tratava de países predominantemente agrários. Dada a debilidade da burguesia, e a sua subserviência aos capitalistas estrangeiros, ela era incapaz de liderar um processo desenvolvimentista no quadro de uma democracia burguesa; por outro lado, os trabalhadores eram em pequeno número, praticamente sem sindicatos e sem partidos políticos que representassem os seus interesses podendo liderar uma revolução de cariz socialista. Apenas uma (terceira) via se abria: a da revolução de emancipação nacional liderada por um movimento pluri-classista, nomeadamente de oficiais do exército de sentimentos patrióticos. Na Tunísia foi o movimento civil pluri-classista (Frente Nacional, Neo-Destour) de Burguiba que entrou em cena. No Egipto, Líbia e Síria foi o movimento pluri-classista dos «oficiais livres». Em ambos os casos as respectivas evoluções históricas vieram a revelar semelhanças importantes.
Os líderes militares enveredaram, inicialmente, por uma via de «socialismo árabe»; um socialismo pequeno burguês que não reconhece a luta de classes nem os direitos dos trabalhadores e não vai além de advogar a nacionalização de grandes empresas e uma mais justa repartição da terra. O movimento de Burguiba também passou por uma idêntica fase «socialista árabe». Os movimentos liderantes estabeleceram um equilíbrio entre os interesses das duas classes antagónicas, burguesia e trabalhadores, num estilo autocrático denominado de «bonapartista». Contribuem, é certo, numa primeira fase, para o desenvolvimento económico dos respectivos países, mas a sua visão pequeno-burguesa e as condições materiais existentes fazem-nos constantemente oscilar entre um desenvolvimento «socializante», com empresas do Estado, mas sem controlo democrático dos trabalhadores, e um desenvolvimento capitalista. Com o passar do tempo, o autocrata e sua clique desenvolvem um sistema de clientelismo corrupto e nepotista que leva ao declínio do desenvolvimento económico inicial e ao progressivo evoluir em direcção a uma solução capitalista.
O papel histórico dos líderes militares (e de Burguiba no caso da Tunísia) acabou por ser o de favorecerem o crescimento de uma burguesia autóctone (incluindo os «militares patrióticos»), que veio a apoderar-se das empresas estatais e a dominar o Estado. Entretanto, a par das consequências capitalistas neoliberais (baixos salários, desemprego, repressão dos direitos dos trabalhadores, liquidação de serviços sociais) a burguesia manteve o aparelho «bonapartista» venal e brutal, ali já formado, ao seu dispor. Agora já não como instrumento de equilíbrio entre as duas classes, mas abertamente como instrumento de exploração dos trabalhadores e das camadas mais pobres, pronto a adoptar, se necessário, as medidas mais terroristas de opressão.

