domingo, 30 de setembro de 2012

A manifestação de Sábado e questões do momento

A grandiosa manifestação popular de ontem (Sábado, 29 de Setembro), que terá juntado mais de 300 mil pessoas no Terreiro do Paço (neste momento ainda não existem números definitivos), foi das mais grandiosas alguma vez registadas no país. Deu uma imagem muito clara do elevado nível de descontentamento de vastas camadas da população -- sobretudo dos trabalhadores que aí estiveram em peso, representando um grande número de sindicatos --, e da sua oposição frontal ao pacto de agressão governo-troika.
Aspectos da manifestação que merecem atenção e foram concordantemente noticiados: a participação pela primeira vez de muitos cidadãos e cidadãs; a participação activa de representantes das forças armadas e forças de segurança que, quando entrevistados, declararam sem peias estarem ao lado do povo; a participação de jovens desempregados ou com empregos precários.

Embora convocada pela CGTP-IN, à manifestação aderiram muitas organizações fora da CGTP (os sem emprego, os precários, polícias, GNRs, militares, etc.) e um mar de gente comum redundando numa manifestação que jornalistas e comentadores da RTP acertadamente caracterizaram de grande, popular e supra-partidária. Factos são factos.
De registar a posição oficial da UGT de não participação na manifestação. Isto é, a UGT demarcou-se desta grande manifestação do descontentamento popular. Cabe aos trabalhadores dos sindicatos da UGT tirarem as devidas conclusões.

É difícil prever quais as consequências práticas, a curto prazo, desta movimentação popular. Mas uma coisa é certa: começam a aparecer fissuras, discordâncias, expressões de nervosismo e também o cerrar de fileiras no bloco do grande capital que, a longo prazo, podem ser importantes. Neste capítulo, são de assinalar:
- Marcelo Rebelo de Sousa, ideólogo do PSD, em contraponto ao que tem dito Passos Coelho, veio defender uma remodelação ministerial para ter um governo com «ganho dinâmico» com «novas caras com maior credibilidade». Veio também ralhar com Paulo Portas que acusou de querer «tirar o corpinho» quando «percebeu o que se passava na rua»; isto é, de querer abandonar o barco demasiado cedo. Entretanto, lembrou que «não há como fugir à troika».
- O consultor do governo para as privatizações, António Borges, que já esteve no Banco de Portugal (já em anteriores artigos deste blog denunciámos a política perniciosa do BdP), na Goldman Sachs e agora é director do departamento europeu do FMI, perdeu as estribeiras numa entrevista na RTP, chamando «ignorantes» aos empresários que se manifestaram contra a TSU (Taxa Social Única) a pagar pelos trabalhadores. António Borges é um dos tais neoliberais puros e duros, que sabem tudo melhor que ninguém, excepto, é claro, essa coisa de prever quando e porquê ocorre uma crise económica, ou por que razão as medidas neoliberais não produzem os resultados que apregoavam. Doutores em tretas, cuja sapiência se resume a meia dúzia de dogmas que proferem de forma altaneira, patéticos e ridículos, mas sumamente perigosos. O Borges é um dos tais mais papistas que o papa. A troika diz que desconhecia a medida sobre a TSU; a avaliar pelo descontrolo do Borges foi ele o pai da ideia. Para que os trabalhadores portugueses saibam e não esqueçam. Entretanto o episódio reflecte a fissura entre os mais puros neoliberais, Gaspar-Borges-style, e muitos capitalistas que, por várias razões (principalmente ameaça de impostos, crédito difícil) se demarca desse rumo. Mostra também o nervosismo que começa a assaltar as fileiras neoliberais; revelado também pelas últimas entrevistas titubeantes de Vítor Gaspar.
- Dentro das fileiras do PSD revelam-se também muitas fissuras. Ferreira Leite e Marques Mendes lançam críticas. Noutro registo, foi agora a vez de António Capucho dizer que Borges perturba a estabilidade do governo com disparates. Uns pela estabilidade; outros contra a estabilidade.
- A Associação Portuguesa de Bancos, perante uma nova lei preparada pelo governo (texto final ainda desconhecido) que visa a prevenção de incumprimentos dos clientes (como, por exemplo, quando estes deixam de conseguir pagar hipotecas), manifestou-se contra, considerando-a de «inútil» e «inconveniente». Isto é, a APB, que devia estar agradecida ao governo, acha que até uma tímida lei pode ser contra os seus interesses. Quer continuar à rédea-solta, fazendo o seu business as usual, sem intervenções governamentais.
- Os comentários dos editorialistas do Diário Económico (representante dos interesses do grande capital), incensando Cavaco Silva como única figura capaz de «temperar a contestação social», mostram reservas contra impostos sobre juros de valores mobiliários (no fundo, a repetição da velha e bolorenta ideia de que se os ricos forem ricos algumas migalhas irão para os pobres). A petição do Diário Económico contra um novo aumento de impostos é também uma medida que, a coberto de fraseologia popular, tem como objectivo o cerrar de fileiras do grande capital.

Entretanto, as condições de vida em Portugal continuam a agravar-se. A última má notícia é a da Segurança Social estar em Setembro com um deficit estimado em 700 milhões de euros (dizem eles), enquanto em Março o governo previa um saldo positivo de 98,5 milhões de euros! Má notícia para pensionistas e para os que estão perto da reforma.
O governo responde às más notícias em estilo de fuga p'ra frente. Agora quer avançar com as privatizações da TAP e da CGD. O que restará quando privatizar tudo?
Impõe-se, portanto, o aumento e cerrar de fileiras do povo trabalhador, continuando e reforçando a pressão sobre os dignitários do grande capital, com novas lutas e novas formas de luta. Neste sentido, a greve geral que a CGTP está a preparar é uma óptima ideia. 

O PS continua a posicionar-se no sentido de aproveitar a onda de descontentamento popular para vir a ganhar as próximas eleições, formando um novo governo que não trará nada de novo num sentido substancial; isto é, num sentido que permita sair (digo, sair, e não atenuar e/ou mascarar) da espiral de esmagamento económico do povo trabalhador português. Se não, vejamos apenas estes dois apontamentos:
- Noticiava o jornal Sol, em 28 de Setembro (véspera da manifestação) que José Seguro -- o homem da abstenção violenta e construtiva quando deixou passar medidas gravosas do governo Passos Coelho, medidas que logo se via em que direcção apontavam – admitia que os sacrifícios não acabaram e abria a porta a Passos. O OE era para chumbar, mas isso não significava que os socialistas tinham cortado as ligações formais com o Governo (!) E acrescentava José Seguro jesuiticamente: «Um democrata jamais pode pôr fim ao diálogo político. O diálogo político é essencial em democracia»; «Mas o diálogo deve traduzir-se em melhorias concretas na vida dos portugueses. O Governo fala muito em diálogo, mas pratica pouco». O que significa isto? Duas coisas: 1 - José Seguro apoia, no fundamental, as medidas do governo de «sacrifício» para os trabalhadores; 2 - José Seguro, através do chumbo do OE e do «diálogo» com o governo, quer mostrar que está no «contra» mas, atenção, não um «contra» qualquer; é sim, um «contra construtivo», preparando a subida para o Poder com uma solução que poderemos designar de «evolução na continuidade», aproveitando a célebre frase do fascista Marcelo Caetano.
- Murteira Nabo, militante do PS e ministro das Obras Públicas em 1995 no governo de António Guterres, veio afirmar num artigo do Diário Económico, com o título sintomático «O interesse nacional» (simples má escolha de palavras num título que Salazar não desdenharia escrever?), que seria desejável um «consenso alargado a efectuar, pelo menos, entre o Governo, o PS e os Parceiros Sociais até à data de entrega do Orçamento de Estado para 2013…». Governo (PSD-CDS) + PS + UGT. Que tal? No fundo, Murteira defende a lógica do pacto com a troika mas com um cerrar de fileiras contra a esquerda, contra os trabalhadores: um entendimento do governo com o PS e UGT seria, segundo ele, remédio santo.

Ao PS (isto é, aos dirigentes do PS; todos eles, incluindo Manuel Alegre) interessa continuar o esquema da alternância no Poder (ver n/ artigo «Ora agora danças tu»). Desde o 25 de Novembro de 1975 que o PS representa o esmagamento das aspirações populares mais progressistas, ao serviço do capital. Representa uma gigantesca máquina de enganar os trabalhadores com a palavra «socialismo». Representa, tal como os outros partidos de direita PSD e CDS, uma gigantesca máquina de aproveitar o Poder para dar tachos aos amigos e mostrar folhas de serviço aos capitalistas de forma a obter lugares para os governamentais como administradores e gestores de empresas.

