sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A Economia convencional: uma pseudociência (I)

I. Introdução
Com este estudo iniciamos um périplo por alguns temas de economia, usando como guia o excelente livro do economista Steve Keen, Professor de economia e finanças da Universidade de Western Sidney, Austrália: Debunking Economics - The Naked Emperor Dethroned? (edição de 2011 da ZED Books), literalmente: Tirando a Economia do Pedestal – O Imperador Nu Destronado? A ideia do «Imperador Nu» está ligada à história muito conhecida de «o Rei vai nu».
O livro de Steve Keen é um dos tais que deveria ser traduzido em português e aparecer nas nossas livrarias, a contrabalançar os 95% de lixo que as inundam.
Os créditos de Steve Keen são firmes. Foi, nomeadamente o vencedor de um prémio da Real Economics Review por ter previsto a crise financeira mundial de 2008-09, prémio esse que ganhou em competição contra economistas ortodoxos muito mediáticos.
Steve Keen é keynesiano, embora dê também algum crédito a contribuições de Karl Marx. Os economistas keynesianos e marxistas (de facto, devia dizer-se marxianos) fazem parte da corrente dita heterodoxa da Economia. Steve Keen diz no seu livro que deverão representar cerca de 15% de todos os economistas.
A Economia convencional, ou ortodoxa, é a Economia neoclássica (também dita da «corrente dominante»). É aquela que é ensinada nas Universidades e praticada nos países capitalistas. É aquela de que são porta-vozes os comentadores dos media que nos enchem constantemente os ouvidos com as suas perorações. Um rebento da Economia neoclássica é a Economia neoliberal.

