III – Da Independência até à Primavera Árabe
Vimos na Parte II como os países árabes alcançaram a independência a seguir à 2.ª guerra mundial, ainda num estado de desenvolvimento incipiente do capitalismo, com uma burguesia débil e a sobrevivência de relações feudais e tribais. Dos quatro países que temos vindo a analisar a Tunísia era o mais desenvolvido, com algumas indústrias locais; a Líbia e a Síria os menos desenvolvidos, com largas sobrevivências de feudalismo e tribalismo.
Nos países árabes, como também vimos, o capitalismo não foi algo que nascesse como resultado do desenvolvimento económico mercantilista nas comunidades urbanas, como na Europa. No mundo árabe não existiu nada de parecido com a revolução inglesa de 1640 e muito menos com a grande Revolução Francesa de 1789. O capitalismo foi, em grande medida, imposto do exterior, pelas potências europeias colonizadoras. Também, como consequência da evolução imposta do exterior num contexto feudal, muito pouco existia no mundo árabe que se pudesse comparar com a filosofia racionalista, própria ao desenvolvimento burguês europeu do séc. XVIII: a filosofia das luzes. A oposição à opressão colonial e depois às desigualdades impostas pelo desenvolvimento capitalista autóctone, mais depressa buscava fundamentação em considerações religiosas do Corão, do que numa análise racionalista e materialista.
Na Europa, o campesinato, desde que a burguesia se tornou a força principal de oposição ao feudalismo, aliou-se (no essencial) à burguesia na luta pelo desmantelamento feudal e pela conquista de melhores condições de vida. No mundo árabe os burgueses autóctones eram muitas vezes vistos como simples apêndices dos burgueses estrangeiros; como em todos os países coloniais ou semi-coloniais a burguesia árabe desenvolveu-se como classe debaixo do patrocínio do domínio imperialista, com privilégios que correspondiam às migalhas do saque das riquezas do próprio país pelos imperialistas ([1]). O campesinato, na sua luta, tendia a não distinguir entre capitalistas autóctones e estrangeiros, procurando no clero muçulmano os condutores e ideólogos das suas lutas. Daí, o grande peso do confessionalismo islamita nos partidos políticos árabes, mesmo na actualidade. Daí, também, que apareçam como grandes inimigos do imperialismo ocidental importantes movimentos e forças políticas de componente popular (apoiados pelos mais pobres dos pobres) mas de ideologia clerical extremamente reaccionária. É um fenómeno praticamente desconhecido na História europeia moderna.
A seguir à independência, as camadas mais esclarecidas dos países árabes sentiam a necessidade urgente de desenvolver as respectivas economias, criando uma base industrial e infra-estrutural; só com a emancipação económica e política seria possível acabar com a miséria extrema, disponibilizar serviços de educação e saúde e singrar na via do desenvolvimento. Não esqueçamos que se tratava de países predominantemente agrários. Dada a debilidade da burguesia, e a sua subserviência aos capitalistas estrangeiros, ela era incapaz de liderar um processo desenvolvimentista no quadro de uma democracia burguesa; por outro lado, os trabalhadores eram em pequeno número, praticamente sem sindicatos e sem partidos políticos que representassem os seus interesses podendo liderar uma revolução de cariz socialista. Apenas uma (terceira) via se abria: a da revolução de emancipação nacional liderada por um movimento pluri-classista, nomeadamente de oficiais do exército de sentimentos patrióticos. Na Tunísia foi o movimento civil pluri-classista (Frente Nacional, Neo-Destour) de Burguiba que entrou em cena. No Egipto, Líbia e Síria foi o movimento pluri-classista dos «oficiais livres». Em ambos os casos as respectivas evoluções históricas vieram a revelar semelhanças importantes.
