As designações políticas «direita» e «esquerda» há muito tempo (desde o século XIX) que se popularizaram por todo o mundo. Como acontece frequentemente com expressões popularizadas, o significado preciso esbateu-se com a popularização. Acresce que, neste caso, as forças políticas subservientes do capitalismo e seus porta-vozes intelectuais e mediáticos tudo têm feito para tornar impreciso o significado.
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A história das designações «direita» e «esquerda» remonta a 1789, quando no início da Revolução Francesa os deputados da Assembleia Nacional constituinte se dividiram em dois grupos: os que apoiavam o sistema feudal (aristocratas e clero ligado à aristocracia) sentaram-se à direita do presidente da Assembleia; os que apoiavam a revolução (e implicitamente o papel da burguesia e do capitalismo nascente) sentaram-se à esquerda. A imprensa contemporânea (que rapidamente desabrochou numa enorme quantidade de jornais) passou a designar os dois grupos por «direita» e «esquerda» ([1]).
Estas designações, todavia, só vieram a consolidar-se no jargão político a partir da 3.ª República em França (a partir de 1971) e no início do século XX. Por esta altura, os partidos socialistas sentavam-se à esquerda da Assembleia e os não socialistas à direita. Conforme é bem observado na referência [1] (tradução nossa):
«A direita negava que o espectro esquerda-direita tivesse sentido porque viam-no como artificial e prejudicando a unidade. A esquerda, contudo, procurando mudar a sociedade, promoveu a distinção. Como observou Alain ([2]) em 1931, "Quando as pessoas me perguntam sobre se a divisão entre partidos da direita e partidos da esquerda, homens da direita e homens da esquerda, ainda faz sentido, a primeira coisa que me vem à mente é que a pessoa que levanta a questão não é certamente um homem da esquerda "».
Note-se como já nessa época era a direita que estava interessada em promover a confusão em nome de uma suposta «unidade» nacional, passando por cima e mascarando os interesses antagónicos entre capitalistas e trabalhadores.
A referência [1] inclui também o seguinte texto do sociólogo Robert MacIver, incluído em The Web of Government, 1947 (tradução e esclarecimentos nossos):
«A direita é sempre o sector de partidos associados aos interesses das classes superiores ou dominantes, a esquerda o sector que exprime as classes de condições económicas ou sociais mais baixas, e o centro o [sector] das classes médias. Historicamente o critério parece aceitável. A direita conservadora tem defendido prerrogativas, privilégios e poderes entrincheirados; a esquerda tem-nos atacado. A direita tem sido mais favorável à posição aristocrática, à hierarquia de nascimento ou de riqueza; a esquerda tem lutado pela igualização de vantagens ou de oportunidades, pelas reivindicações dos mais desfavorecidos. Defesa e ataque [entre partidos] tiveram lugar, em condições democráticas, não em nome de classes mas em nome de princípios; mas os princípios opostos corresponderam em grande parte aos interesses das diferentes classes.»
O texto de MacIver parece, à primeira vista, fazer sentido. Por exemplo, é inteiramente verdade que a esquerda «tem lutado pela igualização de vantagens ou de oportunidades, pelas reivindicações dos mais desfavorecidos». Mas há outros aspectos do texto que levantam interrogações e objecções:
- A inserção da categoria «centro» a par das categorias «direita» e «esquerda»;
- O uso de critérios de rendimento («condições económicas […] mais baixas», «classes médias», «hierarquia […] de riqueza») para definir as classes;
- O uso de critérios sociais indefinidos («condições […] sociais mais baixas» ¾ será possível definir um estrato populacional de «condições económicas baixas» mas «sociais» não baixas? Por outras palavras, existe algum determinismo social que não passe pelo determinismo económico? Quanto à menção de «posição aristocrática, à hierarquia de nascimento» ela é descabida no sistema capitalista sem subsistências económicas e políticas de feudalismo);
- A vacilação entre o uso de «princípios» e «classes» («Defesa e ataque tiveram lugar, em condições democráticas, não em nome de classes [itálico nosso] mas em nome de princípios»; equivale a dizer que há princípios independentes das classes, isto é, fora do determinismo material, económico; trata-se, portanto, de uma posição idealista que pressupõe a existência de princípios ¾ etéreos? ¾fora das classes. Mas, logo a seguir ¾ e aqui está a vacilação ¾ diz que «mas os princípios opostos corresponderam em grande parte aos interesses das diferentes classes»; não diz «dependeram de» mas usa a expressão não causal «corresponderam», e isto só em «grande parte»…).