O PSD e CDS são partidos de direita, nas palavras e nos actos. Nunca se afirmaram como de esquerda.
O PS é um partido de direita nos actos (e em muitas palavras), que se afirma de esquerda em (algumas) palavras. O PS é uma fraude.

Um futuro governo PS não modificará substancialmente em nada a política neoliberal e o pacto com a troika; manterá a lógica de direita, a submissão ignominiosa ao grande capital que o PS tem representado desde o 25 de Novembro de 1975 e que a História registará; representará a alternância da direita no Poder, representará mais do mesmo, representará a derrota do movimento popular.

Para os trabalhadores e cidadãos progressistas do PS, que querem romper com este círculo vicioso da direita no Poder, abrem-se, a nosso ver, apenas três perspectivas: ou a alteração completa do PS de alto a baixo, arredando os seus dirigentes (esta perspectiva parece-nos improvável ou mesmo utópica), ou a migração para partidos consequentes de esquerda (partidos em que os actos sejam consentâneos com as palavras), ou ainda a formação de um novo partido de esquerda.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A Economia convencional: uma pseudociência (IIa)

IIa. A curva da procura de mercado
Continuando a acompanhar o livro de Steve Keen (ver parte I neste blog) vamos, no presente texto, iniciar a análise da questão da curva da procura de mercado.
Como preâmbulo, convém assinalar que na visão neoclássica da Economia ¾ aquela que é ensinada nas universidade e nas escolas superiores ¾ a sociedade é um conjunto de indivíduos que actuam mais ou menos isolados e que, enquanto consumidores procuram maximizar a sua satisfação pessoal, enquanto produtores procuram maximizar o lucro. Na visão neoclássica não existem classes sociais antagónicas. Não existe inclusive sociedade, entendendo-se por tal algo articulado que está para além da simples soma de indivíduos (Margaret Thatcher: «There is no such thing as society» = «Não existe tal coisa chamada sociedade»); existe apenas um mero conjunto de indivíduos perseguindo objectivos puramente egoístas de maximização da satisfação pessoal.
Alguns economistas neoclássicos admitem a existência de aspectos mais subtis na sociedade, mas acham que o comportamento económico individual (microeconómico) é melhor tratado considerando os indivíduos como puros egoístas; acham ainda que o comportamento colectivo, em particular ao nível de um país (macroeconómico), pode ser derivado da simples soma (ou quase) dos comportamentos individuais.
Vejamos, então, como é colocada a questão da procura de mercado, que está no cerne da muito divulgada noção do equilíbrio em torno da oferta e da procura; da ideia vulgarizada da «lei da oferta e da procura». A figura 1 mostra duas curvas relacionando a quantidade de café em kilos com o preço por kilo num dado mercado: a curva da procura (1) e a curva da oferta (2).
Estas são curvas como os economistas neoclássicos as imaginam: a) A curva da procura de um determinado bem (curva 1, respeitante ao café) é sempre descendente, como na figura 1; a ideia subjacente é a de que se o preço de um determinado bem aumenta a sua procura diminui, já que os consumidores tenderão a consumir menos e/ou substituir esse bem por outro de mais baixo preço (por exemplo, chá ou cevada torrada). b) A curva da oferta (curva 2) é sempre ascendente, como na figura 1; a ideia subjacente é a de que se o preço aumenta haverá maior incentivo dos produtores para produzir mais.

Fig. 1

Vemos que as curvas se intersectam no ponto que corresponde a 10 € por kilo. Suponhamos que por qualquer razão (talvez um rumor de que ia faltar o café) num dado momento o preço do mercado subia para 18 €/kg. Então, por este preço, só existirá uma procura (média por pessoa consumidora no mercado) de 0,6 kg, enquanto a oferta por este preço é de 1,6 kg. O excedente da oferta sobre a procura irá levar a baixar o preço até não haver excedente: até se atingir o ponto de intersecção, 10 € por kg. A convergência para o ponto de intersecção far-se-ia por ajustes sucessivos como se ilustra com a curva a ponteado. De forma semelhante, se por qualquer razão o preço baixasse para 6 € por kg, o excedente da procura relativamente à oferta iria fazer subir o preço até extinguir tal excedente. O ponto de intersecção é, portanto, um ponto de equilíbrio. Esta é uma das exemplificações dos equilíbrios que estudam os economistas neoclássicos.
Parece tudo lógico, não é? Bom, há dois aspectos que ficaram obscuros. 1.º Aspecto: dissemos «como os economistas neoclássicos as imaginam»; resta saber se esta «imaginação» é correcta ou não. 2.º Aspecto: a figura 1 mostra possíveis curvas quando um dado bem é considerado isoladamente; será que quando temos mais de um bem em jogo ainda temos o mesmo tipo de curvas?
A questão essencial aqui é que, se as curvas não forem como na figura 1, podemos ter situações arbitrariamente complicadas. Reparemos na figura 2 que mostra curvas hipotéticas para um dado bem. Quanto à curva da oferta continua ascendente como no exemplo anterior. Deixaremos a questão da oferta para depois da análise da procura. Quanto à curva da procura, ela deixou de ser uma curva simplesmente ascendente e passou a mostrar sinuosidades. Se, num dado momento o preço do mercado se afastar do valor que tem no ponto A para passar a ter o valor p1, como a quantidade de oferta é maior que a da procura, verifica-se uma convergência para A. Se o preço for p2, pelas razões já apontadas a convergência é para B. Finalmente, em certas situações, como quando o preço é p3, a convergência pode ser para C ou para A, tudo depende de uma pequena variação em torno de p3! Isto é, a situação complicou-se dramaticamente: passámos a ter três pontos de equilíbrio e possíveis situações de instabilidade (uma pequena variação em torno de p3 implica em dois valores distintos da procura e pode levar à convergência para A ou para C; instável também, para um preço no «vale» entre C e B).

Fig. 2

Mas será que a curva da procura de mercado poderá ser tão complicada como na figura 2, ou os neoclássicos podem perfeitamente considerar tal situação como uma raríssima excepção e tomar a curva de mercado do tipo da figura 1 como a regra?
Veremos num próximo artigo que, de facto, é a curva da procura de mercado da figura 1 que é altamente excepcional; facto esse, que figuras destacadas da Economia neoclássica procuram esconder.

A Economia convencional: uma pseudociência (I)

I. Introdução
Com este estudo iniciamos um périplo por alguns temas de economia, usando como guia o excelente livro do economista Steve Keen, Professor de economia e finanças da Universidade de Western Sidney, Austrália: Debunking Economics - The Naked Emperor Dethroned? (edição de 2011 da ZED Books), literalmente: Tirando a Economia do Pedestal – O Imperador Nu Destronado? A ideia do «Imperador Nu» está ligada à história muito conhecida de «o Rei vai nu».
O livro de Steve Keen é um dos tais que deveria ser traduzido em português e aparecer nas nossas livrarias, a contrabalançar os 95% de lixo que as inundam.
Os créditos de Steve Keen são firmes. Foi, nomeadamente o vencedor de um prémio da Real Economics Review por ter previsto a crise financeira mundial de 2008-09, prémio esse que ganhou em competição contra economistas ortodoxos muito mediáticos.
Steve Keen é keynesiano, embora dê também algum crédito a contribuições de Karl Marx. Os economistas keynesianos e marxistas (de facto, devia dizer-se marxianos) fazem parte da corrente dita heterodoxa da Economia. Steve Keen diz no seu livro que deverão representar cerca de 15% de todos os economistas.
A Economia convencional, ou ortodoxa, é a Economia neoclássica (também dita da «corrente dominante»). É aquela que é ensinada nas Universidades e praticada nos países capitalistas. É aquela de que são porta-vozes os comentadores dos media que nos enchem constantemente os ouvidos com as suas perorações. Um rebento da Economia neoclássica é a Economia neoliberal.

