O «multiplicador de dinheiro»
Um aspecto a que se agarram os neoclássicos para explicar o papel irrelevante do débito nas crises é o do chamado «multiplicador de dinheiro». A ideia é a seguinte: o banco central emite moedas e notas e dá uma certa parte delas a um indivíduo; este, vai a um banco e deposita nele um certo montante de dinheiro, seja 100€; o banco guarda uma fracção deste dinheiro como reserva e empresta o resto a outro indivíduo; este outro deposita o dinheiro emprestado num banco e o processo repete-se.
Suponhamos que o banco guarda sempre uma reserva de 10% (a percentagem exacta depende de regulação do banco central) e que leva uma semana entre o banco obter um depósito e fazer um novo empréstimo. A tabela 1 mostra a evolução da situação. Num certo dia inicial (semana 0) o banco central «cria» 100€ disponibilizados por um certo banco; este guarda um depósito 100´0,1 = 10€. Na semana seguinte o banco empresta os 90€ disponíveis. O emprestador deposita estes 90€ num qualquer banco que guarda 90´0,1 = 9€ como reserva ficando com 81€ disponíveis. Na semana seguinte os 81€ emprestados levam a um depósito num qualquer banco que guarda 81´0,1 = 8,1€ como reserva ficando disponíveis para empréstimo 72,9€. O processo repete-se, e ao fim de 10 semanas já existe, com base nos 100€ iniciais, um total de 686,19 € de depósitos, de 586,19 de empréstimos e de 68,52€ de numerário guardado em bancos.
Ao fim de um número muito grande de semanas (na prática, bastam 74 semanas, quando o numerário guardado é inferior a um cêntimo), alcança-se a situação da última linha da tabela 1 ([1]): os 100€ criados pelo banco central originaram 1000€ de depósitos, ficando os bancos com 100€ de reservas. O factor multiplicador do dinheiro é o inverso da taxa de reserva, 1/0,1 = 10, que corresponde também à razão entre o total de depósitos face ao total de reservas: 1000/100.
Tabela 1
Semana
|
Depósitos
|
Empréstimos
|
Numerário guardado em bancos
|
Soma dos empréstimos
|
Soma de numerário
|
0
|
100
|
0
|
10
|
0
|
10
|
1
|
90
|
90
|
9
|
90
|
19
|
2
|
81
|
81
|
8,1
|
171
|
27
|
3
|
72,9
|
72,9
|
7,3
|
243,9
|
34,4
|
4
|
65,6
|
65,6
|
6,6
|
309,5
|
41,0
|
5
|
59,0
|
59,0
|
5,9
|
368,6
|
46,9
|
6
|
53,1
|
53,1
|
5,3
|
421,7
|
52,2
|
7
|
47,8
|
47,8
|
4,8
|
469,5
|
57,0
|
8
|
43,0
|
43,0
|
4,3
|
512,6
|
61,3
|
9
|
38,7
|
38,7
|
3,9
|
551,3
|
65,1
|
10
|
34,9
|
34,9
|
3,5
|
586,2
|
68,6
|
Total
|
686,19
|
586,19
|
68,62
|
586,19
|
68,62
|
Total Final
|
1000
|
900
|
100
|
900
|
100
|
Durante muitos anos este «multiplicador do dinheiro» foi aceite pelos economistas neoclássicos, nomeadamente por influência das teorias monetaristas de Friedman. Em 1970 o Conselho do Banco de Reserva Federal tentou conter a inflação através do controlo da taxa de crescimento da oferta de numerário. Verificou, então, que esta taxa de crescimento excedia frequentemente a taxa máxima definida pela Reserva Federal. Por exemplo, em 1977, a Reserva Federal tinha colocado como objectivo um crescimento na taxa de oferta de numerário entre 4,5% e 7,5%, mas a taxa real veio a ser de perto de 8%. Iniciou-se, então, um estudo empírico por vários economistas que veio demonstrar que o «multiplicador de dinheiro» era um mito. Em vez do nexo de causalidade que o modelo (e a tabela 1) assumia ¾ depósitos criam reservas que criam empréstimos que criam depósitos ¾ o que se passava era o inverso. Em vez da ideia de que a causalidade fluía das reservas para os empréstimos, verificava-se que, pelo contrário, ela fluía dos empréstimos para as reservas: bancos com reservas para suportar empréstimos, disponibilizam novos empréstimos os quais criam simultaneamente novos depósitos. Isto gera a necessidade de novas reservas que a Reserva Federal satisfaz, caso contrário existiriam crises de crédito praticamente semanais. Isto não tem a ver com uma falta de ética dos banqueiros. No fundo, é o que acontece com as empresas que contraem empréstimos com base no que irão receber de vendas no futuro. Os bancos simplesmente acomodam-se à necessidade que as empresas têm de crédito, praticando empréstimos adicionais.