Os líderes militares enveredaram, inicialmente, por uma via de «socialismo árabe»; um socialismo pequeno burguês que não reconhece a luta de classes nem os direitos dos trabalhadores e não vai além de advogar a nacionalização de grandes empresas e uma mais justa repartição da terra. O movimento de Burguiba também passou por uma idêntica fase «socialista árabe». Os movimentos liderantes estabeleceram um equilíbrio entre os interesses das duas classes antagónicas, burguesia e trabalhadores, num estilo autocrático denominado de «bonapartista». Contribuem, é certo, numa primeira fase, para o desenvolvimento económico dos respectivos países, mas a sua visão pequeno-burguesa e as condições materiais existentes fazem-nos constantemente oscilar entre um desenvolvimento «socializante», com empresas do Estado, mas sem controlo democrático dos trabalhadores, e um desenvolvimento capitalista. Com o passar do tempo, o autocrata e sua clique desenvolvem um sistema de clientelismo corrupto e nepotista que leva ao declínio do desenvolvimento económico inicial e ao progressivo evoluir em direcção a uma solução capitalista.
O papel histórico dos líderes militares (e de Burguiba no caso da Tunísia) acabou por ser o de favorecerem o crescimento de uma burguesia autóctone (incluindo os «militares patrióticos»), que veio a apoderar-se das empresas estatais e a dominar o Estado. Entretanto, a par das consequências capitalistas neoliberais (baixos salários, desemprego, repressão dos direitos dos trabalhadores, liquidação de serviços sociais) a burguesia manteve o aparelho «bonapartista» venal e brutal, ali já formado, ao seu dispor. Agora já não como instrumento de equilíbrio entre as duas classes, mas abertamente como instrumento de exploração dos trabalhadores e das camadas mais pobres, pronto a adoptar, se necessário, as medidas mais terroristas de opressão.
Tunísia
Quando a Tunísia se tornou oficialmente independente em 1956, dispunha já de uma Constituição. A Assembleia Constituinte tinha sido eleita, ainda em pleno domínio francês, por uma Frente Nacional que englobava várias forças políticas e sindicais (UGTT) excepto o Partido Comunista Tunisino. Na prática, a Assembleia era dominada pelo Neo-Destour de Habib Burguiba, representante dos interesses da incipiente burguesia tunisina, nomeadamente a burguesia urbana. A incorporação da UGTT na Frente Nacional, imposta por Burguiba e aceite pelos dirigentes sindicalistas membros do Neo-Destour, condenou a UGTT a servir de amortecedor entre as reivindicações dos trabalhadores e o poder ([1]).
Em 25 de Julho de 1957 a monarquia era abolida e a Tunísia tornava-se uma República de partido único – o Neo-Destour – com Burguiba como Presidente de amplos poderes. Foi-o durante 30 anos, na forma de uma espécie de déspota venerado e esclarecido. Na conquista de estabilidade política, nomeadamente contra ameaças de movimentos clericais, Burguiba tornou-se hábil em estabelecer e manobrar ligações clientelistas, baseadas em esquemas de promoções e despromoções «oportunas». O clientelismo enraizou-se na sociedade tunisina e veio a tornar-se fonte da corrupção crescente do regime.
Burguiba era adepto do racionalismo francês. Procurou seguir uma política de estabilidade tendente a aumentar as forças produtivas do país, logo do crescimento da burguesia e do trabalho assalariado contra as sobrevivências feudais, rapidamente extintas. No espírito do iluminismo francês seguiu uma política não militarista, secularista, e de concessão de amplos direitos às mulheres. Apoiou a causa palestiniana e o movimento dos não-alinhados desde a sua constituição em 1961 ([2]).
Burguiba era contra a ideia pan-árabe. Baniu nos anos cinquenta os antigos dirigentes da facção pan-árabe do Neo-Destour que se refugiaram no Cairo (na altura, Nasser era a personificação egípcia do pan-arabismo). Deixou assim de existir qualquer oposição a Burguiba e em 1963 o Neo-Destour era oficialmente proclamado partido único (já o era de facto).