Já comentámos, no nosso estudo sobre a crise do euro, a dificuldade que revelaram as maiores luminárias da economia neoclássica em prever e caracterizar a crise imobiliária dos EUA e a crise do euro. Steve Keen descreve este aspecto com algum detalhe, referindo a famosa cena da rainha de Inglaterra que numa sessão com professores da Escola de Economia de Londres perguntou: Why did nobody notice it? (literalmente: Porque é que ninguém notou isso [a eclosão da crise]?). A resposta que deram os embatucados professores foi a de que «ninguém poderia ter visto que tal ia acontecer». Os professores estavam a mentir. De facto, vários economistas das mais diversas correntes tinham previsto a crise, só que as suas previsões foram arredadas (e até perseguidas) pelos neoclássicos dominantes.
A Economia convencional (neoclássica) remonta nas suas origens às doutrinas clássicas de Adam Smith e David Ricardo (que Marx criticou e reelaborou), doutrinas essas que defendiam o liberalismo económico (não à intervenção do Estado), bem como às doutrinas do utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Vários economistas dos fins do séc. XIX e princípios do séc. XX (Alfred Marshall, John Hicks, John Stigler, etc.) deram uma roupagem formal, matemática, a essas doutrinas tendo assim construído a escola neoclássica.
A Matemática é, certamente, uma boa coisa. Marx tinha em alto conceito a Matemática. Dedicou-se ao seu estudo e era de opinião que uma ciência não estava realmente desenvolvida enquanto não tivesse aprendido a fazer uso da Matemática ([1]). Contudo, em todas as áreas do conhecimento, incluindo a Economia, é perfeitamente possível desenvolver toda uma teoria matemática inteiramente correcta mas completamente falsa, isto é, inaplicável na sua transposição para o mundo material ([2]). Este é um dos problemas de que enferma a Economia neoclássica. O problema da validade das assunções. Mas há, outros, como veremos; inclusive, o problema de aplicação incorrecta da Matemática!
Diz Steve Keen no seu livro que, quando escreveu a primeira edição do livro, esperava que o falhanço da Economia neoclássica em prever uma próxima crise levaria a uma reconsideração da Teoria. Infelizmente, isso não aconteceu. Os mentores da Economia neoclássica reagiram como se nada tivesse acontecido. Ben Bernanke, Presidente do Banco de Reserva Federal dos EUA, disse isto em 2010: «a recente crise financeira foi mais uma falência da engenharia económica [!] e da gestão económica do que chamei de ciência económica». Steve Keen comenta: «A crença de Bernanke não podia estar mais afastada da verdade: como meio de compreender o comportamento de uma economia de mercado complexa, a chamada ciência da economia é uma mistura de mitos que fazem comparativamente parecer a antiga visão ptolomaica do sistema solar centrado na Terra mais sofisticada. O que esta opinião revela é a sua [de Bernanke] incapacidade de pensar sobre economia de qualquer outra forma que não seja a neoclássica na qual foi treinado – uma incapacidade que partilha com a maioria dos seus colegas.»
Diz ainda: «Eles [os economistas neoclássicos] rejeitam de imediato qualquer sugestão de motivação ideológica. Dizem que são cientistas, não activistas políticos. Eles recomendam soluções de mercado, não por serem pessoalmente pró-capitalistas, mas porque a teoria económica provou que o mercado é o melhor mecanismo para determinar soluções económicas [sobre isto, ver o nosso estudo «A Grande Mentira da 'Economia de Mercado'»]. Todavia, virtualmente tudo que recomendam redundou pelo menos em favorecer os ricos contra os pobres, os capitalistas contra os trabalhadores, os privilegiados contra os destituídos [coincidências!].»
Steve Keen descreve também como os economistas que não partilham os pontos de vista neoclássicos, os economistas heterodoxos, são rejeitados pelos meios académicos ou colocados a fazer «serviços menores», e os artigos que submetem a revistas da especialidade rejeitados liminarmente (muitas vezes sem irem para os revisores). Inclusive por revistas que, no passado, tinham abertura (e até secções específicas) para estudos fora do âmbito neoclássico. Trata-se de uma autêntica purga de dissidentes (no «mundo livre» com «liberdade de expressão») que atinge quer académicos quer os profissionais não académicos. É, assim, notável, que ainda subsistam 15% de irredutíveis.
De vez em quando, até os neoclássicos têm um rebate de consciência. Dois exemplos:
1 – Nouriel Roubini é uma das luminárias da Economia neoclássica. Foi economista do FMI, da Reserva Federal, do Banco Mundial e do Banco de Israel. No artigo de 15 de Agosto de 2011 do seu blog (http://www.economonitor.com/nouriel/2011/08/15/is-capitalism-doomed/), com o título «Tem o capitalismo os dias contados?», diz isto: «Assim Karl Marx, parece, tinha parcialmente razão ao  argumentar que a globalização, a intermediação financeira corriam à rédea solta, e a redistribuição de rendimento e riqueza do trabalho para o capital podia levar à auto-destruição do capitalismo (embora a sua visão que o socialismo era melhor provou ser errada). As firmas estão a cortar no emprego porque não há suficiente procura final. Mas cortar no emprego reduz o rendimento do trabalho, aumenta a desigualdade e reduz a procura final.» [tradução e ênfase nossos]. (Note-se que a visão que Roubini tem do que disse Marx sobre as crises do capitalismo está longe de ser inteiramente correcta.)
2 - George Magnus, economista sénior do UBS, o maior banco de investimento suíço (Agosto de 2011), num relatório aos clientes (The convulsions of political econom) começou (imagine-se!) por citar o prefácio de Marx à Contribuição para a Crítica da Economia Política (de 1859) passando à explicação marxista das crises do capitalismo. Diz entre outras coisas: «a análise económica tradicional leva a prescrições tradicionais de políticas económicas que são inúteis e inapropriadas». Numa carta ao Financial Times, disse ainda que a razão da relevância actual de Marx é precisamente porque «estamos numa crise do capitalismo de uma-vez-numa geração, despoletada por uma queda financeira… Marx analisou e explicou com perspicácia como e porquê o capitalismo iria ser vitimado por crises recorrentes, e especialmente grandes crises depois de uma ruína do crédito.»
No próximo artigo começaremos a justificar a nossa afirmação de «pseudociência». Veremos, concretamente que a curva da procura de mercado, tal como os economistas neoclássicos a imaginam, tem muito pouco a ver com a realidade e assenta em pressupostos que estão matematicamente errados.

[1] Paul Lafargue. Reminiscences of Marx (September 1890).
[2] O mesmo acontece noutros ramos do saber. Na Física abundam os exemplos de teorias matematicamente consistentes mas que tiveram de ser abandonadas dado partirem de falsas premissas e/ou não produzirem os resultados objectivamente (materialmente) observados.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Por enquanto, Passos-Gaspar, 1 – Povo, 0

