quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A Economia convencional: uma pseudociência (VIId)

O «multiplicador de dinheiro»

Um aspecto a que se agarram os neoclássicos para explicar o papel irrelevante do débito nas crises é o do chamado «multiplicador de dinheiro». A ideia é a seguinte: o banco central emite moedas e notas e dá uma certa parte delas a um indivíduo; este, vai a um banco e deposita nele um certo montante de dinheiro, seja 100€; o banco guarda uma fracção deste dinheiro como reserva e empresta o resto a outro indivíduo; este outro deposita o dinheiro emprestado num banco e o processo repete-se.
Suponhamos que o banco guarda sempre uma reserva de 10% (a percentagem exacta depende de regulação do banco central) e que leva uma semana entre o banco obter um depósito e fazer um novo empréstimo. A tabela 1 mostra a evolução da situação. Num certo dia inicial (semana 0) o banco central «cria» 100€ disponibilizados por um certo banco; este guarda um depósito 100´0,1 = 10€. Na semana seguinte o banco empresta os 90€ disponíveis. O emprestador deposita estes 90€ num qualquer banco que guarda 90´0,1 = 9€ como reserva ficando com 81€ disponíveis. Na semana seguinte os 81€ emprestados levam a um depósito num qualquer banco que guarda 81´0,1 = 8,1€ como reserva ficando disponíveis para empréstimo 72,9€. O processo repete-se, e ao fim de 10 semanas já existe, com base nos 100€ iniciais, um total de 686,19 € de depósitos, de 586,19 de empréstimos e de 68,52€ de numerário guardado em bancos.
Ao fim de um número muito grande de semanas (na prática, bastam 74 semanas, quando o numerário guardado é inferior a um cêntimo), alcança-se a situação da última linha da tabela 1 ([1]): os 100€ criados pelo banco central originaram 1000€ de depósitos, ficando os bancos com 100€ de reservas. O factor multiplicador do dinheiro é o inverso da taxa de reserva, 1/0,1 = 10, que corresponde também à razão entre o total de depósitos face ao total de reservas: 1000/100.

Tabela 1
Semana
Depósitos
Empréstimos
Numerário guardado em bancos
Soma dos empréstimos
Soma de numerário
0
100
0
10
0
10
1
90
90
9
90
19
2
81
81
8,1
171
27
3
72,9
72,9
7,3
243,9
34,4
4
65,6
65,6
6,6
309,5
41,0
5
59,0
59,0
5,9
368,6
46,9
6
53,1
53,1
5,3
421,7
52,2
7
47,8
47,8
4,8
469,5
57,0
8
43,0
43,0
4,3
512,6
61,3
9
38,7
38,7
3,9
551,3
65,1
10
34,9
34,9
3,5
586,2
68,6
Total
686,19
586,19
68,62
586,19
68,62
Total Final
1000
900
100
900
100