O texto de MacIver é exemplar quanto ao confusionismo que várias correntes intelectuais «modernaças» têm cultivado no tratamento de temas históricos, sociológicos e políticos. Nada de definições assentes em bases materiais, como é apanágio da ciência. Nada de rigor. Em vez disso, uma grande mistela pseudo-douta, onde se misturam conceitos mal definidos e de várias origens, sempre numa grande oscilação entre posições materialistas e idealistas.
Robert MacIver é aquilo que se chama um positivista ([3]). Segue uma (ou várias!) das versões modernas ([4]) da corrente filosófica do positivismo, criada por Auguste Comte (1798-1857). No final da Revolução Francesa a burguesia triunfante tinha necessidade, na consolidação do capitalismo, de criar uma justificação doutrinária do seu domínio. Para tal, havia que lançar o «racionalismo» às ortigas e tratar de criar uma concepção filosófica que casasse «materialismo» e «idealismo» (mesmo que incasáveis!) e, à luz dessa concepção justificasse a colaboração de classes (leia-se, submissão dos trabalhadores aos interesses do capitalismo) em prol da «unidade nacional» («unidade» de interesses dos trabalhadores e dos capitalistas).
Auguste Comte respondeu a essa necessidade: criou o «positivismo». Comte não nega que possa haver matéria, mas defende que todo o conhecimento é relativo, querendo com isso significar que a «essência» dos objectos («as coisas em si») está(ão) fora do conhecimento humano. A matéria só existe na medida em que actua nas sensações humanas (pode ser medida com réguas, vista com telescópios ou microscópios, etc.) Para dar um exemplo simples: para o positivista, se não existisse a humanidade com conhecimentos parciais e experimentais e sobre a Terra, esta poderia nem sequer existir. Cai assim numa posição idealista, contrária ao método científico, que advoga o primado do espírito sobre a matéria. Comte faz também uma interpretação idealista do processo histórico, considerando que é o desenvolvimento do espírito humano a causa da evolução material da sociedade e não o contrário; segundo esta abordagem idealista o capitalismo nasceu porque num belo dia, quando ainda só havia senhores feudais e servos da gleba, certas figuras de relevo começaram a pensar à capitalista e em como seria bom criar o capitalismo; não porque se tivessem desenvolvido na sociedade feudal as condições materiais (oficinas de artesãos, trocas comerciais, crescimento do comércio urbano, comércio e rapina com o exterior devido às navegações que contribuiu para a acumulação primitiva de capital, etc.) que tornaram possível transitar para esse novo estádio sócio-económico. Lenine expressa bem o significado do positivismo na filosofia quando diz que o mesmo é «[…] um agnosticismo que nega a necessidade objectiva da natureza que existe antes e à margem de todo o «conhecimento» e de todo o homem […] uma astúcia lamentável, um desprezável partido centrista na filosofia, que confunde em cada problema isolado a tendência materialista e a idealista». O idealismo do positivismo leva, em política, à rejeição de interesses materialmente antagónicos entre as classes e a pregar a «solidariedade social», isto é, a colaboração de classes. Não é por isso de admirar que ainda nos tempos actuais os grandes defensores teóricos do capitalismo sejam positivistas.
Também não é de admirar que MacIver diga que haja um «centro» entre a direita e a esquerda (pois se como positivista ele é centrista!) e use uma linguagem vacilante entre idealismo e materialismo, escondendo debaixo de uma roupagem de rendimento económico a definição de classes. Sob essa roupagem um trabalhador e um capitalista com o mesmo rendimento teriam os mesmos interesses.
Na realidade, desde tempos imemoriais, quando surgiram as sociedades de classes, que elas se distinguem não por critérios de rendimento mas por critérios de propriedade de meios de produção. Sociedades de escravos e senhores de escravos, de nobres e servos da gleba, de capitalistas (também denominados, historicamente, burgueses) e trabalhadores têm uma divisão social em comum: há os que possuem meios de produção (escravos, terra, artefactos, alfaias agrícolas, máquinas, etc.) e os que não os possuem e têm de «alugar» aos que possuem as suas faculdades manuais e mentais.