Aqueles que chegam agora às lutas populares irão dar-se conta que a luta por objectivos profundos (não objectivos reivindicativos pontuais) -- neste caso a derrota da lógica neoliberal implementada no pacto com a troika e que está a destruir o país arruinando a vida dos trabalhadores --, é difícil; não tem sucessos rápidos e exige a continuação perseverante de uma pressão firme e crescente, envolvendo passo a passo formas de luta superiores.
Não tenhamos ilusões sobre as últimas manifestações e a concentração junto ao Conselho de Estado. O governo Passos Coelho continua firme e sólido na tarefa de servir o grande capital à custa do povo trabalhador.
Disse Carvalho da Silva (JN, 25/9/2012), figura que nos merece toda a consideração pelo seu passado em defesa dos direitos dos trabalhadores: «Para já, anular o aumento da TSU foi uma derrota das políticas do actual Governo.» Não foi uma derrota. Foi apenas uma manobra táctica para enganar o povo. O governo substituiu a medida sobre a TSU por medidas igualmente (se não mais) gravosas: aumento do IRS, já a partir de Janeiro do próximo ano, afectando mais de dois milhões de portugueses!. Isto numa altura em que um estudo de uma entidade estrangeira (Mercer: European Survey on Employee) revelava que os salários em termos absolutos (isto é, ainda sem entrar em conta com a inflação) em Portugal baixaram em 2012, pela primeira vez em 14 anos!
PSD e CDS continuam firmes na imposição de austeridade, no pacto de agressão ao povo português. O CDS, depois de uma hesitação crítica «para povo ver», diz agora ser «compreensível» mais impostos. Nenhumas medidas foram, como era de esperar, tomadas contra o grande capital. Austeridade apenas para os trabalhadores (e alguns estratos da pequeno-burguesia).
Entretanto o deficit orçamental está na ordem dos 6% (dizem). A meta inicial era de 4,5% mas a troika (quem é amigo, quem é?) aumentou-a para 5%. Todos os indicadores apontam que a austeridade não está a funcionar. De facto, como já dissemos em estudos anteriores, a austeridade leva inevitavelmente a círculos viciosos (do tipo aumento de juro à baixa de rendimento à aumento de juro) que agravam o problema em vez de o resolver, hipotecando o futuro do país. Tal como na Grécia. Tal como noutros países no passado, que acabaram por levar ao incumprimento das dívidas (e em alguns a expulsão definitiva do FMI). A austeridade funciona tal e qual como nos filmes de gangsters, em que alguém é apanhado pela máfia de empréstimo de dinheiro a juros incomportáveis que amarram a vítima a extorsão permanente pela rede mafiosa. Neste caso, em termos simples, a austeridade é isto: um tapete rolante de extorsão de rendimentos dos trabalhadores, dos 90% da população, para depositar nos bolsos do grande capital nacional e estrangeiro. Para que o grande capital seja «indemnizado» da perda de lucros nos sectores produtivos e possa continuar a jogar na especulação financeira.
A concentração de protesto junto ao palácio de Belém, aquando da reunião do Conselho de Estado, foi imponente e deveria ser continuada no futuro. Contudo, parece-nos que é necessário mais do que isso. É necessário exigir repetida e veementemente a alteração da composição do Conselho de Estado; e, portanto, da lei que o institui. Já em tempos recuados da monarquia existiam conselhos de estado; eram compostos por feudais que no essencial estavam todos de acordo entre si e com o rei. Eram, em geral, uma forma de o rei se libertar perante o povo do odioso das posições que tomava. Chegámos ao século XXI e aqui, em Portugal, a ideia-base permanece essencialmente a mesma: o Conselho de Estado é uma forma de Cavaco Silva, perante o povo português, poder lavar as mãos como Pilatos. Se não, vejamos. O Conselho de Estado é constituído por membros que o são por inerência dos cargos que desempenham ou que ocuparam e por membros designados pelo Presidente da República e eleitos pela Assembleia da República. A composição actual (portal da presidência da República) é a seguinte:

M. Assunção Esteves (Pr AR)                  PSD
P. Passos Coelho (PM)                              PSD
R. Moura Ramos (juiz, Pr TC)                  ?
A. José de Sousa (juiz, Prov J)                  ?
C. V. César (Pr. GR Açores)                    PS
A. João Jardim (Pr. GR Madeira)             PSD
A. Ramalho Eanes                                    PRD (
»PS)
Mário Soares                                             PS
Jorge Sampaio                                           PS
João Lobo Antunes                                   ?
Marcelo Rebelo de Sousa                                     PSD
Maria Leonor Beleza                                 PSD
Vítor A Brinquete Bento                          »PSD-CDS
A. Bagão Félix                                          CDS
Francisco Pinto Balsemão                         PSD
António José M Seguro                            PS
Luís Marques Mendes                               PSD
Manuel Alegre                                          PS
Luís Filipe Menezes                                  PSD

De 19 membros, 9 são do PSD-CDS e 5 são do PS. Daqueles de que não se sabe a filiação, um pelo menos (Ramalho Eanes), deverá andar próximo do PS. Outro, Vítor Brinquete, substituiu Dias Loureiro (implicado no caso BPN) e quase de certeza é da área do PSD-CDS. Em suma, temos 10 membros (maioria) PSD-CDS, 6 do PS respeitável (com o amigo do Carlucci-CIA, Mário Soares, e o comedidíssimo Sampaio), dois respeitáveis juízes e um respeitável cientista. Onde está o povo trabalhador, que não o vejo? Onde está a esquerda consequente? Para que consulta o PR o Conselho de Estado? Aventamos duas hipóteses que podem funcionar separadamente ou em conjunto: 1 – Para se ouvir a si mesmo, isto é, à maneira dos reis, para legitimar as posições que de antemão já tomou; 2 – Para obter dos conselheiros novas pistas, novas ideias, de como prosseguir na rota de enganar o povo português.
É urgente colocar a exigência de alteração total do Conselho de Estado. A actual farsa excessiva do Conselho de Estado deve acabar. O actual Conselho de Estado é um Conselho dos ricos, do grande capital.
De que estão à espera os partidos de esquerda, PCP e BE, para colocar esta exigência?

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Por uma solução de esquerda da crise portuguesa

A crise do euro em Portugal foi por nós apreciada em estudo anterior (ver neste blog «A Crise do Euro»). Os media têm-se esforçado por difundir o mito de que os culpados da crise foram todos os portugueses devido ao consumismo e à «empresa Estado» (serviços públicos) como lhe chama Medina Carreira. É esta a tese que interessa aos grandes capitalistas divulgar ad nauseam. Vimos, entretanto, que o único culpado da crise é o grande capital e seus serventuários (políticos e técnicos), com especial destaque para os capitalistas ligados à banca.
Comecemos por sumariar, completando, as causas da crise que apontámos no citado estudo, causas essas que justificam a nossa afirmação de que o único culpado da crise é o grande capital:
1                    Perdas avultadas dos bancos devido à especulação financeira, perdas essa directa ou indirectamente resgatadas (pagas) pelo governo
- Caso BPN: 1,8 biliões (*) de euros de dívida segundo estimativa de 2011; em Setembro de 2012 o governo ainda não sabia a parcela do empréstimo a conceder ao BPN pelo orçamento de Estado.
- Casos BCP: governo Passos Coelho anunciou em Junho um resgate (eufemisticamente denominado recapitalização) com dinheiros europeus: 1,65 biliões de euros para a CGD, 3,5 biliões de euros para o BCP e 1,5 biliões de euros para o BPI. Total: 6,65 biliões de euros.
Entretanto, a banca continua alegre e impunemente a especular. Em Dezembro de 2011 o índice de alavancagem da banca portuguesa era superior a valores homólogos de todos os anos anteriores: 19,8. Isto é, os capitais próprios da banca representavam apenas 5,1% dos activos. O volume de transacções em derivativos representou em 2011 162% do PIB (277,5 biliões de euros).
2                    Especulação do BCE
Quando o BCE entrega resgates a Portugal está no fundo a financiar a banca para continuar impunemente no seu jogo especulativo. De facto, enquanto a banca tem praticado uma taxa de juro de 6,87% a 5,5%, entre 2008 e 2010, o BCE pratica uma taxa de juro de 1% na compra de títulos de dívida aos bancos. No período de 2008 a 2010 o total de lucros da banca obtidos por este processo foi de 3,8 biliões de euros. Atenção: estes 3,8 biliões de euros são pagos pelos contribuintes dado que têm que pagar as medidas de austeridade por forma ao BCE emprestar aos bancos.
3                    Destruição do Sector Produtivo
De 1997 a 2010 o Valor Acrescentado Bruto do sector produtivo desceu 9%, ou seja 3,6 biliões de euros. Embora se possa assacar parte desta descida a causas exógenas (por exemplo, crise nos países para os quais exportamos), grande parte deste montante deve-se também às fugas de capitais do sector produtivo, como referimos no ponto seguinte.

4                    Entrega (privatizações) de empresas produtivas ao capital estrangeiro

As privatizações de mão beijada (praticamente os serventuários políticos pagam com fundos públicos para que o capital estrangeiro fique com as empresas) têm sido um escândalo sistemático em Portugal. Há capital português que lucra com estes conluios. A acrescentar a isso existem as falências fraudulentas e a transferência de capitais para o sector financeiro e para offshores. Resultado: as transferências de fundos para pagar juros e lucros no estrangeiro foram em 2009 de 16 biliões de euros; no período de 2004 a 2009 o total de transferências ascende a 95,47 biliões de euros ([1]).

5                    Parcerias público-privadas (PPP)

Em 2008 estimava-se um peso das PPPs na despesa pública da ordem de 50 biliões de euros pagos escalonadamente pelos orçamentos de Estado até 2050.
6                    Evasão e fraude fiscal (**)
- Em 2009 e 2010 a banca portuguesa não pagou 491 milhões de euros de impostos (correspondendo a cerca de 12% dos lucros).
- O total de evasão no IVA entre 2008 e 2010 é estimado em 6,1 biliões de euros ([2]). A perda de receita fiscal devido a benefícios fiscais atingia 2,5 biliões de euros em 2010 e 15,6 biliões de euros período 2005-2010.
A fraude e evasão fiscal do grande capital disparou em Portugal com a crise. Ainda no passado 18 de Maio era noticiado o desmantelamento, pelo DCIAP, de uma rede de evasão fiscal que gerou uma fraude de um bilião de euros Em causa uma empresa suíça cujos três sócios foram detidos por serem suspeitos de ajudar portugueses em práticas de evasão fiscal e branqueamento de capitais (entre eles Duarte Lima (***)).

