domingo, 6 de janeiro de 2013

A Economia convencional: uma pseudociência (VIIb)


A hipótese dos mercados eficientes
 
Uma outra razão porque os economistas neoclássicos «não viram o que estava para acontecer» (ver n/ artigo anterior) é a sua aceitação cega da chamada «hipótese dos mercados eficientes». Esta «hipótese» é aplicada aos mercados bolsistas e, em termos gerais, advoga a crença de que estes mercados atribuem preços correctos às acções das empresas com base no seu (desconhecido) desempenho futuro.
Segundo Steve Keen a ideia dos mercados eficientes remonta ao economista Irving Fisher, que desenvolveu em 1907 uma teoria do dinheiro que explicava a valoração de activos financeiros. Na queda da Bolsa aquando da Grande Depressão americana, Fisher, que tinha aplicado a sua teoria na compra de acções, ficou na penúria.  Desenvolveu, então, uma nova teoria que explicava porque razão a especulação financeira tinha levado ao colapso da economia. Todavia, esta nova teoria foi rejeitada pelos economistas neoclássicos (não lhes convinha); em vez dela, continuaram a usar a teoria pré-Grande-Depressão de Fisher para sustentar como são determinados os preços de activos. Décadas mais tarde Hyman Minsky redescobriu a nova teoria de Fisher; pela mesma altura os economistas neoclássicos agarravam na teoria pré-Grande-Depressão de Fisher e transformavam-na na «hipótese dos mercados eficientes».
Mais tarde o economista William Sharpe (prémio Nobel em 1990) desenvolvia e formalizava a antiga teoria de Fisher no modelo matemático chamado «capital assets pricing model» (CAPM). Tal como a antiga teoria de Fisher o CAPM é de natureza microeconómica e assume que os mercados financeiros estão continuamente em equilíbrio. (Já vimos repetidamente as enormes limitações de considerar a macroeconomia uma simples extensão da microeconomia, bem como o irrealismo de considerar a economia como uma sucessão estados de equilíbrio.) No caso dos mercados bolsistas o modelo de eficiência assume as seguintes condições:

a) Todos os investidores têm expectativas idênticas e correctas sobre as perspectivas futuras de todas as empresas.
b) Todos os investidores têm o mesmo acesso a crédito ilimitado.
c) Os preços das acções reflectem toda a informação pertinente sobre as perspectivas futuras das empresas, informação essa que vai chegando de forma aleatória.

A teoria de Sharpe começa por assumir a figura do «investidor racional». Já vimos em artigos anteriores outros agentes «racionais», tão racionais quanto irrealistas: «consumidor racional», «trabalhador racional», etc.
Vejamos, então, o que é o «investidor racional». A ideia básica é que qualquer investidor tem em conta dois parâmetros: o rendimento e o risco. Acções que podem dar um grande rendimento (retorno) são de grande risco. Se um investidor não quer ter risco irá preferir, por exemplo, obrigações do Tesouro com uma taxa de juro baixa mas garantida. A forma como cada investidor lida com o equilíbrio entre rendimento e risco tem a ver com as suas preferências. Quanto ao rendimento, Sharpe (1964) usa a média do rendimento das acções de uma empresa para o caracterizar; média essa, calculada com a informação já recebida sobre rendimentos pretéritos das acções em causa. Quanto ao risco, Sharpe utiliza, para o caracterizar, o respectivo desvio padrão ([1]).
A figura 1 mostra as curvas de indiferença (de novo!) de um investidor relativamente a rendimento e risco. No caso do consumo de bens (ver Parte IIb) a «utilidade» crescia à medida que caminhávamos no gráfico para cima e para a direita. Agora, a situação é diferente visto que o risco não é uma coisa boa, mas sim má. Interessa-nos, portanto, caminhar no sentido de maior rendimento mas menor risco: para a direita e para baixo. No caso de consumo de bens traçávamos linhas de orçamento com vista a determinar pontos óptimos. Aqui a situação é diferente. Cada empresa, num dado instante, corresponde a um ponto no gráfico: o ponto que corresponde à media e desvio padrão dos rendimentos pretéritos das acções. Considerando um conjunto vasto de empresas (por exemplo, todas as que são cotadas na Bolsa), obtemos uma «nuvem» de pontos representada pela área a cinzento na figura 1. A orla desta nuvem é a linha designada por IOC: investment opportunity curve (curva de oportunidade de investimento). Sharpe mostrou que o investidor racional teria de escolher um ponto na IOC. Para as curvas de indiferença da figura 1 esse ponto é o ponto A.