Esta questão prende-se directamente com a forma como a economia neoclássica encara o papel do dinheiro: para os neoclássicos a oferta de dinheiro é criada exogenamente, sob controlo dos governos. Contudo, como mostra o falhanço do modelo do «multiplicador do dinheiro» (e outras evidências descritas por Steve Keen no seu livro), a oferta de dinheiro é de facto criado endogenamente: é o próprio sistema de mercado capitalista que leva à criação de dinheiro. Na realidade, a criação endógena da oferta de dinheiro foi sempre defendida pelos economistas marxistas. Karl Marx dizia assim (O Capital, vol.III): «o crédito concedido por um banqueiro pode assumir várias formas […] , e finalmente, se o banco está autorizado a emitir notas [no tempo de Marx não eram só os bancos centrais que emitiam notas] – notas bancárias, do próprio banco. Uma nota bancária é apenas uma ordem de pagamento a satisfazer pelo banqueiro, pagável em qualquer altura ao portador, e concedida pelo banqueiro em vez de ordens de pagamento privadas. […] já que é visível aqui que o banqueiro lida com o próprio crédito, sendo uma nota bancária meramente um símbolo circulante de crédito», «a quantidade de notas em circulação é regulada pelos requisitos do volume de negócios e cada nota supérflua acaba por regressar ao seu emissor.». Em suma: o que impulsiona o empréstimo bancário não é a oferta de dinheiro, mas sim os requisitos da produção capitalista; é o crédito que cria os depósitos.
Por conseguinte, tentativas de usar o «multiplicador do dinheiro» como um mecanismo de controlo, como fez Ben Bernanke durante a Grande Recessão, estão condenadas a falhar. Não é um mecanismo de controlo mas sim uma simples medida do quociente entre o crédito em dinheiro concedido pelo sector bancário e a emissão de dinheiro pelo Governo. Injectar dinheiro nas reservas bancárias em vez de o encaminhar para as pequenas e médias empresas e o público em geral, é decididamente a política errada, como se demonstrou nos EUA (vários dados sobre isto no livro de Steve Keen). Note-se que é precisamente o mesmo erro que se está a cometer nos países vítimas de acordos com a troika, como Portugal.
Será que os neoclássicos desconhecem que a teoria do «multiplicador do dinheiro» está errada? Não, conhecem-na perfeitamente mas fazem por ignorá-la. É-lhes conveniente ignorá-la em prol dos serviços que prestam ao grande capital, nomeadamente ao capital financeiro representado pelos bancos privados.
De facto o problema do crédito exige considerar a evolução dinâmica do sistema capitalista e a possibilidade de instabilidades do sistema, conforme Steve Keen expões em capítulo do livro onde descreve porque razão ele (e alguns outros) viram o que estava para acontecer.
* * *
Terminamos aqui esta breve revisão do livro de Steve Keen, onde procurámos fazer uma síntese dos aspectos essenciais esclarecendo-os de uma forma mais simples, julgamos nós, do que a proporcionada pelo livro. Este, porém, contém uma quantidade enorme de matéria de grande interesse que aconselha a sua leitura atenta.
Vimos que a teoria neoclássica enferma de males irredutíveis, com particular ênfase nas análises macroeconómicas que são vistas como simples prolongamento das microeconómicas:
- A curva da procura de mercado pode ter qualquer forma (polinomial) e só em casos muito especiais terá a forma que os neoclássicos assumem: descendente.
- A curva da oferta de mercado, num mercado perfeitamente competitivo, não existe. Neste tipo de mercado, com as condições definidas pelos neoclássicos, a determinação do preço de mercado implica, tal como nos monopólios, a consideração de três curvas e não de duas.
- A regra da maximização do lucro dada pelo igualar da receita e oferta marginais não é, em geral, aplicável.
- Tal regra conduz a resultados completamente erróneos, não comprovados no mundo real, quer no mercado de trabalho quer no mercado de capitais.
- Ao contrário da abordagem neoclássica, em que a análise macroeconómica assenta numa visão estática de simples sucessões de estados de equilíbrio estáveis, a economia real exige considerar comportamentos dinâmicos (papel do factor tempo) e a possibilidade de equilíbrios instáveis.
- Esta visão fundamental dos neoclássicos leva-os a interpretações e análises erradas de vários temas, nomeadamente no que se refere à «hipótese dos mercados eficientes», ao comportamento dos mercados bolsistas e ao papel do crédito no sistema capitalista.
A economia convencional não é neutra, como se pronunciam os seus proponentes. É uma economia ao serviço do sistema capitalista. Steve Keen cita a seguinte frase de um economista neoclássico de nomeada (Paul Krugman): «A Economia é acerca do que fazem os indivíduos: não é acerca de classes, de «correlações de forças», mas de actores individuais. Com isto não se nega a relevância de níveis mais altos de análise, mas eles têm de ser ancorados no comportamento individual. Individualismo como método deve ser a essência.». O comentário de Steve Keen é o seguinte: «Não, não é. O individualismo como método é um dos principais defeitos da economia neoclássica […]» A isto, juntamos nós: pretender a inexistência de classes e a irrelevância de «correlações de forças» é precisamente o mote que interessa aos capitalistas, o mote que explica «cientificamente» e «matematicamente» o direito do capital explorar o trabalho.