Tunísia
Quando a Tunísia se tornou oficialmente independente em 1956, dispunha já de uma Constituição. A Assembleia Constituinte tinha sido eleita, ainda em pleno domínio francês, por uma Frente Nacional que englobava várias forças políticas e sindicais (UGTT) excepto o Partido Comunista Tunisino. Na prática, a Assembleia era dominada pelo Neo-Destour de Habib Burguiba, representante dos interesses da incipiente burguesia tunisina, nomeadamente a burguesia urbana. A incorporação da UGTT na Frente Nacional, imposta por Burguiba e aceite pelos dirigentes sindicalistas membros do Neo-Destour, condenou a UGTT a servir de amortecedor entre as reivindicações dos trabalhadores e o poder ([1]).
Em 25 de Julho de 1957 a monarquia era abolida e a Tunísia tornava-se uma República de partido único – o Neo-Destour – com Burguiba como Presidente de amplos poderes. Foi-o durante 30 anos, na forma de uma espécie de déspota venerado e esclarecido. Na conquista de estabilidade política, nomeadamente contra ameaças de movimentos clericais, Burguiba tornou-se hábil em estabelecer e manobrar ligações clientelistas, baseadas em esquemas de promoções e despromoções «oportunas». O clientelismo enraizou-se na sociedade tunisina e veio a tornar-se fonte da corrupção crescente do regime.
Burguiba era adepto do racionalismo francês. Procurou seguir uma política de estabilidade tendente a aumentar as forças produtivas do país, logo do crescimento da burguesia e do trabalho assalariado contra as sobrevivências feudais, rapidamente extintas. No espírito do iluminismo francês seguiu uma política não militarista, secularista, e de concessão de amplos direitos às mulheres. Apoiou a causa palestiniana e o movimento dos não-alinhados desde a sua constituição em 1961 ([2]).
Burguiba era contra a ideia pan-árabe. Baniu nos anos cinquenta os antigos dirigentes da facção pan-árabe do Neo-Destour que se refugiaram no Cairo (na altura, Nasser era a personificação egípcia do pan-arabismo). Deixou assim de existir qualquer oposição a Burguiba e em 1963 o Neo-Destour era oficialmente proclamado partido único (já o era de facto).
A partir de 1964 a Tunísia viveu uma experiência socializante que durou cerca de seis anos. O Neo-Destour foi rebaptizado como Partido Socialista Desturiano (PSD, membro da internacional socialista) e o novo ministro do planeamento, Ahmed Ben Salah, liderou uma política de apoio governamental à instalação de cooperativas agrícolas e à constituição de empresas industriais estatais. Entretanto, o próprio crescimento da economia capitalista tinha aumentado o poder político e económico da burguesia, enquanto os assalariados continuavam sem direcção política autónoma e com dirigentes sindicais obedientes às autoridades. A experiência socializante não contribuiu para o crescimento da economia ([3]). Em 1970 era descoberto petróleo. Os apetites da burguesia aumentaram. Ahmed Ben Salah foi despedido e as empresas estatizadas (incluindo cooperativas agrícolas) entregues a privados.
Com a liquidação da experiência socializante, as tensões sociais aumentaram. A produção agrícola baixava e o desemprego urbano aumentava empurrando os trabalhadores para a emigração. A aceleração das políticas económicas liberalizantes prosseguiu com o acordo concluído com a CEE que concedeu vantagens fiscais a empresas estrangeiras arruinando pequenas empresas nacionais o que levou ao acréscimo do desemprego. Em 1978 rebentou uma greve geral; foi brutalmente reprimida pelo governo, tendo morrido dezenas de trabalhadores (450 mortos) e detidos vários dirigentes sindicais. O estado de graça de Burguiba (declarado presidente vitalício em 1975) na mente de muitos trabalhadores tinha acabado. Na repressão dos trabalhadores distinguiu-se um general: Zine Ben Ali.
Burguiba tentou manobrar, permitindo que partidos «oficializados» pudessem concorrer às eleições de 1981. Um plano de austeridade imposto pelo FMI com aumentos dos preços do pão e cereais, levou a protestos generalizados em 1983. O governo reprimiu brutalmente os protestos proibindo partidos, particularmente os islamitas. Em 1986 a oposição boicotou as eleições. Um Burguiba doente nomeou o general Ben Ali primeiro-ministro. Em Novembro de 1987, num golpe palaciano que invocava o estado de saúde de Burguiba, Ben Ali assumiu o poder. Em 1988 mudava o nome do partido único para Convergência Democrática Constitucional (CDC). O regime então autoriza ou tolera alguns partidos «oficiais» desde que «bem comportados», nomeadamente os de «esquerda» como o Ettajdid, partido social-democrata que emergiu do Partido Comunista Tunisino depois da sua auto-extinção em 1993.
Com Ben Ali a corrupção generaliza-se. Usando métodos mafiosos a família e clientelas de Ben Ali procedem a expropriações em seu próprio benefício e atrelam a Tunísia aos interesses do imperialismo. A clique de Ben-Ali (clã Trabelsi) tornou-se rapidamente a controladora da economia tunisina. Ben Ali oficializa a censura e esmaga qualquer oposição, com especial vigor os islamitas moderados do Enahdha dos quais 8.000 activistas vão para as prisões. O esmagamento dos islamitas era bem visto pelas potências imperialistas; o descontentamento popular subjacente pouco lhes importava. Entretanto, Ben Ali era eleito e reeleito como Presidente por elevadas percentagens (acima dos 90%).
Em 2007 vários indicadores económicos da Tunísia eram encorajadores: dívida pública em 47% do PIB e dívida externa em 25% do PIB. As exportações (têxteis, partes mecânicas, fosfatos, produtos agrícolas, etc., com França como principal importador, 31%) cobriam 84% das importações (maquinaria, hidrocarbonetos, químicos, petróleo, etc., com França como principal exportador, 24%). A Tunísia deixava de ser um país agrário, com a seguinte contribuição sectorial para o PIB: Serviços: 62,8%; Indústrias: 25,7%; Agricultura: 11,6%. Num país de 10 milhões de habitantes, mais de um terço constituía a força de trabalho com um papel importante da classe operária.
Outros indicadores eram menos optimistas. O PIB per capita representava em 2007 cerca de 1/3 do valor de Portugal e tinha vindo a estabilizar ou mesmo a diminuir desde então. A pobreza era enorme: em 2008, segundo dados do Banco Mundial, 8,1% da população vivia com menos de 2 dólares por dia. A Tunísia recebia alguma ajuda económica (correspondente em 2003 a 376,5 milhões de dólares, menos de 1% do PIB). A desigualdade social era elevada: em 2007 o rendimento dos 10% do fundo correspondia a 2,3% do PIB e dos 10% do topo a 31,5% do PIB; em Portugal os valores eram respectivamente de 2,7% e 28,7%, pelo que, comparado com Portugal (país de desigualdade elevada), os 10% do fundo da Tunísia recebiam ligeiramente menos ([4]) mas os 10% do topo recebiam substancialmente mais (em percentagem do PIB).
Se bem que o PIB a custos correntes tivesse crescido de 1986 a 2008 (com taxas anuais elevadas entre 4 e 6% ao ano) devido a vultuosos investimentos estrangeiros que exploravam a mão-de-obra barata tunisina, de 2008 a 2010 o crescimento do PIB cai para níveis de 3% ([5]). A taxa de desemprego oficial é elevada (13%) e na véspera da revolução 300.000 jovens licenciados tinham emigrado.
Em Janeiro de 2008 rebentou uma greve dos mineiros das minas de fosfatos da região de Gafsa. Começou na pequena cidade de Rdaief e espalhou-se a todas as minas da região, durante seis meses. A repressão do regime foi brutal (150 presos com penas de 10 anos de cadeia; [6]). A UGTT recusou condenar as medidas repressivas do regime! Diz bem do grau de submissão e degradação do movimento sindical tunisino. Entretanto, os porta-vozes imperiais gabavam o regime Tunisino. Sarkozy dizia em Abril do mesmo ano «O vosso país está empenhado na promoção de direitos humanos universais e nas liberdades fundamentais». Que espantosos «direitos humanos»! Staruss-Kahn, «socialista» francês e director do FMI bem conhecido actualmente pelos escândalos sexuais que se sucedem em torno da sua figura, dizia na mesma altura em Tunes que o regime de Ben Ali «era o melhor modelo para muitos países emergentes».
Ben-Ali apoiou a causa palestiniana, aconselhando soluções moderadas do agrado da UE e dos EUA. Num clima de paz aparente, eis que estalam em Dezembro de 2010 os protestos massivos que conduzem à primeira revolução da Primavera Árabe. A estupefacção dos imperialistas e dos seus meios de comunicação era patente. De facto, tinham durante anos e anos prestado orelhas moucas aos protestos e profundo descontentamento popular que agora desembocava numa insurreição ([7]).

[1] Nasser Itihad (2011) La Constitution du mouvement ouvrier en Tunisie. La Vérite, n.º 70.
[2] Wikipedia. O artigo History of Modern Tunísia da wikipedia na versão inglesa contém informação essencialmente correcta.
[3] Segundo dados do Banco Mundial, entre 1965 e 1970 a taxa de crescimento do PIB só foi maior que em anos anteriores em 1968 (10,4%). Nos outros anos foi inferior e inclusive em 1967 foi praticamente nula (0,14%).
[4] Fontes: Historical Statistics, Centro de Desenvolvimento da OCDE (dados actualizados do trabalho de Angus Maddison, The World Economy: Historical Statistics , 2004; wikipédia.
[5] http://www.tradingeconomics.com/tunisia/gdp-growth-annual.
[6] Eric Gobe (2008). The Gafsa Mining Basin between Riots and a Social Movement. Institut de Recherches et d’Études sur le Monde Arabe et Musulman (IREMAM, Centre CNRS), Aix-en-Provence, France.
[7] The Tunisian Revolution did not come out of nowhere. Entrevista de Sadri Khiari publicada pela revista Politique Africaine em Abril de 2011 (traduzida para inglês).

domingo, 20 de janeiro de 2013

Este Portugal não vale a pena!