Durante muitos anos este «multiplicador do dinheiro» foi aceite pelos economistas neoclássicos, nomeadamente por influência das teorias monetaristas de Friedman. Em 1970 o Conselho do Banco de Reserva Federal tentou conter a inflação através do controlo da taxa de crescimento da oferta de numerário. Verificou, então, que esta taxa de crescimento excedia frequentemente a taxa máxima definida pela Reserva Federal. Por exemplo, em 1977, a Reserva Federal tinha colocado como objectivo um crescimento na taxa de oferta de numerário entre 4,5% e 7,5%, mas a taxa real veio a ser de perto de 8%. Iniciou-se, então, um estudo empírico por vários economistas que veio demonstrar que o «multiplicador de dinheiro» era um mito. Em vez do nexo de causalidade que o modelo (e a tabela 1)  assumia ¾ depósitos criam reservas que criam empréstimos que criam depósitos ¾ o que se passava era o inverso. Em vez da ideia de que a causalidade fluía das reservas para os empréstimos, verificava-se que, pelo contrário, ela fluía dos empréstimos para as reservas: bancos com reservas para suportar empréstimos, disponibilizam novos empréstimos os quais criam simultaneamente novos depósitos. Isto gera a necessidade de novas reservas que a Reserva Federal satisfaz, caso contrário existiriam crises de crédito praticamente semanais. Isto não tem a ver com uma falta de ética dos banqueiros. No fundo, é o que acontece com as empresas que contraem empréstimos com base no que irão receber de vendas no futuro. Os bancos simplesmente acomodam-se à necessidade que as empresas têm de crédito, praticando empréstimos adicionais.
Esta questão prende-se directamente com a forma como a economia neoclássica encara o papel do dinheiro: para os neoclássicos a oferta de dinheiro é criada exogenamente, sob controlo dos governos. Contudo, como mostra o falhanço do modelo do «multiplicador do dinheiro» (e outras evidências descritas por Steve Keen no seu livro), a oferta de dinheiro é de facto criado endogenamente: é o próprio sistema de mercado capitalista que leva à criação de dinheiro. Na realidade, a criação endógena da oferta de dinheiro foi sempre defendida pelos economistas marxistas. Karl Marx dizia assim (O Capital, vol.III): «o crédito concedido por um banqueiro pode assumir várias formas […] , e finalmente, se o banco está autorizado a emitir notas [no tempo de Marx não eram só os bancos centrais que emitiam notas] – notas bancárias, do próprio banco. Uma nota bancária é apenas uma ordem de pagamento a satisfazer pelo banqueiro, pagável em qualquer altura ao portador, e concedida pelo banqueiro em vez de ordens de pagamento privadas. […] já que é visível aqui que o banqueiro lida com o próprio crédito, sendo uma nota bancária meramente um símbolo circulante de crédito», «a quantidade de notas em circulação é regulada pelos requisitos do volume de negócios e cada nota supérflua acaba por regressar ao seu emissor.». Em suma: o que impulsiona o empréstimo bancário não é a oferta de dinheiro, mas sim os requisitos da produção capitalista; é o crédito que cria os depósitos.
Por conseguinte, tentativas de usar o «multiplicador do dinheiro» como um mecanismo de controlo, como fez Ben Bernanke durante a Grande Recessão, estão condenadas a falhar. Não é um mecanismo de controlo mas sim uma simples medida do quociente entre o crédito em dinheiro concedido pelo sector bancário e a emissão de dinheiro pelo Governo. Injectar dinheiro nas reservas bancárias em vez de o encaminhar para as pequenas e médias empresas e o público em geral, é decididamente a política errada, como se demonstrou nos EUA (vários dados sobre isto no livro de Steve Keen). Note-se que é precisamente o mesmo erro que se está a cometer nos países vítimas de acordos com a troika, como Portugal.
Será que os neoclássicos desconhecem que a teoria do «multiplicador do dinheiro» está errada? Não, conhecem-na perfeitamente mas fazem por ignorá-la. É-lhes conveniente ignorá-la em prol dos serviços que prestam ao grande capital, nomeadamente ao capital financeiro representado pelos bancos privados.
De facto o problema do crédito exige considerar a evolução dinâmica do sistema capitalista e a possibilidade de instabilidades do sistema, conforme Steve Keen expões em capítulo do livro onde descreve porque razão ele (e alguns outros) viram o que estava para acontecer.
*   *   *
Terminamos aqui esta breve revisão do livro de Steve Keen, onde procurámos fazer uma síntese dos aspectos essenciais esclarecendo-os de uma forma mais simples, julgamos nós, do que a proporcionada pelo livro. Este, porém, contém uma quantidade enorme de matéria de grande interesse que aconselha a sua leitura atenta.
Vimos que a teoria neoclássica enferma de males irredutíveis, com particular ênfase nas análises macroeconómicas que são vistas como simples prolongamento das microeconómicas:
- A curva da procura de mercado pode ter qualquer forma (polinomial) e só em casos muito especiais terá a forma que os neoclássicos assumem: descendente.
- A curva da oferta de mercado, num mercado perfeitamente competitivo, não existe. Neste tipo de mercado, com as condições definidas pelos neoclássicos, a determinação do preço de mercado implica, tal como nos monopólios, a consideração de três curvas e não de duas.
- A regra da maximização do lucro dada pelo igualar da receita e oferta marginais não é, em geral, aplicável.
- Tal regra conduz a resultados completamente erróneos, não comprovados no mundo real, quer no mercado de trabalho quer no mercado de capitais.
- Ao contrário da abordagem neoclássica, em que a análise macroeconómica assenta numa visão estática de simples sucessões de estados de equilíbrio estáveis, a economia real exige considerar comportamentos dinâmicos (papel do factor tempo) e a possibilidade de equilíbrios instáveis.
- Esta visão fundamental dos neoclássicos leva-os a interpretações e análises erradas de vários temas, nomeadamente no que se refere à «hipótese dos mercados eficientes», ao comportamento dos mercados bolsistas e ao papel do crédito no sistema capitalista.