Diz Steve Keen que na primeira edição do seu livro ainda acreditava na economia neoclássica como uma ciência com erros, mas que, entretanto, as reacções que tinha visto ao livro e o que tinha observado e estudado, o levavam agora à conclusão de que a economia neoclássica não era uma ciência, mas sim uma pré-ciência (digamos, como a física de Aristóteles, face à de Galileu e Newton). Quanto a nós, pensamos serem os fundamentos da Economia neoclássica tão irrealistas e sem sentido, as suas conclusões tão erróneas, que a designação de pseudo-ciência nos parece mais adequada (digamos, como a astrologia face à astronomia).
A questão que se coloca é: existem alternativas à economia neoclássica? Sim. Existem várias alternativas. Relativamente a determinados temas concretos, como o papel do crédito, existem actualmente sofisticados modelos matemáticos dinâmicos, que se apoiam em assunções realistas como a da luta de classes, capazes de fornecer resultados explicativos do que se passa no sistema capitalista. Já anteriormente, referimos o sucesso que está a ter a econofísica. Entre as teorias não-neoclássicas (ditas heterodoxas) há vários ramos do conhecimento que estão a ser desenvolvidos com um aporte explicativo não desprezável (economia comportamental, economia evolucionista, etc.). Existe também a teoria económica marxista que Steve Keen também aborda no seu livro apontando aspectos que ele considera positivos e negativos nesta teoria. (Já dissemos que Steve Keen é keynesiano; defende, portanto, pelo menos actualmente, a ideia de que o sistema capitalista é mau mas é reformável. Nós não subscrevemos esta «tese».) As alternativas à economia neoclássica estão, obviamente, fora do escopo destes artigos. Pensamos, contudo, vir no futuro a escrever algo sobre isto.
Quadro simplificado das Escolas económicas.
Quadro simplificado das Escolas económicas.
Atitude face ao capitalismo
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Designação da Escola
e mote («…»)
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Principais Autores
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Vigência
|
Principais Fundamentos Doutrinários
| |||
(não aplicável)
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Extintas, primórdios do capitalismo
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Mercantilismo
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Gerard de Malynes, T. Mun
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Séc. XVI a XVIII
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A riqueza das nações depende da acumulação de ouro e prata.
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Fisiocratas
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Fraçois Quesnay, A-R-J Turgot
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Séc. XVIII, França
|
Só a agricultura gera mais-valia, logo é ela a fonte da riqueza.
| ||||
O capitalismo é eterno.
Se o governo não intervier não existirão crises.
|
Clássica
|
«Deixem o capitalismo funcionar»
|
Adam Smith, T. Malthus, J. S. Mill, David Ricardo
|
1776 - ?
|
Total liberdade económica para a iniciativa privada, sem intervenção do Estado. Trabalho, capital e propriedade fundiária procuram benefícios próprios numa situação de equilíbrio de mercado.
| ||
Neoclássica
ou
Convencional
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Ortodoxa
«O capitalismo é bom»
|
Alfred Marshall, Jeremy Bentham
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1870 - ?
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A procura de benefícios próprios baseia-se no utilitarismo. Trabalho e capital actuam independen-temente e «racionalmente». A produção óptima corresponde a igualar receita e custo marginais.
| |||
Neoliberal
«O grande capital financeiro é melhor»
|
M. Friedman,
F. Hayek
|
1950 - ?
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Regresso a Adam Smith. O mercado resolve tudo e o capitalismo será estável se a oferta de dinheiro for estável.
| ||||
O capitalismo é eterno.
Só se o governo intervier adequada-mente não existirão crises.
|
Keynesiana 1
|
«Salvemos o capitalismo»
|
J. M. Keynes,
R. Kahn
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1936 - ?
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O mercado nem sempre é estável. O governo deve intervir para assegurar a estabilidade e o emprego, quer através de investimentos no sector público quer através de taxas de juro que favoreçam investimentos.
| ||
O capitalismo não é eterno.
A luta dos trabalhadores determinará o seu fim.
|
Marxiana 2
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«Ultrapas-semos o capitalismo logo que ele deixar de ter um papel progressivo»
|
Karl Marx,
Ernest Mandel,
Andrew Kliman
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1876 - ?
|
A única fonte de mais-valia é o trabalho. Desta premissa decorrem contradições insanáveis do capitalismo reflectidas pela queda da taxa de lucro e a sobreprodução.
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1 Existem várias correntes keynesianas. A post-keynesiana é praticamente indistinguível da neoliberal. Entroncam, geralmente, na corrente keynesiana certas abordagens recentes como a «economia ecológica ou verde», «economia evolucionária», «economia estrutural», «econofísica», etc. Algumas destas correntes parecem-nos ser puramente especulativas, como, por exemplo, a «economia feminista»!
2 Existem correntes algo divergentes da corrente marxiana «pura» que se reclamam de marxianas.
1 e 2 As correntes keynesiana radical (propugnando uma grande intervenção estatal) e marxiana são denominadas de «heterodoxas».
[1] O leitor com conhecimentos de matemática não terá dificuldade em apreciar que se trata aqui de somas de progressões geométricas. Por exemplo, o total final de depósitos, quando o numerário guardado é zero, corresponde a (100 – 0)/(1 – 0,9) = 1000.