Grande parte da intelectualidade portuguesa, pelo menos daquela que aparece nos meios de comunicação e cujas palavras são bebidas por jornalistas e entrevistadores, tem-se revelado, nas últimas décadas, uma simples caixa de ressonância das concepções de direita veiculadas e marteladas ad nauseam por PS, PSD e CDS.
Trata-se de uma intelectualidade tíbia, falha de ideias no que se refere ao rumo a dar ao país (embora, nalguns casos, com boas ideias e bom trabalho nas respectivas áreas profissionais), contaminada por um optimismo bacoco no europeísmo (leia-se, na possibilidade, interesse e vontade do capitalismo europeu «ajudar» Portugal). É uma intelectualidade profundamente atada a valores burgueses, acomodada, conformada e obediente. Não há nada que os serventuários políticos do Capital apresentem como «moderno» que esta intelectualidade não corra de forma acéfala a aceitar, em nome de estar na onda, bem sintonizada com a «Europa» e com um, vago, «Portugal moderno»: desde o acordo de Bolonha ao acordo ortográfico; desde a conversão das Universidades em Fundações à aceitação ingénua de que se temos a troika é porque andámos todos a gastar de mais.
Nos últimos tempos esta intelectualidade (re)descobriu uma nova tecla: a tecla do nacionalismo. A tecla tocada vezes sem conta pelo salazarismo sobre as grandes virtudes da «raça» portuguesa (hospitaleiros, desbravando os quatro cantos do mundo, autores dos descobrimentos que deram novos mundos ao mundo, com belas aldeias, etc.). Só maravilhas. E só dos portugueses! Pois se até temos palavras (e falava-se e ainda se fala muito na palavra «saudade») que mais ninguém tem (o que é totalmente falso)! Quanto aos «brandos costumes» já se deixou de falar face à evidência da actual criminalidade brutal e galopante.
Com tantas e belas emoções proporcionadas pelo nacionalismo para que interessa a razão? Não! É bem melhor manter os portugueses embalados no conforto de pensarem que somos os melhores do mundo do que dar-lhes azo a usarem a razão. É que a razão é sempre subversiva.
*    *    *
A tecla do nacionalismo é agora tocada sob o mote de «Portugal vale a pena!». Um mote bem abstracto e ambíguo, bem ao gosto do idealismo burguês. Porque, repare-se: «Portugal»? Que Portugal? Uma entidade intemporal? Que tem de comum o Portugal dos descobrimentos com o Portugal de hoje? Nada. E: «vale a pena»? Para quê e para quem?
Parece que quem se lembrou primeiro do «Portugal vale a pena!» foi alguém que dá pelo nome de Nicolau Santos e se auto-intitula «economista poeta» ([1]). Num texto com esse título (que elaborou para a visita de Cavaco Silva à Índia, o que estabelece um vínculo relacional entre Cavaco e Nicolau) enumera uma série de invenções e recordes portugueses: a quarta mais baixa taxa de mortalidade infantil do mundo e a terceira mais baixa da Europa, o terceiro mais importante registo europeu de dadores de medula óssea, o país que inventou uma bilha de gás muito leve, etc. Algumas afirmações desse texto que nos demos ao trabalho de controlar até estão erradas: por exemplo, no que diz respeito a mortalidade infantil Portugal estava no período de 2005 a 2010 em 23.º lugar a nível mundial e, em termos europeus, em 17.º lugar ([2]). É também simplesmente ridículo afirmar, como no referido texto, que Portugal está avançadíssimo na investigação da produção de energia através das ondas do mar. Uma simples consulta à Wikipédia mostra que a investigação nesse domínio está todas nas mãos de americanos, ingleses, e mais alguns países. Portugal limitou-se a adquirir conversores de energia aos ingleses participando numa experiência dispendiosa e efémera (Julho a Novembro de 2008). Isto é, servimos de cobaia.
Mas, claro, a debilidade das tiradas nacionalistas deste calibre é que é sempre possível, para qualquer país, apresentar pontos positivos; nem que sejam do género de «uma bilha de gás muito leve». Ora, o que verdadeiramente interessa saber, é se dos pontos positivos avançados constam aqueles com real importância sócioeconómica, em termos de desenvolvimento humano. Nesse aspecto o Portugal actual tem muitos pontos negros que Nicolau Santos pudicamente escondeu (bem como outros do Portugal passado, [3]). Por exemplo, no que se refere a analfabetismo, Portugal estava em 2010 na cauda da Europa ([4]): só Malta tinha maior percentagem de analfabetos. No que diz respeito à percepção de corrupção também se encontrava num mau lugar em 2012: 33.º lugar em 173 países e 18.º pior em 30 países europeus ([5]).
A terminar o seu texto Nicolau Santos não se esquece de mencionar os Descobrimentos. Não vá dar-se o caso (sabe-se lá!) de os outros pontos positivos parecerem insuficientes. A saga dos Descobrimentos é sempre um ponto forte, de efeitos garantidos, que justificam o valor da «raça». Porque, vendo bem, o que tem de comum o Portugal de quinhentos com o Portugal de hoje? Para além da continuidade geográfica (tirando o pormenor de Olivença), as formações sócioeconómicas foram evoluindo e os problemas com que depararam as várias gerações foram necessariamente muito diferentes. A geração de quinhentos foi, em grande parte (de facto, só em grande mas insuficiente parte), capaz de responder bem aos desafios que os condicionalismos da época impunham; as gerações seguintes não foram: perdemos a revolução industrial, passámos por quase meio século de atraso e obscurantismo fascista, perdemos o 25 de Abril, e aqui estamos, hoje, como semicolónia do imperialismo alemão-francês, em pleno desastre económico e social. Portanto, para além da continuidade geográfica, a ideia de um Portugal abstracto e intemporal «que vale a pena» só podia, nas mentes desta intelectualidade acocorada, ser validada por apelo a uma ideia salazarista: a da continuidade da «raça». Aliás, pelas mesmas razões, o regime Salazarista hiperbolizava o tema dos descobrimentos ([6]). Éramos um país falhado mas onde habitava a raça que tinha feito a gesta dos descobrimentos, que funcionava como elixir de auto-estima.
Mais recentemente (2012) surgiu um livro com o mesmo título «Portugal vale a pena!» e o pomposo subtítulo «Os Melhores escrevem sobre o Melhor» ([7]). O livro é uma compilação de textos curtos escritos por muitos dos tais intelectuais (e, repetimos, não colocamos em dúvida a contribuição positiva de vários deles em muitos ramos do conhecimento) glosando o título. A impressão que recolhemos do folhear do livro é a de que é simplesmente uma lamentável recolha de banalidades nacionalistas e chauvinistas. Grande parte dos textos divaga sobre a contribuição portuguesa dos descobrimentos. Já comentámos acima este aspecto. Resta-nos acrescentar que são textos que caberiam bem num manual escolar salazarista. Os outros textos abordam questões mais mundanas: sol, praia, paisagens, hospitalidade, gastronomia, etc. Mas, quais os países que não se podem gabar de várias e muitas virtudes mundanas e predicados geográficos?
Na realidade, mesmo que fossem pobres em tais virtudes e predicados todos os países valem a pena! ([8]) A não ser para os nazis sempre prontos a apagar alguns do mapa.
Ah! E também não falta no livro a menção às nossas aldeias tão típicas. Que maravilha! Habitadas quase inteiramente por velhos analfabetos, a viverem com pensões de miséria (quando as têm, é claro), a votarem todos certinhos no CDS e no PSD conforme sempre lhes disse o senhor prior. Então, não é mesmo uma beleza? Que encanto! Que tal ressuscitar o concurso salazarista da mais típica aldeia de Portugal?
*    *    *
Regressemos ao concreto e ponhamos a razão a funcionar. De facto, para quê e para quem vale a pena este concreto Portugal? Bem, os turistas estrangeiros gostam muito de passar férias no Algarve e noutros pontos do país. Mas não vivem em Portugal (e digo «em» no sentido de inserção profissional e económica). Também existem alemães e holandeses que compraram quintas no Alentejo que devem achar que vale a pena. Mas para quem este Portugal vale principalmente a pena é para os grandes capitalistas, gestores, etc., que constituem o topo dos 1% do topo. Podem viver luxuosamente e impunemente à custa do saque das riquezas de Portugal e dos rendimentos do povo trabalhador ([9]).
Quanto a nós, e no que respeita ao povo trabalhador, a nossa razão diz-nos o seguinte:
Com 2,5 milhões de cidadãos a viver abaixo do limiar de pobreza e mais de 1 milhão em extrema pobreza, no quadro de uma enorme desigualdade social,
Este Portugal não vale a pena!
Com cerca de 16% de taxa global de desemprego, e taxa de desemprego ainda maior para os jovens (estimada em mais de 20%),
Este Portugal não vale a pena!
Com mais de 30.000 licenciados a emigrar para o estrangeiro em 2012,
Este Portugal não vale a pena!
Com salários e pensões de miséria, que ainda por cima são atacados constantemente,
Este Portugal não vale a pena!
Com um sistema de ensino destruído,
Este Portugal não vale a pena!
Com um sistema de saúde gerido segundo a óptica privada, onde se corta no acesso aos medicamentos e já o poder cinicamente aconselha os cidadãos a não ficarem doentes para não sobrecarregar o SNS,
Este Portugal não vale a pena!
Com uma enorme e galopante corrupção, onde o poder público e os interesses privados se misturam, onde a promoção não é por mérito mas por clientelismo, onde o nepotismo é corrente,
Este Portugal não vale a pena!
Com um sistema judicial que não funciona, que está feito para ajudar os ricos a escaparem impunemente aos seus crimes de fraude, peculato e corrupção,
Este Portugal não vale a pena!
Com um sistema produtivo destruído e o actual saque de bens comandado por governo-troika a favor dos banqueiros e seus comparsas, agravando cada vez mais a nossa perda de soberania,
Este Portugal não vale a pena!
Com políticos subservientes dos interesses do Capital, não só nacional como internacional, do baixo calibre a que nos têm habituado PS, PSD e CDS,
Este Portugal não vale a pena!
Com uma «democracia» de fachada, construída para que de quatro em quatro anos fiquem sempre os mesmos,
Este Portugal não vale a pena!
Com meios de comunicação em que se auferem fortunas a debitar programas de imbecilização de massas, e onde surgem cada vez mais acções de censura da liberdade de expressão,
Este Portugal não vale a pena!
Não, senhores intelectuais. A vossa mascarada do «Portugal vale a pena!» fede. É tempo de escolherdes o lado da barricada onde vos quereis situar: se do lado da razão ao serviço do povo trabalhador, ou se do lado da ocultação da razão ao serviço dos saqueadores e opressores.
Tereis de decidir se quereis desempenhar o papel de adormecedores do povo ¾ embalando-o com historinhas sobre praiazinhas, solzinho, comidinhas e aldeias muito típicas, coitadinhas ¾ ou se quereis participar no acordar do povo.
*    *    *
Perante as diatribes de nacionalismo rançoso desta acocorada intelectualidade portuguesa quão bem mais nobres não nos surgem as palavras do poeta Fernando Pessoa, quando diz ([10]):
Cumpriu-se o Mar, e o império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Sim, falta cumprir-se um Portugal soberano, com vida digna para o povo trabalhador, sem corrupção, analfabetismo e gritantes desigualdades sociais. Um Portugal que só poderá ser cumprido pela vontade dos próprios trabalhadores. Acordados. Um Portugal concreto que valha a pena.

