Grande parte da intelectualidade portuguesa, pelo menos daquela que aparece nos meios de comunicação e cujas palavras são bebidas por jornalistas e entrevistadores, tem-se revelado, nas últimas décadas, uma simples caixa de ressonância das concepções de direita veiculadas e marteladas ad nauseam por PS, PSD e CDS.
Trata-se de uma intelectualidade tíbia, falha de ideias no que se refere ao rumo a dar ao país (embora, nalguns casos, com boas ideias e bom trabalho nas respectivas áreas profissionais), contaminada por um optimismo bacoco no europeísmo (leia-se, na possibilidade, interesse e vontade do capitalismo europeu «ajudar» Portugal). É uma intelectualidade profundamente atada a valores burgueses, acomodada, conformada e obediente. Não há nada que os serventuários políticos do Capital apresentem como «moderno» que esta intelectualidade não corra de forma acéfala a aceitar, em nome de estar na onda, bem sintonizada com a «Europa» e com um, vago, «Portugal moderno»: desde o acordo de Bolonha ao acordo ortográfico; desde a conversão das Universidades em Fundações à aceitação ingénua de que se temos a troika é porque andámos todos a gastar de mais.
Nos últimos tempos esta intelectualidade (re)descobriu uma nova tecla: a tecla do nacionalismo. A tecla tocada vezes sem conta pelo salazarismo sobre as grandes virtudes da «raça» portuguesa (hospitaleiros, desbravando os quatro cantos do mundo, autores dos descobrimentos que deram novos mundos ao mundo, com belas aldeias, etc.). Só maravilhas. E só dos portugueses! Pois se até temos palavras (e falava-se e ainda se fala muito na palavra «saudade») que mais ninguém tem (o que é totalmente falso)! Quanto aos «brandos costumes» já se deixou de falar face à evidência da actual criminalidade brutal e galopante.
Com tantas e belas emoções proporcionadas pelo nacionalismo para que interessa a razão? Não! É bem melhor manter os portugueses embalados no conforto de pensarem que somos os melhores do mundo do que dar-lhes azo a usarem a razão. É que a razão é sempre subversiva.
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A tecla do nacionalismo é agora tocada sob o mote de «Portugal vale a pena!». Um mote bem abstracto e ambíguo, bem ao gosto do idealismo burguês. Porque, repare-se: «Portugal»? Que Portugal? Uma entidade intemporal? Que tem de comum o Portugal dos descobrimentos com o Portugal de hoje? Nada. E: «vale a pena»? Para quê e para quem?
Parece que quem se lembrou primeiro do «Portugal vale a pena!» foi alguém que dá pelo nome de Nicolau Santos e se auto-intitula «economista poeta» ([1]). Num texto com esse título (que elaborou para a visita de Cavaco Silva à Índia, o que estabelece um vínculo relacional entre Cavaco e Nicolau) enumera uma série de invenções e recordes portugueses: a quarta mais baixa taxa de mortalidade infantil do mundo e a terceira mais baixa da Europa, o terceiro mais importante registo europeu de dadores de medula óssea, o país que inventou uma bilha de gás muito leve, etc. Algumas afirmações desse texto que nos demos ao trabalho de controlar até estão erradas: por exemplo, no que diz respeito a mortalidade infantil Portugal estava no período de 2005 a 2010 em 23.º lugar a nível mundial e, em termos europeus, em 17.º lugar ([2]). É também simplesmente ridículo afirmar, como no referido texto, que Portugal está avançadíssimo na investigação da produção de energia através das ondas do mar. Uma simples consulta à Wikipédia mostra que a investigação nesse domínio está todas nas mãos de americanos, ingleses, e mais alguns países. Portugal limitou-se a adquirir conversores de energia aos ingleses participando numa experiência dispendiosa e efémera (Julho a Novembro de 2008). Isto é, servimos de cobaia.
Mas, claro, a debilidade das tiradas nacionalistas deste calibre é que é sempre possível, para qualquer país, apresentar pontos positivos; nem que sejam do género de «uma bilha de gás muito leve». Ora, o que verdadeiramente interessa saber, é se dos pontos positivos avançados constam aqueles com real importância sócioeconómica, em termos de desenvolvimento humano. Nesse aspecto o Portugal actual tem muitos pontos negros que Nicolau Santos pudicamente escondeu (bem como outros do Portugal passado, [3]). Por exemplo, no que se refere a analfabetismo, Portugal estava em 2010 na cauda da Europa ([4]): só Malta tinha maior percentagem de analfabetos. No que diz respeito à percepção de corrupção também se encontrava num mau lugar em 2012: 33.º lugar em 173 países e 18.º pior em 30 países europeus ([5]).