A economia convencional não é neutra, como se pronunciam os seus proponentes. É uma economia ao serviço do sistema capitalista. Steve Keen cita a seguinte frase de um economista neoclássico de nomeada (Paul Krugman): «A Economia é acerca do que fazem os indivíduos: não é acerca de classes, de «correlações de forças», mas de actores individuais. Com isto não se nega a relevância de níveis mais altos de análise, mas eles têm de ser ancorados no comportamento individual. Individualismo como método deve ser a essência.». O comentário de Steve Keen é o seguinte: «Não, não é. O individualismo como método é um dos principais defeitos da economia neoclássica […]» A isto, juntamos nós: pretender a inexistência de classes e a irrelevância de «correlações de forças» é precisamente o mote que interessa aos capitalistas, o mote que explica «cientificamente» e «matematicamente» o direito do capital explorar o trabalho.
Diz Steve Keen que na primeira edição do seu livro ainda acreditava na economia neoclássica como uma ciência com erros, mas que, entretanto, as reacções que tinha visto ao livro e o que tinha observado e estudado, o levavam agora à conclusão de que a economia neoclássica não era uma ciência, mas sim uma pré-ciência (digamos, como a física de Aristóteles, face à de Galileu e Newton). Quanto a nós, pensamos serem os fundamentos da Economia neoclássica tão irrealistas e sem sentido, as suas conclusões tão erróneas, que a designação de pseudo-ciência nos parece mais adequada (digamos, como a astrologia face à astronomia).
A questão que se coloca é: existem alternativas à economia neoclássica? Sim. Existem várias alternativas. Relativamente a determinados temas concretos, como o papel do crédito, existem actualmente sofisticados modelos matemáticos dinâmicos, que se apoiam em assunções realistas como a da luta de classes, capazes de fornecer resultados explicativos do que se passa no sistema capitalista. Já anteriormente, referimos o sucesso que está a ter a econofísica. Entre as teorias não-neoclássicas (ditas heterodoxas) há vários ramos do conhecimento que estão a ser desenvolvidos com um aporte explicativo não desprezável (economia comportamental, economia evolucionista, etc.). Existe também a teoria económica marxista que Steve Keen também aborda no seu livro apontando aspectos que ele considera positivos e negativos nesta teoria. (Já dissemos que Steve Keen é keynesiano; defende, portanto, pelo menos actualmente, a ideia de que o sistema capitalista é mau mas é reformável. Nós não subscrevemos esta «tese».) As alternativas à economia neoclássica estão, obviamente, fora do escopo destes artigos. Pensamos, contudo, vir no futuro a escrever algo sobre isto.

Quadro simplificado das Escolas económicas.
Atitude face ao capitalismo
Designação da Escola
e mote («…»)
Principais Autores
Vigência
Principais Fundamentos Doutrinários
(não aplicável)
Extintas, primórdios do capitalismo
Mercantilismo
Gerard de Malynes, T. Mun
Séc. XVI a XVIII
A riqueza das nações depende da acumulação de ouro e prata.
Fisiocratas
Fraçois Quesnay, A-R-J Turgot
Séc. XVIII, França
Só a agricultura gera mais-valia, logo é ela a fonte da riqueza.
O capitalismo é eterno.

Se o governo não intervier não existirão crises.
Clássica
«Deixem o capitalismo funcionar»
Adam Smith, T. Malthus, J. S. Mill, David Ricardo
1776 - ?
Total liberdade económica para a iniciativa privada, sem intervenção do Estado. Trabalho, capital e propriedade fundiária procuram benefícios próprios numa situação de equilíbrio de mercado.
Neoclássica

ou

Convencional
Ortodoxa

«O capitalismo é bom»
Alfred Marshall, Jeremy Bentham
1870 - ?
A procura de benefícios próprios baseia-se no utilitarismo. Trabalho e capital actuam independen-temente e «racionalmente». A produção óptima corresponde a igualar receita e custo marginais.
Neoliberal

«O grande capital financeiro é melhor»
M. Friedman,
F. Hayek
1950 - ?
Regresso a Adam Smith. O mercado resolve tudo e o capitalismo será estável se a oferta de dinheiro for estável.
O capitalismo é eterno.

Só se o governo intervier adequada-mente não existirão crises.
Keynesiana 1
«Salvemos o capitalismo»
J. M. Keynes,
R. Kahn
1936 - ?
O mercado nem sempre é estável. O governo deve intervir para assegurar a estabilidade e o emprego, quer através de investimentos no sector público quer através de taxas de juro que favoreçam investimentos.
O capitalismo não é eterno.

A luta dos trabalhadores determinará o seu fim.
Marxiana 2
«Ultrapas-semos o capitalismo logo que ele deixar de ter um papel progressivo»
Karl Marx,
Ernest Mandel,
Andrew Kliman
1876 - ?
A única fonte de mais-valia é o trabalho. Desta premissa decorrem contradições insanáveis do capitalismo reflectidas pela queda da taxa de lucro e a sobreprodução.
1 Existem várias correntes keynesianas. A post-keynesiana é praticamente indistinguível da neoliberal. Entroncam, geralmente, na corrente keynesiana certas abordagens recentes como a «economia ecológica ou verde», «economia evolucionária», «economia estrutural», «econofísica», etc. Algumas destas correntes parecem-nos ser puramente especulativas, como, por exemplo, a «economia feminista»!
2 Existem correntes algo divergentes da corrente marxiana «pura» que se reclamam de marxianas.
1 e 2 As correntes keynesiana radical (propugnando uma grande intervenção estatal) e marxiana são denominadas de «heterodoxas».

[1] O leitor com conhecimentos de matemática não terá dificuldade em apreciar que se trata aqui de somas de progressões geométricas. Por exemplo, o total final de depósitos, quando o numerário guardado é zero, corresponde a (100 – 0)/(1 – 0,9) = 1000.