[1] Nicolau Santos. Portugal vale a pena! Expresso Economia, 12 de Fevereiro de 2007.
[2] Dados publicados na wikipédia, com base em dados compilados pela CIA (World Fact Book) que por sua vez os vai buscar a várias instituições nomeadamente ao Departamento de Assuntos Económicos e Sociais da ONU.
[3] Também não faltam, como é óbvio, imensos pontos negros no Portugal antigo; basta pensar na Inquisição e no tráfico de escravos (só abolido definitivamente em 1869 quando já praticamente todas as nações europeias o tinham abolido). Mesmo na questão da abolição da pena de morte, que Nicolau Santos afirma (ecoando crença vigente) que foi Portugal o primeiro a abolir, a questão não é tão simples: a última execução foi em 1846 (posterior às datas de últimas execuções do Liechtenstein e San Marino); a pena capital foi abolida em 1911 e reinstituída em 1916 para crimes de traição em tempo de guerra, só tendo sido definitivamente abolida em 1976, já depois de muitos outros países o terem feito.
[4] Dados publicados na wikipédia, com base em dados compilados pela CIA (World Fact Book) que por sua vez se baseou nos dados da UNESCO.
[5] Segundo os dados da Corruption Perception Index publicados pela Transparency International.
[6] Não pomos, como é óbvio, em causa a importância e o interesse do estudo dos descobrimentos portugueses. Ironicamente, o estudo dos descobrimentos portugueses foi melhor conduzido por historiadores estrangeiros do que pelos próprios historiadores portugueses.
[7] Publicado pela Oficina do Livro, Lisboa, 2012.
[8] É precisamente porque todos os países valem a pena que a simples menção do título «Portugal vale a pena!» evoca de imediato um sentido bacoco à dita obra, de intelectuais que procuram tapar assim a má-consciência pelo desgraçado estado a que chegou Portugal e em que eles não estão isentos de culpa.
[9] Já apresentámos bastante documentação sobre os 1% do topo em anterior artigo deste blog.
[10] Fernando Pessoa. Mensagem: O Infante. (Várias edições.)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte II (Síria e Líbia)