Já comentámos, no nosso estudo sobre a crise do euro, a dificuldade que revelaram as maiores luminárias da economia neoclássica em prever e caracterizar a crise imobiliária dos EUA e a crise do euro. Steve Keen descreve este aspecto com algum detalhe, referindo a famosa cena da rainha de Inglaterra que numa sessão com professores da Escola de Economia de Londres perguntou: Why did nobody notice it? (literalmente: Porque é que ninguém notou isso [a eclosão da crise]?). A resposta que deram os embatucados professores foi a de que «ninguém poderia ter visto que tal ia acontecer». Os professores estavam a mentir. De facto, vários economistas das mais diversas correntes tinham previsto a crise, só que as suas previsões foram arredadas (e até perseguidas) pelos neoclássicos dominantes.
A Economia convencional (neoclássica) remonta nas suas origens às doutrinas clássicas de Adam Smith e David Ricardo (que Marx criticou e reelaborou), doutrinas essas que defendiam o liberalismo económico (não à intervenção do Estado), bem como às doutrinas do utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Vários economistas dos fins do séc. XIX e princípios do séc. XX (Alfred Marshall, John Hicks, John Stigler, etc.) deram uma roupagem formal, matemática, a essas doutrinas tendo assim construído a escola neoclássica.
A Matemática é, certamente, uma boa coisa. Marx tinha em alto conceito a Matemática. Dedicou-se ao seu estudo e era de opinião que uma ciência não estava realmente desenvolvida enquanto não tivesse aprendido a fazer uso da Matemática ([1]). Contudo, em todas as áreas do conhecimento, incluindo a Economia, é perfeitamente possível desenvolver toda uma teoria matemática inteiramente correcta mas completamente falsa, isto é, inaplicável na sua transposição para o mundo material ([2]). Este é um dos problemas de que enferma a Economia neoclássica. O problema da validade das assunções. Mas há, outros, como veremos; inclusive, o problema de aplicação incorrecta da Matemática!
Diz Steve Keen no seu livro que, quando escreveu a primeira edição do livro, esperava que o falhanço da Economia neoclássica em prever uma próxima crise levaria a uma reconsideração da Teoria. Infelizmente, isso não aconteceu. Os mentores da Economia neoclássica reagiram como se nada tivesse acontecido. Ben Bernanke, Presidente do Banco de Reserva Federal dos EUA, disse isto em 2010: «a recente crise financeira foi mais uma falência da engenharia económica [!] e da gestão económica do que chamei de ciência económica». Steve Keen comenta: «A crença de Bernanke não podia estar mais afastada da verdade: como meio de compreender o comportamento de uma economia de mercado complexa, a chamada ciência da economia é uma mistura de mitos que fazem comparativamente parecer a antiga visão ptolomaica do sistema solar centrado na Terra mais sofisticada. O que esta opinião revela é a sua [de Bernanke] incapacidade de pensar sobre economia de qualquer outra forma que não seja a neoclássica na qual foi treinado – uma incapacidade que partilha com a maioria dos seus colegas.»
Diz ainda: «Eles [os economistas neoclássicos] rejeitam de imediato qualquer sugestão de motivação ideológica. Dizem que são cientistas, não activistas políticos. Eles recomendam soluções de mercado, não por serem pessoalmente pró-capitalistas, mas porque a teoria económica provou que o mercado é o melhor mecanismo para determinar soluções económicas [sobre isto, ver o nosso estudo «A Grande Mentira da 'Economia de Mercado'»]. Todavia, virtualmente tudo que recomendam redundou pelo menos em favorecer os ricos contra os pobres, os capitalistas contra os trabalhadores, os privilegiados contra os destituídos [coincidências!].»
Steve Keen descreve também como os economistas que não partilham os pontos de vista neoclássicos, os economistas heterodoxos, são rejeitados pelos meios académicos ou colocados a fazer «serviços menores», e os artigos que submetem a revistas da especialidade rejeitados liminarmente (muitas vezes sem irem para os revisores). Inclusive por revistas que, no passado, tinham abertura (e até secções específicas) para estudos fora do âmbito neoclássico. Trata-se de uma autêntica purga de dissidentes (no «mundo livre» com «liberdade de expressão») que atinge quer académicos quer os profissionais não académicos. É, assim, notável, que ainda subsistam 15% de irredutíveis.
De vez em quando, até os neoclássicos têm um rebate de consciência. Dois exemplos:
1 – Nouriel Roubini é uma das luminárias da Economia neoclássica. Foi economista do FMI, da Reserva Federal, do Banco Mundial e do Banco de Israel. No artigo de 15 de Agosto de 2011 do seu blog (http://www.economonitor.com/nouriel/2011/08/15/is-capitalism-doomed/), com o título «Tem o capitalismo os dias contados?», diz isto: «Assim Karl Marx, parece, tinha parcialmente razão ao  argumentar que a globalização, a intermediação financeira corriam à rédea solta, e a redistribuição de rendimento e riqueza do trabalho para o capital podia levar à auto-destruição do capitalismo (embora a sua visão que o socialismo era melhor provou ser errada). As firmas estão a cortar no emprego porque não há suficiente procura final. Mas cortar no emprego reduz o rendimento do trabalho, aumenta a desigualdade e reduz a procura final.» [tradução e ênfase nossos]. (Note-se que a visão que Roubini tem do que disse Marx sobre as crises do capitalismo está longe de ser inteiramente correcta.)
2 - George Magnus, economista sénior do UBS, o maior banco de investimento suíço (Agosto de 2011), num relatório aos clientes (The convulsions of political econom) começou (imagine-se!) por citar o prefácio de Marx à Contribuição para a Crítica da Economia Política (de 1859) passando à explicação marxista das crises do capitalismo. Diz entre outras coisas: «a análise económica tradicional leva a prescrições tradicionais de políticas económicas que são inúteis e inapropriadas». Numa carta ao Financial Times, disse ainda que a razão da relevância actual de Marx é precisamente porque «estamos numa crise do capitalismo de uma-vez-numa geração, despoletada por uma queda financeira… Marx analisou e explicou com perspicácia como e porquê o capitalismo iria ser vitimado por crises recorrentes, e especialmente grandes crises depois de uma ruína do crédito.»
No próximo artigo começaremos a justificar a nossa afirmação de «pseudociência». Veremos, concretamente que a curva da procura de mercado, tal como os economistas neoclássicos a imaginam, tem muito pouco a ver com a realidade e assenta em pressupostos que estão matematicamente errados.

[1] Paul Lafargue. Reminiscences of Marx (September 1890).
[2] O mesmo acontece noutros ramos do saber. Na Física abundam os exemplos de teorias matematicamente consistentes mas que tiveram de ser abandonadas dado partirem de falsas premissas e/ou não produzirem os resultados objectivamente (materialmente) observados.