Se somarmos os montantes acima indicados, obtemos:

                        Montantes em biliões de euros
Rubrica 1              8,45 (1,8+6,65)
Rubrica 2              3,8
Rubrica 4            95,47
Rubrica 5            50
Rubrica 6            22,19
TOTAL           179,91

Ora, 179,91 biliões de euros correspondem a 104,2% do PIB em 2010 (172,67 biliões de euros). Isto é, apesar de toda a imprecisão dos números acima (mas que pecam por defeito, porque não contabilizámos despesismo inútil, perdas na economia paralela, fraude fiscal que se sabe ser elevada embora ninguém saiba dizer quanto, perdas devidas à corrupção galopante, etc.). Por outro lado, a dívida pública em 2010 ascendia segundo os dados oficiais a 93,3% do PIB. Conclusão inescapável:
Se desde 2004 o grande capital não andasse a defraudar a economia portuguesa Portugal não teria agora dívida pública.

Tendo em conta o panorama que expusemos acima quais as medidas de carácter económico que uma política consequente de esquerda ([3]) deveria optar?
Parece-nos óbvio que deveriam ser as seguintes:

1                    Nacionalização da banca
Acabar com o jogo de casino dos banqueiros e colocar a banca ao serviço do povo trabalhador.
Alterar totalmente a direcção, política e objectivos do Banco de Portugal.
Instituir comissões de trabalhadores de acompanhamento da gestão bancária.
Só permitir bancos estrangeiros que aceitem regras muito estritas de supervisão pelo BdP.
Quaisquer outras medidas que fiquem aquém das anteriores, medidas de simples regulamentação (advogadas por certos sectores, como por exemplo pelo Congresso das Alternativas), serão a breve trecho inúteis, porque não transcendem em nada a lógica neoliberal que caracteriza o actual capitalismo-financeiro ([4]). Os banqueiros sempre encontrarão formas de continuar as suas especulações («jogar no casino») procurando ganhar dinheiro para eles e amigos à custa do nosso .
2                    Responsabilização directa dos actuais banqueiros pela especulação
A especulação bancária é um jogo muito especial. Se um banqueiro fosse ao casino jogar na roleta e perdesse, teria de assumir as perdas. Na banca, quando o banqueiro perde nas operações especulativas – um jogo como qualquer outro – os governos ao serviço do capital entendem que são os contribuintes que devem pagar! Mas há mais: é que os banqueiros não jogaram (não especularam) com o dinheiro deles, mas sim com o dinheiro de outros (!!!) o que noutro cenário corresponderia a crime de peculato.
Parafraseando o princípio de «utilizador pagador» tão caro à direita, deve, portanto, instituir-se o princípio «especulador pagador».
Banqueiros e seus associados na especulação devem ser julgados e os seus bens apropriados pelo Estado a fim de resgatar as dívidas dos bancos aos depositantes. Só tais resgates são legítimos; caso contrário, estão os inocentes a pagar pelos culpados.
3                    Impostos especiais sobre transacções financeiras e as grandes fortunas
Quanto às transacções financeiras, estamos de acordo com as propostas recentemente divulgadas pela CGTP-IN (novo imposto, com uma taxa de 0,25%, a incidir sobre todas as transacções de valores mobiliários, criação de uma sobretaxa média de 10% sobre os dividendos distribuídos, incidindo sobre os grandes accionistas, [5]). Parece-nos também que as grandes fortunas deveriam ter um imposto especial.
4                    Suspender todas as privatizações
5                    Auditar todas a PPPs e rever os contratos
A auditoria e revisão teriam como objectivo reverter todos os procedimentos em curso lesivos do interesse público.
6                    Rever acordos com a União Europeia
Na revisão do entendimento de resgate com a troika dever-se-ia: defender o alargamento do prazo de cumprimento; defender a transferência de fundos de resgate para o BdP (renovado) e não para bancos privados; defender a redução substancial do montante da dívida, com remissão de parte dela (detida por bancos europeus).
Caso a troika não aceite estes pontos dever-se-ia caminhar decididamente para o incumprimento (solução que os bancos da Alemanha, França e Holanda não terão interesse em aceitar). No passado já houve incumprimentos de muitos países sem qualquer tragédia. Pelo contrário; a Argentina ficou bem melhor depois do incumprimento da dívida que tinha com os EUA. Tragédia é, sim, o agravamento diário da dívida portuguesa e da vida dos trabalhadores portugueses sem qualquer perspectiva de resolução. Ainda ontem (24 de Setembro) foi noticiado que as despesas públicas têm aumentado mais do que a receita. Alguns efeitos negativos do incumprimentos teriam de ser analisados por forma a serem menorizados.
Quanto à saída do euro, que alguns advogam parece-nos ter mais desvantagens que vantagens. Para começar, observe-se duas coisas: por um lado, e no cenário de incumprimento, nenhum dos tratados da zona euro contempla a expulsão de um estado membro ou a aplicação de medidas sancionatórias no caso de desafectação unilateral; por outro lado, o problema da culpa da crise não é a moeda que se usa. Se usássemos escudos em vez de euros poderíamos estar hoje com os mesmos problemas. (Já no passado anterior ao euro o governo português recorreu ao FMI.) Saindo do euro passaríamos a um escudo desvalorizado. Na altura em que tal fosse implementado dar-se-ia uma corrida dos capitalistas aos bancos para enviarem enormes fundos em euros, fundos não desvalorizados, para fora do país. Isto é, a saída do euro implicaria obrigatoriamente a nacionalização da banca. A desvalorização do escudo implicaria que muitas dívidas de particulares aos bancos teriam também de ser desvalorizadas para que não caíssem na miséria; entretanto, um número considerável de firmas e particulares com dívidas em euros ao exterior depararia com dificuldades acrescidas. A única vantagem seria o aumento de competitividade das exportações portuguesas. Esta vantagem, contudo, poderia esbater-se no prazo de alguns anos.

Para além de medidas de carácter económico ter-se-ia de instituir medidas de carácter político e jurídico, muitas delas relacionadas com o sistema de justiça e o código penal, tendo nomeadamente em vista o combate firme à corrupção, o combate à evasão e fraude fiscal, colocando um ponto final no clima de impunidade de que têm gozado os grandes capitalistas em Portugal.

[1] Eugénio Rosa (2010) Juros e lucros transferidos para o estrangeiro levam uma parcela crescente da riqueza líquida nacional. Estudo 26.9.2010 (www.eugeniorosa.com).
[2] Eugénio Rosa (2009) Orçamento de Estado 2010. A evasão e a fraude fiscal em Portugal explicam mais de 3.000 milhões de euros do défice de 2009 – e não vai diminuir em 2010.  http://resistir.info/ e_rosa/evasao_fraude_injustica_fiscal.html.
[3] De facto, é nossa convicção (ver também o nosso estudo «A Crise do Euro») que no capitalismo não há saída efectiva da crise. A queda de rendibilidade dos sectores produtivos é inexorável. Mesmo que a lógica neoliberal seja atenuada ou até abandonada, mesmo que à custa dos sacrifícios impostos aos povos se verifique alguma recuperação temporária da rendibilidade, as características actuais do capitalismo nos países desenvolvidos são tais que, no nosso entender, poderá assistir-se a melhorias temporárias logo seguidas de novas e mais profundas crises de cada vez mais difícil e longa recuperação (distinguindo-se, neste aspecto, das crises do passado). As medidas que propomos não transcendem o quadro capitalista, mas vão no sentido de transcender o quadro neoliberal e preparar uma situação transicional de democracia avançada «a caminho do socialismo», estabelecendo uma ligação com o que julgamos ser a vontade popular de momento. O povo trabalhador é sempre o construtor definitivo da História.
[4] As medidas que aqui propomos foram também propostas por economistas de esquerda de várias nacionalidades para países como a Grécia, Irlanda e Portugal.
[5] As quatro medidas anunciadas pela CGTP-IN pecam, a nosso ver, pela excessiva suavidade. Mesmo que fossem todas cumpridas a crise continuaria.