No capitalismo, portanto, a divisão principal entre direita e esquerda é a divisão entre Capital e Trabalho. É de direita quem defende os interesses do Capital. É de esquerda quem defende os interesses do Trabalho. Assim, no exemplo acima do trabalhador e do capitalista com o mesmo rendimento, a identidade de interesses que decorreria da exposição de MacIver não terá lugar: que o diga o trabalhador quando perde o emprego porque o capitalista não obtém o lucro desejado!
Incluímos acima a palavra «principal» porque esta é de facto a grande divisão. Contudo, a questão da determinação económica das classes a partir dessa divisão principal é mais complexa, tencionando nós abordá-la em futuro artigo. Para dar um exemplo: onde cabem nessa divisão os cidadãos que são ao mesmo tempo trabalhadores e capitalistas? Eles cabem, de facto, num centro. Mas não no «centro» de MacIver e dos positivistas: um centro estável, de interesses próprios e bem definidos, por um critério de rendimento (a «classe média» de rendimentos médios). É sempre um centro instável, porque na situação de crise do capitalismo (e tais crises são recorrentes) a divisão concreta, objectiva e material entre Capital e Trabalho impõe-se; que o digam os pequenos empresários insolventes, incapazes de fazer valer a sua propriedade de meios de produção, restando-lhes unicamente a capacidade de «alugar» as suas forças físicas e mentais.
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O conflito de interesses entre Capital e Trabalho é insanável. Em épocas de prosperidade do capitalismo, como durante a chamada época áurea nos países desenvolvidos do mundo ocidental (1946-1974), esse conflito de interesses pôde ser larvar: a classe capitalista, num quadro de elevadas taxas de lucro, conseguia satisfazer as principais reivindicações dos trabalhadores (o «Estado Social»). A aparência de «solidariedade social» era então manifesta. Mas nos países de capitalismo mais débil (como Portugal) e/ou em tempo de crise profunda como a actual, que além do mais é reveladora da decadência do capitalismo como sistema (ver nossos artigos anteriores, nomeadamente «A Esquerda parlamentar que temos») é a insanabilidade de interesses que se revela na sua plenitude: a insanabilidade de um sistema que não tem as necessidades sociais como bússola, mas sim a necessidade do lucro, lucro esse que provém da mais-valia extraída do trabalho; logo, do trabalho que não é pago. Insanabilidade que só se resolverá transcendendo o sistema capitalista; enveredando, portanto, por uma via socialista podendo, contudo, numa fase mais ou menos longa de transição, manter, em sectores não vitais da economia, formas de exploração capitalista.
Embora o conflito de interesses entre Capital e Trabalho seja objectivo, na expressão política desses interesses têm lugar imensos factores subjectivos.
Os capitalistas certamente não se enganam na escolha dos partidos que defendem os seus interesses.
Já quanto aos que vivem apenas do seu trabalho a questão é bem diferente. Na sociedade capitalista o condicionamento mental, fomentado por instituições e meios de comunicação, tem uma grande importância. Abundam os intelectuais à MacIver e os fazedores de opinião dedicados ao capitalismo. Os defensores, sorridentes e de barriga cheia, do status quo. Os que fazem da confusão de ideias profissão permanente. Os que usam e abusam de más experiências ditas de socialistas e que denominam erradamente, mas propositadamente, de comunistas. (Sim, houve más experiências de Estados de economia planificada, mas com sistema político ditatorial e totalitário. Experiências que rejeitamos e servem de aviso. Mas não houve só essas. Além disso, os que usam e abusam das referências a essas más experiências parecem ter a memória mais apagada no que se refere ao enormíssimo número de péssimas experiências do capitalismo.) Fazem-se sentir também factores como tradição, acomodação, falta de conhecimento, alienação e preconceitos. Em muitos casos o interesse em defender o Trabalho existe, mas falta a coragem intelectual: a coragem em reconhecer e admitir o que está correcto simplesmente porque isso choca com uma anterior e interior construção mental ([5]).
[1] A wikipédia (versão inglesa) tem uma boa explicação deste tema, embora com uma ou outra imprecisão de linguagem.
[2] Alain era o nome pelo qual era conhecido o filósofo, jornalista e pacifista francês Émile-Auguste Chartier.
[3] A wikipédia esclarece que Robert MacIver foi um continuador dos trabalhos de Durkheim e Max Weber, ambos influenciados por Auguste Comte (com algum colorido emprestado de Karl Marx).
[4] Hoje em dia: Estruturalismo, pós-modernismo, etc., etc.
[5] Como se sabe o homem/mulher não é só dotado de razão mas também de emoções, construídas à custa de experiências passadas.