A terminar o seu texto Nicolau Santos não se esquece de mencionar os Descobrimentos. Não vá dar-se o caso (sabe-se lá!) de os outros pontos positivos parecerem insuficientes. A saga dos Descobrimentos é sempre um ponto forte, de efeitos garantidos, que justificam o valor da «raça». Porque, vendo bem, o que tem de comum o Portugal de quinhentos com o Portugal de hoje? Para além da continuidade geográfica (tirando o pormenor de Olivença), as formações sócioeconómicas foram evoluindo e os problemas com que depararam as várias gerações foram necessariamente muito diferentes. A geração de quinhentos foi, em grande parte (de facto, só em grande mas insuficiente parte), capaz de responder bem aos desafios que os condicionalismos da época impunham; as gerações seguintes não foram: perdemos a revolução industrial, passámos por quase meio século de atraso e obscurantismo fascista, perdemos o 25 de Abril, e aqui estamos, hoje, como semicolónia do imperialismo alemão-francês, em pleno desastre económico e social. Portanto, para além da continuidade geográfica, a ideia de um Portugal abstracto e intemporal «que vale a pena» só podia, nas mentes desta intelectualidade acocorada, ser validada por apelo a uma ideia salazarista: a da continuidade da «raça». Aliás, pelas mesmas razões, o regime Salazarista hiperbolizava o tema dos descobrimentos ([6]). Éramos um país falhado mas onde habitava a raça que tinha feito a gesta dos descobrimentos, que funcionava como elixir de auto-estima.
Mais recentemente (2012) surgiu um livro com o mesmo título «Portugal vale a pena!» e o pomposo subtítulo «Os Melhores escrevem sobre o Melhor» ([7]). O livro é uma compilação de textos curtos escritos por muitos dos tais intelectuais (e, repetimos, não colocamos em dúvida a contribuição positiva de vários deles em muitos ramos do conhecimento) glosando o título. A impressão que recolhemos do folhear do livro é a de que é simplesmente uma lamentável recolha de banalidades nacionalistas e chauvinistas. Grande parte dos textos divaga sobre a contribuição portuguesa dos descobrimentos. Já comentámos acima este aspecto. Resta-nos acrescentar que são textos que caberiam bem num manual escolar salazarista. Os outros textos abordam questões mais mundanas: sol, praia, paisagens, hospitalidade, gastronomia, etc. Mas, quais os países que não se podem gabar de várias e muitas virtudes mundanas e predicados geográficos?
Na realidade, mesmo que fossem pobres em tais virtudes e predicados todos os países valem a pena! ([8]) A não ser para os nazis sempre prontos a apagar alguns do mapa.
Ah! E também não falta no livro a menção às nossas aldeias tão típicas. Que maravilha! Habitadas quase inteiramente por velhos analfabetos, a viverem com pensões de miséria (quando as têm, é claro), a votarem todos certinhos no CDS e no PSD conforme sempre lhes disse o senhor prior. Então, não é mesmo uma beleza? Que encanto! Que tal ressuscitar o concurso salazarista da mais típica aldeia de Portugal?
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Regressemos ao concreto e ponhamos a razão a funcionar. De facto, para quê e para quem vale a pena este concreto Portugal? Bem, os turistas estrangeiros gostam muito de passar férias no Algarve e noutros pontos do país. Mas não vivem em Portugal (e digo «em» no sentido de inserção profissional e económica). Também existem alemães e holandeses que compraram quintas no Alentejo que devem achar que vale a pena. Mas para quem este Portugal vale principalmente a pena é para os grandes capitalistas, gestores, etc., que constituem o topo dos 1% do topo. Podem viver luxuosamente e impunemente à custa do saque das riquezas de Portugal e dos rendimentos do povo trabalhador ([9]).
Quanto a nós, e no que respeita ao povo trabalhador, a nossa razão diz-nos o seguinte:
Com 2,5 milhões de cidadãos a viver abaixo do limiar de pobreza e mais de 1 milhão em extrema pobreza, no quadro de uma enorme desigualdade social,
Este Portugal não vale a pena!
Com cerca de 16% de taxa global de desemprego, e taxa de desemprego ainda maior para os jovens (estimada em mais de 20%),
Este Portugal não vale a pena!
Com mais de 30.000 licenciados a emigrar para o estrangeiro em 2012,
Este Portugal não vale a pena!
Com salários e pensões de miséria, que ainda por cima são atacados constantemente,
Este Portugal não vale a pena!