II – Da Dominação Colonial à Independência
Síria
A Síria, tal como o Líbano e o Iraque, era no século XIX província da Turquia (o Império Otomano) ([1]). A partir de 1860 a dívida pública da Turquia sofreu a mesma evolução que já vimos no caso da Tunísia e do Egipto: a construção de infra-estruturas pela Inglaterra e França levou à «concessão» de empréstimos e, o pagamento destes acompanhados de corrupção, à contratação de mais empréstimos (onze, entre 1860 e 1874!), pelo Banco Otomano, de facto um banco anglo-francês. Em 1875 a Turquia declarou-se em bancarrota. Em 1876 um movimento popular levou à instauração de uma constituição com um parlamento de duas câmaras ao estilo burguês voltado para um capitalismo nacional. A burguesia turca impôs, contudo, uma visão chauvinista de uma «única nação otomana».
Em Agosto de 1876 a reacção feudal turca entronizou um sultão arqui-reaccionário, Abdul Hamid, representante dos grandes senhores feudais. Um regime despótico foi imposto que sufocou quaisquer tentativas autonomistas. Um estado de terror e denúncia permanente surgiu. As populações das províncias árabes como a Síria foram duplamente oprimidas: pela Turquia que impunha pesados impostos; pelo imperialismo estrangeiro, francês no caso da Síria, que se apropriou do comércio, passando a Síria a servir de mero apêndice de produção de matérias-primas, nomeadamente de seda em bruto que seguia para as fábricas de seda de Lyon, bem como de tabaco. O Crédit Lyonnais abriu várias agências na Síria. A Síria era nesta época e seria ainda por muito tempo um país habitado por tribos de várias etnias e filiações religiosas; o ensino estava entregue ao clero mais reaccionário; as relações tribais eram patriarcais; a manufactura era do tipo familiar ([2]).
No fim do século XIX a Alemanha penetrou em força na Turquia. O Kaiser Guilherme II, representante dos junkers ([3]) prussianos, tornou-se o grande apoiante de Abdul Hamid e do regime feudal turco. Visitou por duas vezes a Turquia em grande pompa, tendo declarado ser o grande amigo do Sultão e do Islamismo.
Em 1886 estalaram insurreições populares na Síria (principalmente em Alepo) e no Líbano. Em 1904 eram fundadas associações nacionalistas árabes em Paris. Em 1908 estalava a revolução dos Jovens Turcos encabeçada por oficiais como Mustafá Kemal (conhecido por Ataturk, «pai dos turcos»). Kemal e seus companheiros eram revolucionários burgueses que temiam as massas populares, defendiam inicialmente um entendimento com o sultão, e defendiam uma visão chauvinista pan-otomana. Embora tendo prometido (a contragosto) defender os interesses nacionais árabes durante o período da «fraternidade árabe-otomana» (1908-1909), a breve trecho, já depois da deposição do sultão em 1909, optaram por trair os compromissos anteriores e seguir uma linha chauvinista e reaccionária, defendendo nomeadamente a preservação da propriedade latifundiária feudal, o abandono de reformas de impostos a favor das massas camponesas e outras medidas, como a lei anti-greve contra os trabalhadores.
Na véspera da 1.ª Grande Guerra, as autoridades turcas tinham esmagado movimentos autonomistas, quer das correntes que defendiam a insurreição anti-turca (El-Ahd, que previa, um entendimento com a Entente; o seu principal dirigente estav ligado ao serviço secreto inglês) quer das correntes reformistas (Qahtanya), que ainda pensavam ser possível um entendimento com a Turquia. Vários dirigentes sírios refugiaram-se no Cairo durante a guerra.
A guerra representou uma penúria tremenda das massas populares da Síria e de outras províncias, vítimas de requisições e roubos constantes. No final da guerra os nacionalistas sírios aceitaram o «Protocolo de Damasco» que previa o envolvimento da Inglaterra na formação de um Estado árabe no âmbito de uma aliança dos feudais e da burguesia árabes («pan-arabismo»). A França, temerosa pela perda das suas posições na Síria, conseguiu, contudo, mercê de vários estratagemas como o trabalho político entre os refugiados árabes e o envio de missionários e quadros técnicos para a Síria, impor uma aliança Franco-Síria. Em 1918, depois do colapso do exército turco-alemão, o acordo Sykes-Picot reconhecia os «direitos administrativos» franceses no Líbano e na Síria. Em 1919, o Congresso Nacional Sírio (CNS) realizou eleições que foram ganhas (80%) pelos elementos mais conservadores. Em Março de 1920 rebentou uma insurreição popular quando Faisal (o dirigente do Estado pan-árabe) assinou um acordo com a França e o dirigente sionista sobre a imigração de judeus para a Palestina. Logo a seguir, o Tratado de Sèvres impôs o mandato francês sobre a Síria e as tropas francesas entravam em Damasco a 24 de Julho de 1920, depois de terem vencido uma batalha contra o exército sírio. Faisal era expelido de Damasco; terminava a ilusão de um Estado pan-árabe. A Síria convertia-se em colónia francesa governada por um Alto Comissário. Em 1932 a Síria estava organizada em quatro distritos, segundo linhas confessionais: Alepo (sunitas), Latakia (alauítas, um ramo dos xiitas), Damasco (população mista com cristãos maronitas) e Jebel Druse (drusos, ramo ismaílita dos xiitas com influêcnias gnósticas). A língua e cultura francesa foram impostas e os movimentos nacionalistas reprimidos.
Em 1925 os drusos encabeçaram uma revolta que alastrou a Damasco, Alepo e outras cidades. Em 1927 Damasco foi submetida a bombardeamento aéreo e terrestre, o que levantou uma onda de indignação mundial, procurando então a França chegar a um compromisso com os nacionalistas que veio a redundar num acordo em 1936. Em 1941, em plena 2.ª Guerra Mundial, tropas inglesas e da França livre ocuparam a Síria expulsando os colaboradores de Vichy. Como país fornecedor de bens essenciais a economia Síria progrediu durante a 2.ª Guerra, tendo aumentado o comércio e a acumulação de capitais dos mercadores e pequenos industriais ([2]).Em 1945, a Síria tornou-se independente e separada do Líbano, mas só em 17 de Abril de 1946 as últimas tropas francesas abandonaram o solo sírio ([4]).
Líbia
Antes de conquistada pelos italianos a Líbia era designada por província da Tripolitânia do Império Otomano, governada por um paxá nomeado pelo sultão. A penetração turca na Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan no século XIX tinha deparado com feroz resistência das tribos locais (beduínos, berberes e tuaregues). A luta foi encabeçada pela irmandade religiosa islâmica dos senussitas, primeiro pelo seu fundador, Mohamed es-Senussi, e depois pelo irmão el-Mahdi. As bases logísticas senussitas eram mosteiros cujas terras em redor eram cultivadas por nómadas, forçados a trabalhar, e por escravos.
A Itália, que não tinha sido contemplada na partilha colonial do Tratado de Berlim de 1878 e que tinha sido enxotada pelos franceses quando mostrou ambições na Tunísia, aproveitou rivalidades entre as potências europeias, firmando uma série de acordos secretos tendentes ao reconhecimento dos seus «direitos» sobre a Líbia. Por fim, em 28 de Setembro de 1911, decidiu a conquista da Líbia apresentando como pretexto que queria dar à Tripolitânia o «benefício do progresso» e que a Turquia se opunha a este direito legítimo! A Turquia opôs-se mas estava isolada. A armada italiana bloqueou Tripoli e um corpo expedicionário de 34.000 homens desembarcou e tomou Tripoli, Derna, Bengazi e Homs em 15 dias (5 a 20 de Outubro de 1911). A Itália depois da conquista determinou que o nome do território seria «Líbia» (com base na tradição romana).
Os turcos abandonaram a luta (embora só reconhecessem a suserania da Itália depois da 2.ª Guerra Mundial) mas o mesmo não fizeram as tribos locais que desencadearam feroz resistência. Em 23 de Outubro tinham dizimado grande parte do corpo expedicionário italiano apesar da clara superioridade em armamento do exército italiano ([5]). Um ano depois os italianos continuavam acantonados nas cidades costeiras após terem massacrado 14.800 árabes. Só em Abril de 1913 os italianos conseguiram penetrar nas montanhas da Cirenaica onde enfrentaram a guerrilha dos senussitas que tinham proclamado a guerra santa.
Em 1916, o início da 1.ª Guerra Mundial forçou de novo os italianos a refugiarem-se no litoral. Em Abril de 1917 a Inglaterra e a Itália firmaram um acordo com um dos chefes senussitas, Mohamed Idris, no sentido de os ajudar contra alemães e turcos a troco do reconhecimento de Idris como príncipe e do fornecimento de provisões e armamento. Em Novembro de 1918 um exército de 80.000 italianos desembarcou em Tripoli. A persistência e heroísmo da luta dos líbios dirigidos pelo herói nacional Omal al-Moktar (o «leão do deserto») foi admirável. O regime fascista italiano, através do governador fascista Graziani, construiu 16 campos de concentração e neles encarcerou cerca de 100.000 líbios; 55% morreram de fome, doença e maus-tratos. Em Setembro de 1931 Omar al-Moktar foi preso e enforcado; tinha 80 anos. Só em 1933, à custa de campos de concentração, massacres e represálias cruéis, a Itália consumou o seu domínio colonial na Líbia ([5]).
Entretanto, o regime fascista tinha lançado um programa ambicioso de colonização, que representou o aniquilamento da agricultura e comércio nativos. Estes factores, conjugados com a repressão dos anos trinta, fez com que a população líbia praticamente não tivesse aumentado entre 1911 e 1950: 1,5 milhões. Destes, cerca de 188 mil (um oitavo) eram italianos.
Os líbios que escaparam aos campos de concentração foram obrigados a trabalhar em condições de semi-escravatura na construção da estrada ao longo da costa e nas herdades dos colonos italianos: 85.000 até 1936. Nas indústrias, os italianos limitaram-se a desenvolver pequenas indústrias pré-existentes como a do processamento do atum e do azeite. Destruíram a criação de gado; o número de carneiros, por exemplo, passou de 810 mil em 1926 para 98 mil em 1933. Além disso, a preparação que deram aos líbios nas tarefas administrativas e na escolaridade foram bastante limitadas ([6]). Durante a colonização fascista a economia cresceu, nomeadamente na agricultura, mas em benefício exclusivo dos colonos e do Estado fascista.
Os líbios foram aceites como membros do partido fascista. Mussolini visitou Tripoli e declarou-se «Protector do Islão». Foram obrigados a servir no exército italiano durante a 2.ª Guerra Mundial, ao serviço do «Protector do Islão», embora a máxima graduação que atingiam era a de sargento ([6]).
No final da guerra os ingleses controlavam a Tripolitânia e a Cirenaica e os franceses o Fezzan. Em 1945, o dirigente senussita Idris al-Mahdi as-Senussi, emir da Cirenaica, que tinha resistido à ocupação italiana durante as duas guerras mundiais, regressou do exílio no Cairo. Em 24 de Dezembro de 1951 a Líbia tornava-se uma monarquia independente sob Idris al-Mahdi as-Senussi, o rei Idris I.