Fig. 1

A teoria de Sharpe prossegue depois para a situação de uma carteira de investimentos, em que se combina um investimento de risco nulo (com baixo rendimento; p. ex., obrigações do Tesouro) com investimento em acções. A figura 2 ilustra esta situação. O investidor, se seguir as suas preferências, escolhe o ponto A como na figura 1; suponhamos que investe 1000€ com taxa de retorno de 5% e recolhe 50€. Se quiser o mais baixo risco possível escolhe o ponto P; suponhamos que investe 1000€ com taxa de retorno de 2% e recolhe 20€. Sharpe introduz aqui a condição (b) acima: «todos os investidores têm o mesmo acesso a crédito ilimitado». Então, o investidor que escolheu o ponto A, pode, por exemplo, pedir de empréstimo 1000€ à taxa mais baixa de 2% e investir nas acções de A; obtém um retorno total de 2´50€ a que tem de subtrair 20€. Tudo se passa como se a taxa de retorno fosse de (100 - 20)/2000 = 4% com um risco intermédio entre o de P e A. Isto é, este novo investidor estará a operar num outro ponto da recta que une P a A; digamos, o ponto B. Sharpe designou esta recta por «linha de mercado de capital».

 Fig. 2

Sharpe foi depois confrontado com a passagem de um investidor para muitos investidores: a passagem da microeconomia para a macroeconomia. Deparou, então, com enormes dificuldades, dado que para além de cada investidor ter curvas de indiferença diferentes, verá uma nuvem de empresas diferentes no plano risco-rendimento; logo, uma diferente IOC. As dificuldades só puderam ser ultrapassadas com a introdução da condição (a) acima: «todos os investidores têm expectativas idênticas e correctas sobre as perspectivas futuras de todas as empresas».
Portanto, para além do irrealismo do crédito ilimitado, condição imposta por Sharpe para ser possível a qualquer investidor operar em qualquer ponto da curva de mercado de capital, juntavam-se agora mais duas assunções irreais: todos os investidores têm as mesmas expectativas sobre as empresas; as expectativas de todos os investidores são correctas. Sharpe deu-se conta do irrealismo das assunções mas descartou a questão da mesma forma que já referimos em artigo anterior para Friedman: «É claro que estas assunções são altamente restritivas e sem dúvida alguma irrealistas. Porém, já que o teste adequado da teoria não é o irrealismo das assunções mas a aceitabilidade das suas implicações, e já que as assunções implicam condições de equilíbrio que constituem a maior parte da doutrina financeira clássica, não está claro que esta formulação deva ser rejeitada […]». Reparem na «científica» afirmação «não está claro que esta formulação deva ser rejeitada»: como construir uma ciência baseada em formulações que não sabemos se devem ou não ser rejeitadas?
Efectivamente, com as assunções irrealistas, Sharpe conseguia chegar onde queria: as variações das preferências dos investidores, juntamente com o crédito ilimitado e o mecanismo de mercado, levam a que uma dada carteira de investimentos aumente em preço, levando a baixar o preço de outras acções. O processo de alteração de preços altera os rendimentos e achata a IOC que se torna praticamente uma recta: atingiu-se o equilíbrio, a Meca dos neoclássicos.
Steve Keen aponta no seu livro que esta questão das assunções é apenas a ponta do icebergue. De facto há muitíssimos outros aspectos errados nesta teoria. Um exemplo flagrante: a questão do risco ser representado pelo desvio padrão. Um risco, para o investidor, corresponde a uma perda, o que não é o caso quando se usa o desvio padrão. Sejam dois investimentos: o primeiro, com média de retorno de 1% e desvio padrão 2%; o segundo, com média 9% e desvio padrão 4%. De acordo com a teoria de Sharpe o segundo investimento, com maior desvio padrão, é o de maior risco. Todavia, para distribuições idênticas dos rendimentos, o primeiro investimento tem obviamente uma maior probabilidade de ter um rendimento negativo do que o segundo (ver figura 3).
Sharpe estava consciente das limitações da teoria e expô-las claramente. Contudo, a teoria dos mercados eficientes continua a ser usada pelos neoclássicos apesar de se saber que está redondamente errada não só na teoria mas também na prática: os dados empíricos desmentem a teoria, e o desmentido mais recente e espectacular foi precisamente fornecido pelo crash bolsista em 2007-2008.

Fig. 3. Duas distribuições de rendimento. A de média 1% e desvio padrão 2% (barras azuis) tem muito mais alta probabilidade de ter valores negativos (somas das áreas das barras azuis na zona cinzenta) do que a distribuição de média 9% e desvio padrão 6% (com muito menor área total das barras vermelhas na zona cinzenta).

[1] O desvio padrão é uma medida de variabilidade. No caso presente do rendimento, o desvio padrão é calculado tendo em conta os quadrados das diferenças de cada valor do rendimento face à média. Quanto maior o desvio padrão, maior é a variabilidade, logo, na interpretação de Sharpe (não isenta de controvérsia), o risco.