(*) Usamos a nomenclatura anglo-saxónica e do português do Brasil: 1 bilião = 109 (mil milhões); 1 trilião = 1012
(**) No nosso estudo «A Crise do Euro» não demos a devida importância a este aspecto que é, de facto, no caso português (e também no caso grego) de grande importância. Completamos agora.
(***) Na notícia do jornal Sol é reportado que a dita empresa, Akoya Asset Management, tinha como função gerir e fazer aplicações de fortunas de clientes portugueses (empresários, advogados e alguns políticos), mas, alegadamente, agenciavam clientes em bancos suíços e os sócios da Akoya actuavam como «testas de ferro», criando empresas offshore onde seria guardado o dinheiro. Desta forma havia evasão fiscal e branqueamento de capitais.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A Crise do Euro. Uma Apreciação (Parte III)

O Caso Português

A crise da dívida em Portugal tem diversas causas. O pacto de estabilidade com a troika, à semelhança do que acontece com outros países) não resolveu nenhuma delas; pelo contrário, agravou-as a todas e está a pôr em elevado risco o futuro desenvolvimento do país. Trata-se, de facto, como é bem denominado por sectores da esquerda portuguesa, de um «pacto de agressão» ao povo português levado a cabo por uma política absurda.
A data oficial da crise da divida soberana de Portugal pode ser colocada em 3 de Maio de 2011 com a asinatura pelo governo demissionário de Sócrates (tinha-se demitido a 23 de Março) de um acordo com a troika envolvendo um resgate de 78 biliões de euros, eufemisticamente denominado «acordo de ajuda externa». José Sócrates oscilava em economia entre tiradas keynesianas e tiradas neoliberais. Por um lado dizia «Esses programas [de resgate] impõem uma agenda liberal que é negativa para o Estado social» (15/12/2010); por outro lado, e na mesma altura, defendia ajustamentos no Código de Trabalho, com graves prejuízos para os trabalhadores, e agendava privatizações. Foi também responsável por enormes despesas públicas como as PPPs e os estádios de futebol; já com a crise em cima defendia obstinadamente, numa atitude autista e irreflectida, gastos desmesurados em obras públicas como o aerroport de Lisboa e o TGV. Parece também nunca ter entendido bem o que se passava no domínio da especulação financeira (apenas se referia à especulação com os preços do petróleo); aliás, o seu ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, também nunca demonstrou grandes preocupações com o assunto, deixando Vítor Constâncio em rédea solta, exteriorizando ambos «surpresa» com as insolvências e fraudes do BPN e BPP. A escasso tempo da eclosão da crise (3/12/2010) Sócrates congratulava-se com a descida das taxas de juro do BCE dizendo «Acho que os especuladores perceberam, aqueles que especulavam com as dívidas, que as instituições europeias estavam a falar a sério quando afirmaram que iriam defender a estabilidade do euro. Julgo que os fenómenos da especulação pararam». Santa ingenuidade! Ainda em Março de 2011 dizia «Portugal não precisa de aderir a nenhum fundo de resgate» no final da cimeira europeia. Veio de facto, logo a seguir, a pedir o resgate (sob insistência de Mário Soares, segundo afirmações deste), afirmando em 3 Maio de 2011: «o governo conseguiu um bom acordo, um acordo que defende Portugal… Vamos vencer a crise… [O acordo] também não mexe no 13.º nem no 14.º mês dos reformados. Não tem mais cortes nos salários da função pública. Não prevê a redução do salário mínimo.». Era logo desmentido a 5 de Maio pela Comissão Europeia que afirmou ser o programa de ajuda a Portugal tão duro como os programas da Grécia e da Irlanda.
No governo de Passos Coelho, para além da demagogia que caracteriza o personagem («Ninguém nos verá impor sacrifícios aos que mais precisam. Os que têm mais terão que ajudar os que têm menos.», em 25/5/2011) e a insensibilidade (“Despedir-se ou ser despedido não tem de ser um estigma, tem de representar também uma oportunidade para mudar de vida, tem de representar uma livre escolha também, uma mobilidade da própria sociedade”, em Dezembro de 2011, e «os professores portugueses podem olhar para o mercado da língua portuguesa como uma alternativa ao desemprego.» em 6 de Maio de 2012), destaca-se Vítor Gaspar, um reaccionário neoliberal puro e duro: «[despedir] 100 mil funcionários públicos não seria descabido», em 17 de Outubro de 2011 em entrevista à RTP; em Abril de 2012 afirmava, em declarações ao jornal New York Times, que as políticas expansionistas «ao estilo keynesiano» falharam e podem ter sido «contraproducentes», acrescentando ainda que as reformas estruturais acordadas com a troika são as necessárias para Portugal: «Esta é a abordagem correcta para eliminar os enormes desequilíbrios que prejudicam o país há anos». Parece, entretanto, que a grande sabedoria de economia neoliberal de Vítor Gaspar não lhe tem sido de grande ajuda, visto que quase todas as suas previsões têm estado erradas (o segundo ministro das Finanças menos credível da Europa, segundo o Financial Times). Em 19 de Janeiro de 2012 dizia que «2012 vai marcar um ponto de viragem», apontando para um deficit orçamental de 4,5%; em Setembro de 2012 a previsão oficial era de 6,7% (valor médio). Numa audição no Parlamento na Comissão Eventual de Acompanhamento das Medidas do Programa de Assistência Financeira a Portugal, Vítor Gaspar explicou que, com o montante transferido do fundo de pensões da banca, o défice orçamental «ficará na casa dos 4%, bem abaixo dos 5,9% previstos». Aliás, o deficit em 2011 ficou em 4,2% (não 4% como primeiro anunciado) dada a transferência do fundo de pensões: sem isso, o défice orçamental teria ficado em 7,5%. O servilismo de Vítor Gaspar perante Merkel e outros grandes personagens, a sua falta de dignidade e sentido de Estado, a sua insensibilidade e traição aos interesses do povo português, são espantosos. Chegou mesmo a dizer ao FMI: «[os portugueses] estão completamente dispostos a sacrificar- se».

Especulação financeira

Numa economia capitalista um sistema bancário sem especulação financeira e propenso a delitos como o branqueamento de capitais e fraudes nas contas é uma impossibilidade. O clima neoliberal que se instalou nas últimas décadas no «mundo ocidental», de que aos bancos tudo é permitido, só tem contribuído para incentivar esses males endémicos. O Banco Português de Negócios (BPN) e o Banco Privado Português (BPP) consituiram exemplos gritantes: vários responsáveis foram em 2009 constituídos arguidos (e alguns detidos) por práticas ilegais tais como desvios, falsificação de contas, fraudes fiscais e branqueamento de capitais com base em offshores.
No caso do BPN o governo Sócrates avançou para a sua nacionalização, num processo pouco claro (ocultação de informação e culpas não apuradas) em que o próprio governo tentou esconder perdas (estimadas em 1.800 milhões de €) à UE. Os contribuintes ficaram a saber que iriam ter de contribuir com um montante da ordem dos 400 milhões de euros (diz-se). Entretanto, ficou apurado que o BPN detinha milhões de euros em bancos (agências suas) em Cabo Verde (Banco Insular e BPN Cabo Verde IFI) e nas ilhas Caimão (BPN Cayman). Dos 1.800 milhões de euros 550 milhões seriam activos tóxicos do Banco Insular e do BPN Cayman (declarações da Secretária de Estado do Tesouro e Finanças em Maio de 2010). Em Setembro de 2012 o governo ainda não sabia a parcela do empréstimo ao BPN a constar no orçamento de Estado
O índice de alavancagem da banca portuguesa é elevado e, apesar das declarações dos responsáveis do governo e do Banco de Portugal, não tem diminuído substancialmente. A Tabela 10 mostra o activo total (rubrica 1) e os capitais próprios (rubrica 2) da banca a operar em Portugal. Em 2011 o índice de alavancagem era superior ao de qualquer dos anos anteriores, inclusive ao dos anos 2007 e 2008 em plena bolha de crédito (ver também [34]).
A descapitalização ([36]) e o crédito em risco da banca têm aumentado. Quanto a este último e relativamente ao final de 2011, duplicou (!) em menos de três anos ([37]). O BCP registava em Julho de 2012 perdas superiores a 500 milhões de euros. Entretanto, o ministro das Finanças do governo Passos Coelho já tinha anunciado em Junho um resgtae (eufemisticamente denominado recapitalização) com dinheiros europeus do BSSF (Bank Solvency Support Facility): 1,65 biliões de euros para a CGD, 3,5 biliões de euros para o BCP e 1,5 biliões de euros para o BPI.