[1] A Síria esteve durante muitos anos ligada ao Líbano por laços étnicos e religiosos. No Líbano, Síria e Iraque registaram-se durante a primeira metade do século XIX movimentos autonomistas (e até independentistas no caso do Líbano), embora não tenham vingado.
[2] Philip K Hitti (1959) Syria: A Short History. MacMillan Company.
[3] Designação dada à nobreza latifundiária da Prússia e Alemanha do Leste.
[4] Karin Leukenfeld (2011). Syria: A Historical Perspective on the Current Crisis. Global Research.
[5] V. Lutsky (1969) Modern History of the Arab Countries. Progress Pub., Moscovo.
[6] A.A. Boahen (1990) General History of Africa, vol. 7 (Africa under colonial domiantion 1880-1935). The Colonial Economy: North Africa (pp. 186-199). Unesco, James Currey Pub.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A Economia convencional: uma pseudociência (VIId)

O «multiplicador de dinheiro»

Um aspecto a que se agarram os neoclássicos para explicar o papel irrelevante do débito nas crises é o do chamado «multiplicador de dinheiro». A ideia é a seguinte: o banco central emite moedas e notas e dá uma certa parte delas a um indivíduo; este, vai a um banco e deposita nele um certo montante de dinheiro, seja 100€; o banco guarda uma fracção deste dinheiro como reserva e empresta o resto a outro indivíduo; este outro deposita o dinheiro emprestado num banco e o processo repete-se.
Suponhamos que o banco guarda sempre uma reserva de 10% (a percentagem exacta depende de regulação do banco central) e que leva uma semana entre o banco obter um depósito e fazer um novo empréstimo. A tabela 1 mostra a evolução da situação. Num certo dia inicial (semana 0) o banco central «cria» 100€ disponibilizados por um certo banco; este guarda um depósito 100´0,1 = 10€. Na semana seguinte o banco empresta os 90€ disponíveis. O emprestador deposita estes 90€ num qualquer banco que guarda 90´0,1 = 9€ como reserva ficando com 81€ disponíveis. Na semana seguinte os 81€ emprestados levam a um depósito num qualquer banco que guarda 81´0,1 = 8,1€ como reserva ficando disponíveis para empréstimo 72,9€. O processo repete-se, e ao fim de 10 semanas já existe, com base nos 100€ iniciais, um total de 686,19 € de depósitos, de 586,19 de empréstimos e de 68,52€ de numerário guardado em bancos.
Ao fim de um número muito grande de semanas (na prática, bastam 74 semanas, quando o numerário guardado é inferior a um cêntimo), alcança-se a situação da última linha da tabela 1 ([1]): os 100€ criados pelo banco central originaram 1000€ de depósitos, ficando os bancos com 100€ de reservas. O factor multiplicador do dinheiro é o inverso da taxa de reserva, 1/0,1 = 10, que corresponde também à razão entre o total de depósitos face ao total de reservas: 1000/100.