A partir de 1964 a Tunísia viveu uma experiência socializante que durou cerca de seis anos. O Neo-Destour foi rebaptizado como Partido Socialista Desturiano (PSD, membro da internacional socialista) e o novo ministro do planeamento, Ahmed Ben Salah, liderou uma política de apoio governamental à instalação de cooperativas agrícolas e à constituição de empresas industriais estatais. Entretanto, o próprio crescimento da economia capitalista tinha aumentado o poder político e económico da burguesia, enquanto os assalariados continuavam sem direcção política autónoma e com dirigentes sindicais obedientes às autoridades. A experiência socializante não contribuiu para o crescimento da economia ([3]). Em 1970 era descoberto petróleo. Os apetites da burguesia aumentaram. Ahmed Ben Salah foi despedido e as empresas estatizadas (incluindo cooperativas agrícolas) entregues a privados.
Com a liquidação da experiência socializante, as tensões sociais aumentaram. A produção agrícola baixava e o desemprego urbano aumentava empurrando os trabalhadores para a emigração. A aceleração das políticas económicas liberalizantes prosseguiu com o acordo concluído com a CEE que concedeu vantagens fiscais a empresas estrangeiras arruinando pequenas empresas nacionais o que levou ao acréscimo do desemprego. Em 1978 rebentou uma greve geral; foi brutalmente reprimida pelo governo, tendo morrido dezenas de trabalhadores (450 mortos) e detidos vários dirigentes sindicais. O estado de graça de Burguiba (declarado presidente vitalício em 1975) na mente de muitos trabalhadores tinha acabado. Na repressão dos trabalhadores distinguiu-se um general: Zine Ben Ali.
Burguiba tentou manobrar, permitindo que partidos «oficializados» pudessem concorrer às eleições de 1981. Um plano de austeridade imposto pelo FMI com aumentos dos preços do pão e cereais, levou a protestos generalizados em 1983. O governo reprimiu brutalmente os protestos proibindo partidos, particularmente os islamitas. Em 1986 a oposição boicotou as eleições. Um Burguiba doente nomeou o general Ben Ali primeiro-ministro. Em Novembro de 1987, num golpe palaciano que invocava o estado de saúde de Burguiba, Ben Ali assumiu o poder. Em 1988 mudava o nome do partido único para Convergência Democrática Constitucional (CDC). O regime então autoriza ou tolera alguns partidos «oficiais» desde que «bem comportados», nomeadamente os de «esquerda» como o Ettajdid, partido social-democrata que emergiu do Partido Comunista Tunisino depois da sua auto-extinção em 1993.
Com Ben Ali a corrupção generaliza-se. Usando métodos mafiosos a família e clientelas de Ben Ali procedem a expropriações em seu próprio benefício e atrelam a Tunísia aos interesses do imperialismo. A clique de Ben-Ali (clã Trabelsi) tornou-se rapidamente a controladora da economia tunisina. Ben Ali oficializa a censura e esmaga qualquer oposição, com especial vigor os islamitas moderados do Enahdha dos quais 8.000 activistas vão para as prisões. O esmagamento dos islamitas era bem visto pelas potências imperialistas; o descontentamento popular subjacente pouco lhes importava. Entretanto, Ben Ali era eleito e reeleito como Presidente por elevadas percentagens (acima dos 90%).
Em 2007 vários indicadores económicos da Tunísia eram encorajadores: dívida pública em 47% do PIB e dívida externa em 25% do PIB. As exportações (têxteis, partes mecânicas, fosfatos, produtos agrícolas, etc., com França como principal importador, 31%) cobriam 84% das importações (maquinaria, hidrocarbonetos, químicos, petróleo, etc., com França como principal exportador, 24%). A Tunísia deixava de ser um país agrário, com a seguinte contribuição sectorial para o PIB: Serviços: 62,8%; Indústrias: 25,7%; Agricultura: 11,6%. Num país de 10 milhões de habitantes, mais de um terço constituía a força de trabalho com um papel importante da classe operária.