Com um sistema de ensino destruído,
Este Portugal não vale a pena!
Com um sistema de saúde gerido segundo a óptica privada, onde se corta no acesso aos medicamentos e já o poder cinicamente aconselha os cidadãos a não ficarem doentes para não sobrecarregar o SNS,
Este Portugal não vale a pena!
Com uma enorme e galopante corrupção, onde o poder público e os interesses privados se misturam, onde a promoção não é por mérito mas por clientelismo, onde o nepotismo é corrente,
Este Portugal não vale a pena!
Com um sistema judicial que não funciona, que está feito para ajudar os ricos a escaparem impunemente aos seus crimes de fraude, peculato e corrupção,
Este Portugal não vale a pena!
Com um sistema produtivo destruído e o actual saque de bens comandado por governo-troika a favor dos banqueiros e seus comparsas, agravando cada vez mais a nossa perda de soberania,
Este Portugal não vale a pena!
Com políticos subservientes dos interesses do Capital, não só nacional como internacional, do baixo calibre a que nos têm habituado PS, PSD e CDS,
Este Portugal não vale a pena!
Com uma «democracia» de fachada, construída para que de quatro em quatro anos fiquem sempre os mesmos,
Este Portugal não vale a pena!
Com meios de comunicação em que se auferem fortunas a debitar programas de imbecilização de massas, e onde surgem cada vez mais acções de censura da liberdade de expressão,
Este Portugal não vale a pena!
Não, senhores intelectuais. A vossa mascarada do «Portugal vale a pena!» fede. É tempo de escolherdes o lado da barricada onde vos quereis situar: se do lado da razão ao serviço do povo trabalhador, ou se do lado da ocultação da razão ao serviço dos saqueadores e opressores.
Tereis de decidir se quereis desempenhar o papel de adormecedores do povo ¾ embalando-o com historinhas sobre praiazinhas, solzinho, comidinhas e aldeias muito típicas, coitadinhas ¾ ou se quereis participar no acordar do povo.
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Perante as diatribes de nacionalismo rançoso desta acocorada intelectualidade portuguesa quão bem mais nobres não nos surgem as palavras do poeta Fernando Pessoa, quando diz ([10]):
Cumpriu-se o Mar, e o império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Sim, falta cumprir-se um Portugal soberano, com vida digna para o povo trabalhador, sem corrupção, analfabetismo e gritantes desigualdades sociais. Um Portugal que só poderá ser cumprido pela vontade dos próprios trabalhadores. Acordados. Um Portugal concreto que valha a pena.
[1] Nicolau Santos. Portugal vale a pena! Expresso Economia, 12 de Fevereiro de 2007.
[2] Dados publicados na wikipédia, com base em dados compilados pela CIA (World Fact Book) que por sua vez os vai buscar a várias instituições nomeadamente ao Departamento de Assuntos Económicos e Sociais da ONU.
[3] Também não faltam, como é óbvio, imensos pontos negros no Portugal antigo; basta pensar na Inquisição e no tráfico de escravos (só abolido definitivamente em 1869 quando já praticamente todas as nações europeias o tinham abolido). Mesmo na questão da abolição da pena de morte, que Nicolau Santos afirma (ecoando crença vigente) que foi Portugal o primeiro a abolir, a questão não é tão simples: a última execução foi em 1846 (posterior às datas de últimas execuções do Liechtenstein e San Marino); a pena capital foi abolida em 1911 e reinstituída em 1916 para crimes de traição em tempo de guerra, só tendo sido definitivamente abolida em 1976, já depois de muitos outros países o terem feito.
[4] Dados publicados na wikipédia, com base em dados compilados pela CIA (World Fact Book) que por sua vez se baseou nos dados da UNESCO.
[5] Segundo os dados da Corruption Perception Index publicados pela Transparency International.
[6] Não pomos, como é óbvio, em causa a importância e o interesse do estudo dos descobrimentos portugueses. Ironicamente, o estudo dos descobrimentos portugueses foi melhor conduzido por historiadores estrangeiros do que pelos próprios historiadores portugueses.
[7] Publicado pela Oficina do Livro, Lisboa, 2012.
[8] É precisamente porque todos os países valem a pena que a simples menção do título «Portugal vale a pena!» evoca de imediato um sentido bacoco à dita obra, de intelectuais que procuram tapar assim a má-consciência pelo desgraçado estado a que chegou Portugal e em que eles não estão isentos de culpa.
[9] Já apresentámos bastante documentação sobre os 1% do topo em anterior artigo deste blog.
[10] Fernando Pessoa. Mensagem: O Infante. (Várias edições.)