Tabela 1
Semana
Depósitos
Empréstimos
Numerário guardado em bancos
Soma dos empréstimos
Soma de numerário
0
100
0
10
0
10
1
90
90
9
90
19
2
81
81
8,1
171
27
3
72,9
72,9
7,3
243,9
34,4
4
65,6
65,6
6,6
309,5
41,0
5
59,0
59,0
5,9
368,6
46,9
6
53,1
53,1
5,3
421,7
52,2
7
47,8
47,8
4,8
469,5
57,0
8
43,0
43,0
4,3
512,6
61,3
9
38,7
38,7
3,9
551,3
65,1
10
34,9
34,9
3,5
586,2
68,6
Total
686,19
586,19
68,62
586,19
68,62
Total Final
1000
900
100
900
100



Durante muitos anos este «multiplicador do dinheiro» foi aceite pelos economistas neoclássicos, nomeadamente por influência das teorias monetaristas de Friedman. Em 1970 o Conselho do Banco de Reserva Federal tentou conter a inflação através do controlo da taxa de crescimento da oferta de numerário. Verificou, então, que esta taxa de crescimento excedia frequentemente a taxa máxima definida pela Reserva Federal. Por exemplo, em 1977, a Reserva Federal tinha colocado como objectivo um crescimento na taxa de oferta de numerário entre 4,5% e 7,5%, mas a taxa real veio a ser de perto de 8%. Iniciou-se, então, um estudo empírico por vários economistas que veio demonstrar que o «multiplicador de dinheiro» era um mito. Em vez do nexo de causalidade que o modelo (e a tabela 1)  assumia ¾ depósitos criam reservas que criam empréstimos que criam depósitos ¾ o que se passava era o inverso. Em vez da ideia de que a causalidade fluía das reservas para os empréstimos, verificava-se que, pelo contrário, ela fluía dos empréstimos para as reservas: bancos com reservas para suportar empréstimos, disponibilizam novos empréstimos os quais criam simultaneamente novos depósitos. Isto gera a necessidade de novas reservas que a Reserva Federal satisfaz, caso contrário existiriam crises de crédito praticamente semanais. Isto não tem a ver com uma falta de ética dos banqueiros. No fundo, é o que acontece com as empresas que contraem empréstimos com base no que irão receber de vendas no futuro. Os bancos simplesmente acomodam-se à necessidade que as empresas têm de crédito, praticando empréstimos adicionais.
Esta questão prende-se directamente com a forma como a economia neoclássica encara o papel do dinheiro: para os neoclássicos a oferta de dinheiro é criada exogenamente, sob controlo dos governos. Contudo, como mostra o falhanço do modelo do «multiplicador do dinheiro» (e outras evidências descritas por Steve Keen no seu livro), a oferta de dinheiro é de facto criado endogenamente: é o próprio sistema de mercado capitalista que leva à criação de dinheiro. Na realidade, a criação endógena da oferta de dinheiro foi sempre defendida pelos economistas marxistas. Karl Marx dizia assim (O Capital, vol.III): «o crédito concedido por um banqueiro pode assumir várias formas […] , e finalmente, se o banco está autorizado a emitir notas [no tempo de Marx não eram só os bancos centrais que emitiam notas] – notas bancárias, do próprio banco. Uma nota bancária é apenas uma ordem de pagamento a satisfazer pelo banqueiro, pagável em qualquer altura ao portador, e concedida pelo banqueiro em vez de ordens de pagamento privadas. […] já que é visível aqui que o banqueiro lida com o próprio crédito, sendo uma nota bancária meramente um símbolo circulante de crédito», «a quantidade de notas em circulação é regulada pelos requisitos do volume de negócios e cada nota supérflua acaba por regressar ao seu emissor.». Em suma: o que impulsiona o empréstimo bancário não é a oferta de dinheiro, mas sim os requisitos da produção capitalista; é o crédito que cria os depósitos.
Por conseguinte, tentativas de usar o «multiplicador do dinheiro» como um mecanismo de controlo, como fez Ben Bernanke durante a Grande Recessão, estão condenadas a falhar. Não é um mecanismo de controlo mas sim uma simples medida do quociente entre o crédito em dinheiro concedido pelo sector bancário e a emissão de dinheiro pelo Governo. Injectar dinheiro nas reservas bancárias em vez de o encaminhar para as pequenas e médias empresas e o público em geral, é decididamente a política errada, como se demonstrou nos EUA (vários dados sobre isto no livro de Steve Keen). Note-se que é precisamente o mesmo erro que se está a cometer nos países vítimas de acordos com a troika, como Portugal.
Será que os neoclássicos desconhecem que a teoria do «multiplicador do dinheiro» está errada? Não, conhecem-na perfeitamente mas fazem por ignorá-la. É-lhes conveniente ignorá-la em prol dos serviços que prestam ao grande capital, nomeadamente ao capital financeiro representado pelos bancos privados.
De facto o problema do crédito exige considerar a evolução dinâmica do sistema capitalista e a possibilidade de instabilidades do sistema, conforme Steve Keen expões em capítulo do livro onde descreve porque razão ele (e alguns outros) viram o que estava para acontecer.
*   *   *
Terminamos aqui esta breve revisão do livro de Steve Keen, onde procurámos fazer uma síntese dos aspectos essenciais esclarecendo-os de uma forma mais simples, julgamos nós, do que a proporcionada pelo livro. Este, porém, contém uma quantidade enorme de matéria de grande interesse que aconselha a sua leitura atenta.
Vimos que a teoria neoclássica enferma de males irredutíveis, com particular ênfase nas análises macroeconómicas que são vistas como simples prolongamento das microeconómicas:
- A curva da procura de mercado pode ter qualquer forma (polinomial) e só em casos muito especiais terá a forma que os neoclássicos assumem: descendente.
- A curva da oferta de mercado, num mercado perfeitamente competitivo, não existe. Neste tipo de mercado, com as condições definidas pelos neoclássicos, a determinação do preço de mercado implica, tal como nos monopólios, a consideração de três curvas e não de duas.
- A regra da maximização do lucro dada pelo igualar da receita e oferta marginais não é, em geral, aplicável.
- Tal regra conduz a resultados completamente erróneos, não comprovados no mundo real, quer no mercado de trabalho quer no mercado de capitais.
- Ao contrário da abordagem neoclássica, em que a análise macroeconómica assenta numa visão estática de simples sucessões de estados de equilíbrio estáveis, a economia real exige considerar comportamentos dinâmicos (papel do factor tempo) e a possibilidade de equilíbrios instáveis.
- Esta visão fundamental dos neoclássicos leva-os a interpretações e análises erradas de vários temas, nomeadamente no que se refere à «hipótese dos mercados eficientes», ao comportamento dos mercados bolsistas e ao papel do crédito no sistema capitalista.