Outros indicadores eram menos optimistas. O PIB per capita representava em 2007 cerca de 1/3 do valor de Portugal e tinha vindo a estabilizar ou mesmo a diminuir desde então. A pobreza era enorme: em 2008, segundo dados do Banco Mundial, 8,1% da população vivia com menos de 2 dólares por dia. A Tunísia recebia alguma ajuda económica (correspondente em 2003 a 376,5 milhões de dólares, menos de 1% do PIB). A desigualdade social era elevada: em 2007 o rendimento dos 10% do fundo correspondia a 2,3% do PIB e dos 10% do topo a 31,5% do PIB; em Portugal os valores eram respectivamente de 2,7% e 28,7%, pelo que, comparado com Portugal (país de desigualdade elevada), os 10% do fundo da Tunísia recebiam ligeiramente menos ([4]) mas os 10% do topo recebiam substancialmente mais (em percentagem do PIB).
Se bem que o PIB a custos correntes tivesse crescido de 1986 a 2008 (com taxas anuais elevadas entre 4 e 6% ao ano) devido a vultuosos investimentos estrangeiros que exploravam a mão-de-obra barata tunisina, de 2008 a 2010 o crescimento do PIB cai para níveis de 3% ([5]). A taxa de desemprego oficial é elevada (13%) e na véspera da revolução 300.000 jovens licenciados tinham emigrado.
Em Janeiro de 2008 rebentou uma greve dos mineiros das minas de fosfatos da região de Gafsa. Começou na pequena cidade de Rdaief e espalhou-se a todas as minas da região, durante seis meses. A repressão do regime foi brutal (150 presos com penas de 10 anos de cadeia; [6]). A UGTT recusou condenar as medidas repressivas do regime! Diz bem do grau de submissão e degradação do movimento sindical tunisino. Entretanto, os porta-vozes imperiais gabavam o regime Tunisino. Sarkozy dizia em Abril do mesmo ano «O vosso país está empenhado na promoção de direitos humanos universais e nas liberdades fundamentais». Que espantosos «direitos humanos»! Staruss-Kahn, «socialista» francês e director do FMI bem conhecido actualmente pelos escândalos sexuais que se sucedem em torno da sua figura, dizia na mesma altura em Tunes que o regime de Ben Ali «era o melhor modelo para muitos países emergentes».
Ben-Ali apoiou a causa palestiniana, aconselhando soluções moderadas do agrado da UE e dos EUA. Num clima de paz aparente, eis que estalam em Dezembro de 2010 os protestos massivos que conduzem à primeira revolução da Primavera Árabe. A estupefacção dos imperialistas e dos seus meios de comunicação era patente. De facto, tinham durante anos e anos prestado orelhas moucas aos protestos e profundo descontentamento popular que agora desembocava numa insurreição ([7]).
[1] Nasser Itihad (2011) La Constitution du mouvement ouvrier en Tunisie. La Vérite, n.º 70.
[2] Wikipedia. O artigo History of Modern Tunísia da wikipedia na versão inglesa contém informação essencialmente correcta.
[3] Segundo dados do Banco Mundial, entre 1965 e 1970 a taxa de crescimento do PIB só foi maior que em anos anteriores em 1968 (10,4%). Nos outros anos foi inferior e inclusive em 1967 foi praticamente nula (0,14%).
[4] Fontes: Historical Statistics, Centro de Desenvolvimento da OCDE (dados actualizados do trabalho de Angus Maddison, The World Economy: Historical Statistics , 2004; wikipédia.
[5] http://www.tradingeconomics.com/tunisia/gdp-growth-annual.
[6] Eric Gobe (2008). The Gafsa Mining Basin between Riots and a Social Movement. Institut de Recherches et d’Études sur le Monde Arabe et Musulman (IREMAM, Centre CNRS), Aix-en-Provence , France .
[7] The Tunisian Revolution did not come out of nowhere. Entrevista de Sadri Khiari publicada pela revista Politique Africaine em Abril de 2011 (traduzida para inglês).