Tabela 10. Capitais próprios (pertencem aos accionistas) e activo total da banca a operar em Portugal. Valores em milhões de euros. Fonte: Fonte: Relatório de estabilidade financeira, Maio de 2012, Banco de Portugal.
RUBRICAS DO BALANÇO
Dez-2007
Dez-2008
Dez-2009
Dez-2010
Dez-2011
1- Total do Activo
443.458
476.883
510.587
531.751
513.126
2- Capitais próprios
28.273
26.322
31.765
32.825
25.944
3- ÍNDICE DE ALAVANCAGEM (1:2)
15,7
18,1
16,1
16,2
19,8
4- "Capitais Próprios" em % do "Activo" (2:1)
6,4%
5,5%
6,2%
6,2%
5,1%

Fig. 27. Volume de transacções em derivativos (biliões de euros) relativo à actividade ca CMVM de recepção de ordens por conta de outrem. O volume de transacções com futuros é dominante, atingindo um peso da ordem dos 95%. O valor para 2012 é uma estimativa. Fonte: CMVM.

O mercado de derivativos continua florescente. A Figura 27 mostra a evolução do volume total de transacções em derivativos com as respectivas percentagens em termos do PIB, segundo dados da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM, um organismo público com ligações ao Banco de Portugal).
Um aspecto espantoso do frenesim especulativo é o apoio que o próprio BCE empresta à especulação dos bancos da ZE, permitindo que estes especulem com a dívida dos Estados. Tal é possível porque, embora o BCE não possa comprar dívida aos Estados, pode todavia comprá-la aos bancos. No caso de Portugal, enquanto a banca tem praticado uma taxa de juro de 6,87% a 5,5%, entre 2008 e 2010, o BCE pratica uma taxa de juro de 1% na compra de títiulos de dívida aos bancos. Suponhamos que um banco tinha emprestado 1 milhão de euros a uma firma portuguesa em 2010; à taxa de 5,5% recebia 55.000 euros de juros. Entretanto, vendendo o título de dívida ao BCE só tinha de pagar 1%, ou seja 10.000 euros; obtinha, assim, uma margem de lucro de 45.000 euros. No fundo o BCE está a financiar os lucros dos bancos, os grandes responsáveis pela crise! No período de 2008 a 2010 o total de lucros da banca obtidos por este processo foi de 3,8 biliões de euros! (ver mais detalhes em [34]).

A Destruição do Sector Produtivo

A crise imobiliária teve consequências evidentes no investimento industrial conforme ilustra a Figura 14a ([38]). Entretanto, não foi só a crise imobiliária que contribuiu para a autêntica destruição do sector produtivo a que se tem vindo a assistir. A Figura 14b documenta uma continuada queda do contributo do sector produtivo de bens para o VAB. DE 1997 para 2011 verificou-se uma descida acentuada, de 9,1%. O investimento estrangeiro em Portugal tem tido apenas uma participação de entre 16 a 18% no sector produtivo; o restante vai para a especulação financeira. Números semelhantes de observam para o investimento de Portugal no estrangeiro ([39]). Dizia assim o capitalista Belmiro de Azevedo num encontro sobre a re-industrialização do Norte em Outubro de 2011: «O aparelho produtivo está a ficar assucatado, não se injecta um centavo na economia».
Fig. 28. a) Queda do investimento industrial e das expectativas de produção em Portugal em consequência da crise imobiliária. Fonte: [38]; b) Componente do VAB de produção de bens em Portugal em percentagem do VAB total. Fonte: Eurostat. 

PPPs e Despesismo

As Parcerias Público-Privadas (PPPs) encontram-se bem estudadas e documentadas na referência [40] onde se menciona que segundo a League Tables Project Finance International, Portugal aparece distanciado dos outros no que se refere a empréstimos para pagar PPPs: 1.579 bilões de euros, seguido da França com 467, Polónia com 418, Espanha com 289, Irlanda com 141, Itália com 66.
Lançados como contratos autosustentáveis, entre a administração pública e os parceiros privados, que ajudariam a resolver atrasos infra-estruturais do país, devido a constantes renegociações de contratos, sem qualquer controlo de instituições independentes e transparentes, acabaram sempre para se tornar um pesado encargo para o Estado e um maná para os privados, num quadro em que as suspeitas de corrupção são legítimas. De facto, a «receita» das PPPs tem sido mais ou menos esta: os privados ficam com os lucros e o Estado com os prejuízos. Em 2008 estimava-se um peso das PPPs na DP da ordem de 50 biliões de euros (25,9% da DP) pagos escalonadamente pelos orçamentos de Estado até 2050. Um peso importante das PPPs foi na construção de SCUTS. Portugal é actualmente o país da UE com com maior número de quilómetros de auta-estrada por 100.000 habitantes. Não admira que várias delas estajam «às moscas».
Para além das PPPs existem outras contribuições para a DP de um desenfreado despesismo público dos sucessivos governos PS, PSD (com e sem CDS). Para além das auto-estradas, um exemplo gritante foi o desvio de recursos (que teriam sido melhor empregeues no reforço do sector produtivo) para a construção de estádios de futebol: um encargo total de 525,1 milhões de euros que, segundo contas de 2004, corresponderia a um encargo anual 69,1 milhões de euros durante 20 anos.

A Política de Austeridade

A concessão de resgates aos GPIIS passou pela imposição de planos de agressão aos trabalhadores nos moldes que já mencionámos. Note-se que a CE (isto é, a chanceler alemã enquanro porta-voz dos banqueiros alemães) permitiu o tratamento diferenciado de três dos GPIS; três pesos e três medidas cujas razões não foram bem esclarecidas e são mais um sintoma do absurdo desta Europa neoliberal: quanto à Grécia, a troika incluiu no pacote de medidas, aquando do 2.º resgate, um perdão de 70% da dívida aos bancos europeus (a troco de alguns rebuçados); quanto à Irlanda e Portugal, receberam o tratamento standard, sem perdão; quanto à Espanha e Itália, a chanceler concedeu que obtivessem dnheiro do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira para recapitalizar bancos e apoiar títulos de tesouro, sem ter de entrar num programa de austeridade controlado pela troika.
Nos indicadores que a seguir mostramos é claramente visível o falhanço das políticas acordadas com a troika, cumpridas com desvelo pelo governo PSD-CDS, além dos tremendos danos sociais que tem implicado e irá implicar para o povo português. A hipocrisia da troika não tem limites: em Setembro de 2012 culpava o governo pelo falhanço das políticas implementadas! Como se essas políticas não tivessem tido a aprovação entusiástica da troika. Este e outros factos (ver o que dizemos abaixo sobre desemprego) sugerem que estamos em vias de assistir a uma farsa em que governo e troika trocam acusações só para enganar o povo português.

Dívida Pública
Tem aumentado em vez de baixar (Figura 29).
 
Fig. 29. Dívida pública em percentagem do PIB. Fonte: Eurostat.
Deficit Orçamental
Está agora maior do que antes do pacto de austeridade, excedendo o limiar dos 3% (Figura 30).
Fig. 30. Deficit orçamental em percentagem do PIB. Fonte: Eurostat.

Taxa de Crescimento do PIB
Está negativa e tem decrescido sistematicamente desde o 3.ª trimestre de 2010. Portugal encontra-se em recessão (Figura 31).
Fig. 31. Taxa de crescimento anual do PIB (%). Fonte: www.tradingeconomics.com; INE.

Produção Industrial
Piorou acentuadamente depois do plano de austeridade, como mostra a Figura 32. (Note-se que também tem baixado gravemente a produção agrícola e as pescas.)
Fig. 32. Variação percentual da produção industrial. Fonte: www.tradingeconomics.com; INE.

Nível de Optimismo sobre a Economia
Nunca esteve tão mal como depois do pacto (Figura 33).
Fig. 33. Nível de optimismo sobre a economia. Fonte: www.tradingeconomics.com; INE.

Nível de Desemprego
Disparou para valores nunca antes conhecidos em Portugal (Figura 34), para grande «espanto» do governo e troika, que choraram em Março de 2012 «lágrimas de crocodilo» quando informados do assunto (ver mais detalhes em [41]).
Fig. 34. Percentagem de desempregados. Fonte: INE.