A economia convencional não é neutra, como se pronunciam os seus proponentes. É uma economia ao serviço do sistema capitalista. Steve Keen cita a seguinte frase de um economista neoclássico de nomeada (Paul Krugman): «A Economia é acerca do que fazem os indivíduos: não é acerca de classes, de «correlações de forças», mas de actores individuais. Com isto não se nega a relevância de níveis mais altos de análise, mas eles têm de ser ancorados no comportamento individual. Individualismo como método deve ser a essência.». O comentário de Steve Keen é o seguinte: «Não, não é. O individualismo como método é um dos principais defeitos da economia neoclássica […]» A isto, juntamos nós: pretender a inexistência de classes e a irrelevância de «correlações de forças» é precisamente o mote que interessa aos capitalistas, o mote que explica «cientificamente» e «matematicamente» o direito do capital explorar o trabalho.
Diz Steve Keen que na primeira edição do seu livro ainda acreditava na economia neoclássica como uma ciência com erros, mas que, entretanto, as reacções que tinha visto ao livro e o que tinha observado e estudado, o levavam agora à conclusão de que a economia neoclássica não era uma ciência, mas sim uma pré-ciência (digamos, como a física de Aristóteles, face à de Galileu e Newton). Quanto a nós, pensamos serem os fundamentos da Economia neoclássica tão irrealistas e sem sentido, as suas conclusões tão erróneas, que a designação de pseudo-ciência nos parece mais adequada (digamos, como a astrologia face à astronomia).
A questão que se coloca é: existem alternativas à economia neoclássica? Sim. Existem várias alternativas. Relativamente a determinados temas concretos, como o papel do crédito, existem actualmente sofisticados modelos matemáticos dinâmicos, que se apoiam em assunções realistas como a da luta de classes, capazes de fornecer resultados explicativos do que se passa no sistema capitalista. Já anteriormente, referimos o sucesso que está a ter a econofísica. Entre as teorias não-neoclássicas (ditas heterodoxas) há vários ramos do conhecimento que estão a ser desenvolvidos com um aporte explicativo não desprezável (economia comportamental, economia evolucionista, etc.). Existe também a teoria económica marxista que Steve Keen também aborda no seu livro apontando aspectos que ele considera positivos e negativos nesta teoria. (Já dissemos que Steve Keen é keynesiano; defende, portanto, pelo menos actualmente, a ideia de que o sistema capitalista é mau mas é reformável. Nós não subscrevemos esta «tese».) As alternativas à economia neoclássica estão, obviamente, fora do escopo destes artigos. Pensamos, contudo, vir no futuro a escrever algo sobre isto.

Quadro simplificado das Escolas económicas.
Atitude face ao capitalismo
Designação da Escola
e mote («…»)
Principais Autores
Vigência
Principais Fundamentos Doutrinários
(não aplicável)
Extintas, primórdios do capitalismo
Mercantilismo
Gerard de Malynes, T. Mun
Séc. XVI a XVIII
A riqueza das nações depende da acumulação de ouro e prata.
Fisiocratas
Fraçois Quesnay, A-R-J Turgot
Séc. XVIII, França
Só a agricultura gera mais-valia, logo é ela a fonte da riqueza.
O capitalismo é eterno.

Se o governo não intervier não existirão crises.
Clássica
«Deixem o capitalismo funcionar»
Adam Smith, T. Malthus, J. S. Mill, David Ricardo
1776 - ?
Total liberdade económica para a iniciativa privada, sem intervenção do Estado. Trabalho, capital e propriedade fundiária procuram benefícios próprios numa situação de equilíbrio de mercado.
Neoclássica

ou

Convencional
Ortodoxa

«O capitalismo é bom»
Alfred Marshall, Jeremy Bentham
1870 - ?
A procura de benefícios próprios baseia-se no utilitarismo. Trabalho e capital actuam independen-temente e «racionalmente». A produção óptima corresponde a igualar receita e custo marginais.
Neoliberal

«O grande capital financeiro é melhor»
M. Friedman,
F. Hayek
1950 - ?
Regresso a Adam Smith. O mercado resolve tudo e o capitalismo será estável se a oferta de dinheiro for estável.
O capitalismo é eterno.

Só se o governo intervier adequada-mente não existirão crises.
Keynesiana 1
«Salvemos o capitalismo»
J. M. Keynes,
R. Kahn
1936 - ?
O mercado nem sempre é estável. O governo deve intervir para assegurar a estabilidade e o emprego, quer através de investimentos no sector público quer através de taxas de juro que favoreçam investimentos.
O capitalismo não é eterno.

A luta dos trabalhadores determinará o seu fim.
Marxiana 2
«Ultrapas-semos o capitalismo logo que ele deixar de ter um papel progressivo»
Karl Marx,
Ernest Mandel,
Andrew Kliman
1876 - ?
A única fonte de mais-valia é o trabalho. Desta premissa decorrem contradições insanáveis do capitalismo reflectidas pela queda da taxa de lucro e a sobreprodução.
1 Existem várias correntes keynesianas. A post-keynesiana é praticamente indistinguível da neoliberal. Entroncam, geralmente, na corrente keynesiana certas abordagens recentes como a «economia ecológica ou verde», «economia evolucionária», «economia estrutural», «econofísica», etc. Algumas destas correntes parecem-nos ser puramente especulativas, como, por exemplo, a «economia feminista»!
2 Existem correntes algo divergentes da corrente marxiana «pura» que se reclamam de marxianas.
1 e 2 As correntes keynesiana radical (propugnando uma grande intervenção estatal) e marxiana são denominadas de «heterodoxas».

[1] O leitor com conhecimentos de matemática não terá dificuldade em apreciar que se trata aqui de somas de progressões geométricas. Por exemplo, o total final de depósitos, quando o numerário guardado é zero, corresponde a (100 – 0)/(1 – 0,9) = 1000.