Número de Insolvências.
Disparou para valores descomunais (Figura 35).
Fig. 35. Número de insolvências. Fonte: Coface MOPE,(Compagnie Française d´Assurance pour le Commerce Extérieur). O valor para 2012 é uma estimativa.

Rendimentos transferidos para o estrangeiro
Subiram dramaticamente desde 2005 com o início das bolhas imobiliárias (Figura 36). O pacto com a troika não alterou esta situação. Os dados provisórios para 2011 apontam para um impressionante total de mais de 18 biliões de euros, ou seja, mais de 11% do PIB! As privatizações totais ou parciais de empresas do Estado, prática que remonta aos primeiros governos PS, bem como o domínio da economia portuguesa por grandes grupos monopolistas estrangeiros, são responsáveis pela elevada percentagem do PIB desde anos anos bem anteriores; por exemplo, em 1995 os rendimentos transferidos para o estrangeiro já representavam mais de 4% di PIB. A crise especulativa do crédito (imobiliário e outros) e o pacto com a troika veio piorar drasticamente a situação.

Fig. 36. Rendimentos transferidos para o estrangeiro em milhões de euros. Fonte: INE (quadro A.2.1).

Obtenção de Empréstimos
As taxas de juro em leilões de certificados de Tesouro com maturidade a 10 anos, apesar de terem baixado do pico histórico de 16,7% em Fevereiro de 2012, continuam (Set 2012) a um nível demasiado alto, acima de 9%.

Fig. 37. Taxa de juro de certificados do Tesouro com maturidade a 10 anos. Fonte: www. trading economics.com; IGCP.

Síntese

A crise das dívidas soberanas da zona euro teve (e tem) como causa essencial a especulação financeira, conduzida pela banca e outras instituições, em particular por via de transacções de títulos tóxicos de dívida imobiliária. A especulação financeira tem sido, historicamente, a resposta dos capitalistas a descidas de taxas de lucro nos sectores produtivos. Fenómeno já conhecido e diagnosticado por Marx, esta especulação deu nas décadas recentes um salto qualitativo com as doutrinas neoliberais e a globalização da economia mundial com a divisão capitalista entre países com uma forte componente de especulação financeira (EUA, Grã-Bretanha) e países com uma forte componente produtiva (China, Índia, México).
As classes capitalistas da Europa, desde o thatcherismo na Inglaterra, abandonaram as doutrinas keynesianas de alguma intervenção estatal na economia, doutrinas essas que não impediram a crise do petróleo em 1975, e passaram a seguir com fervor as doutrinas neoliberais, nomeadamente na sua versão mais reaccionária (escola austríaca). A implosão dos países de economia planificada de Leste forneceu apoio considerável na defesa do neoliberalismo perante os povos. Muitas economias europeias quer fortes (Grã-Bretanha, Holanda) quer fracas (Irlanda, Portugal) têm actualmente um forte sector financeiro dedicado à especulação e que não recua perante nada (fuga a acordos de regulamentação, falsificação de contas, etc.). A situação actual nos EUA e Europa é a de que os governos dependem da banca em vez da banca depender dos governos.
As práticas especulativas dos EUA foram seguidas na Europa, nomeadamente com a formação de bolhas imobiliárias. A crise dos EUA despoletou a crise nas economias mais fracas (GPIS) com contornos que variam de país para país. Os pactos com a troika só têm agravado as crises. As instituições da UE têm revelado o seu carácter de classe, nomeadamente com o BCE a participar na especulação e a servir os interesses hegemónicos da Alemanha, país que, pese embora ser ainda uma grande potência exportadora de bens, procura salvar-se das descidas de lucros à custa de entradas de rendimentos provenientes de economias fracas.
Vários mitos têm sido divulgados nos media (a culpa é dos gastos nos serviços públicos, os GPIS são preguiçosos, etc.) procurando esconder das populações os verdadeiros culpados: proprietários, accionistas, chefes executivos bancários e seus serventuários no sector privado e no governo. Em Portugal tem funcionado um vasto esquema de alienação das populações, em que participam jornalistas, fazedores de opinião e comentadores de diversa índole (políticos, economistas, sociólogos, etc.).
Portugal tem tido, historicamente, uma classe capitalista de pendor parasitário, subserviente ao estrangeiro, alheia aos interesses do povo e da dignidade nacional. Os sucessivos governos de direita, com várias composições no leque PS-PSD-CDS, preocuparam-se mais com obras de impacto propagandístico (auto-estradas, estádios de futebol, etc.) do que com o apoio continuado e paciente ao sector produtivo. Preocupações com a bolsa e com a especulação financeira passaram a ser dominantes entre os capitalistas portugueses. A crise do euro em Portugal era uma crise anunciada, em particular pela sua vulnerabilidade económica, devido à enorme dívida externa. Fazendo jus ao apanágio de subserviência e servilismo da classe capitalista portuguesa, os seus representantes e instituições têm recebio elogios da troika por serem tão bons cumpridores (mais papistas que o papa).
O pacto com a troika veio acelerar a destruição do sector produtivo, aumentar a dívida pública e externa, e trazer inúmeros sofrimentos aos trabalhadores portugueses, nomeadamente aos mais desfavorecidos. É o corolário brutal da recuperação capitalista e contra-revolucionária - iniciada pelo PS em 1975 e continuada também depois por governos de outros partidos -, com o país espoliado, o seu futuro hipotecado aos interesses estrangeiros, e um aumento brutal das desigualdades sociais.
FIM

Notas

[36] Eugénio Rosa (2011) A responsabilidade dos banqueiros pela crise que Portugal enfrenta e pelo estrangulamento financeiro actual das empresas (http://resistir.info/e_rosa/banqueiros_22jun11.html).
[37] Nuno Carregueiro (2011) Crédito em risco na banca portuguesa quase duplica em menos de três anos. Jornal de Negócios online, 29 Novembro 2011.
[38] Maria Correia Russo (2010) As obrigações hipotecárias em Portugal: uma alternativa às titularizações de créditos. Projecto de Mestrado em Finanças, ISCTE Business School, Lisboa.
[39] Eugénio Rosa (2012) Portugal a Saque e Saldo. Estudo 22.3.2012. (www.eugeniorosa.com)
[40] Carlos Moreno (2010) Como o Estado gasta o nosso dinheiro. Editora Caderno.
[41] Eugénio Rosa (2012) Governo e Troika, numa Gigantesca Campanha de Manipulação da Opinião Pública, Dizem-se Surpreendiddos com o Aumento tão Elevado do Desemprego. Estudo 4.5.2012.

Índice
Parte I
O Pano de Fundo
A Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro
Trabalho Produtivo e Trabalho Não-Produtivo
Crises
A Actual Fase Financeiro-Imperialista do Capitalismo
A Especulação Financeira

Parte II
A Crise Imobiliária dos EUA
A Crise das Dívidas Soberanas
A União Europeia e a Zona Euro
A Crise: Causas e Mitos
Dois Círculos Viciosos
As Bolhas Imobiliárias
Derivativos
Balanças Comerciais
Mitos
O mito dos preguiçosos
O mito dos custos de mão-de-obra
O mito da competitividade
O Mito da Despesa Pública
O mito do deficit orçamental

Parte III
O Caso Português
Especulação financeira
A Destruição do Sector Produtivo
PPPs e Despesismo
A Política de Austeridade
Síntese
Notas

Siglas:
BC                          Balança comercial (exportações menos importações)
BCE                       Banco Central Europeu
BP                           Balança de Pagamentos (BC mais balança de transacções de capitais)
BEA                       U.S. Bureau of Economic Analysis
CE                          Comissão Europeia
COC                       Composição orgânica do capital
CUC                       Custo Unitário do Capital
CUT                       Custo Unitário do Trabalho
DE                          Dívida Externa (DP mais dívidas do sector privado)
DP                           Dívida Pública (dívidas das administrações públicas)
FMI                        Fundo Monetário Internacional
GPIS                       Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha (sigla usada em substituição de PIGS =«porcos» em inglês)
GPIIS                     Grécia, Portugal, Irlanda, Itália, Espanha (idem)
LQTQL                  Lei da queda tendencial da taxa de lucro
PEC                        Pacto de Estabilidade e Crescimento
PIB                         Total de bens e serviços produzidos numa dada economia em dado período de tempo (assume- -se ano)
PPP                         Parceria Público-Privada
UE                          União Europeia
VAB                       Valor Acrescentado Bruto (= PIB sem impostos e com subsídios ao consumo)
ZE                           Zona Euro