terça-feira, 18 de setembro de 2012

A Crise do Euro. Uma Apreciação (Parte I)

Porque estamos mergulhados numa crise de «dívida soberana»? Como surgiu ela? Porque surgiu ela (quem são os culpados)? Respostas fundamentadas a estas perguntas não são fáceis de obter pelo cidadão comum. Nem mesmo por quem procura estar informado.
No mundo capitalista os media são controlados por grandes empresas capitalistas (ou pelo Estado ao serviço dos capitalistas) que, naturalmente, veiculam maioritariamente ou na totalidade o ponto de vista capitalista. Além disso, no caso dos países europeus cujos governos se submeteram aos planos da troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), que tanto dano têm causado aos respectivos povos, os capitalistas tudo têm feito para colocar os meios de comunicação, com particular destaque para a televisão, ao serviço do ocultamento das verdadeiras causas e dos verdadeiros culpados.
Acontece também que os economistas defensores ou favoráveis ao sistema capitalista revelam dificuldades em apontar razões substanciais das crises do sistema. Propõem sempre explicações casuísticas, muitas de índole subjectiva, tais como: má administração, previsões incorrectas, executivos gananciosos, falhas de orientação dos Bancos Centrais, falta de confiança dos investidores, conjunturas de mercados, despesismo, etc. Mesmo as maiores sumidades em Economia do mundo capitalista (da chamada corrente neoclássica) revelam uma pobreza de ideias confrangedora quando se trata de analisar causas de crises. Um exemplo: em Setembro de 2009, Alan Greenspan, ex-Presidente do Banco de Reserva Federal dos EUA (o Banco Central dos EUA), numa entrevista à BBC sobre porque tinha ocorrido a crise da «bolha imobiliária», explicou que a crise tinha sido «um evento de uma vez num século» que ele não tinha esperado testemunhar. Pensava agora que, embora o capitalismo fosse um sistema excelente, podia ser prejudicado pelos seres humanos: «É a natureza humana, a não ser que alguém possa encontrar um meio de modificar a natureza humana iremos ter mais crises e nenhuma delas se assemelhará a esta, porque nenhuma crise tem qualquer coisa em comum com outra, excepto a natureza humana.»
Os economistas marxistas, académicos ou não, pensam de forma diferente. Reconhecendo embora existir causas objectivas próximas, casuísticas, despoletadoras de crises, sabem também reconhecer as causas profundas, subjacentes. Estão, portanto, teoricamente preparados para identificar os verdadeiros sintomas prenunciadores de crises e prever a sua ocorrência. Para os economistas marxistas há algo mais do que «nenhuma crise tem qualquer coisa em comum com outra», e esse algo mais não é «a natureza humana» mas sim a razão de ser do sistema capitalista.
Existe um mito muito divulgado pelos media ao serviço do capital: o de que as crises, tal como os sismos, não podem ser previstos. De facto, a crise da bolha imobiliária americana foi prevista por economistas de várias correntes. A opinião destes foi desprezada pelas autoridades e pelos media.
O presente texto é proposto como uma apreciação objectiva da chamada «crise do euro» ou «crise das dívidas soberanas» da zona euro. Com esse propósito parece-nos indispensável discorrer primeiro sobre porque é que as crises ocorrem no sistema capitalista (à luz da teoria económica marxista, única que a nosso ver fornece uma explicação objectivamente fundamentada) e o que representou a crise da bolha imobiliária dos EUA, percursora da crise do euro. Pensamos que a compreensão plena da crise do euro é a pedra basilar em que terá de assentar a busca de soluções da crise, soluções que sirvam os trabalhadores e não os capitalistas.

O Pano de Fundo

A compreensão da actual crise do euro - cujo início podemos colocar em 23 de Abril de 2010 quando o governo grego pediu um empréstimo de 110 biliões de euros à UE (União Europeia) e ao FMI (Fundo Monetário Internacional) - passa pela compreensão da sua causa próxima, a crise da bolha imobiliária dos EUA, e da evolução do sistema capitalista.

A Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro

Como se sabe a força motriz do sistema capitalista é o lucro. Sem lucro os capitalistas não investem ([1]), a economia de um país (concretamente, o respectivo PIB, produto interno bruto) não cresce e, em consequência, o emprego e o consumo declinam. Marx apresentou no seu vol. III de «O Capital» uma lei que considerava a mais importante lei da economia capitalista e que é, ainda hoje, considerada uma das suas mais importantes contribuições: a lei da queda tendencial da taxa de lucro (LQTTL) [2]. O argumento subjacente, em termos muito simples, é o seguinte:
Considere-se um determinado período de tempo (p. ex., ano ou trimestre) de uma qualquer indústria e designemos por c o respectivo capital investido nesse período em meios de produção (designado por Marx por capital constante: equipamentos e matérias primas) e por v o capital investido em salários dos trabalhadores (capital variável). Se a venda dos bens produzidos resultasse apenas em c + v nenhum capitalista se interessaria por investir em tal indústria. Investir para quê? Ele só se interessará se obtiver para além do total de capital investido, c + v, uma dada mais-valia, ou lucro. Designemos esse quantitativo por s. A origem de s é o trabalho. Por outras palavras, o trabalhador em média produz um valor correspondente a s + v, mas só recebe v [3].
A taxa de lucro, r, é dada pela fracção s/(c + v), a porção de lucro face ao total de capital investido. Dividindo ambos os termos da fracção por v, obtem-se: r = s/(c + v) = (s/v)/(c/v + 1). Marx denominou a fracção s/v taxa de exploração dos trabalhadores e a fracção c/v composição orgânica do capital (COC).
Num próximo período produtivo a tendência do capitalista, se quiser sobreviver à competição, é a de investir mais em c, usando equipamentos tecnologicamente mais avançados que possibilitem obter o mesmo volume de produção com um menor número de horas de trabalho (menor v). Irá, portanto, aumentar a composição orgânica do capital, c/v, no denominador de r. Por outro lado, o emprego de tecnologias mais avançadas com a produção em tempo mais curto leva a baixar o preço do produto, logo s (cujo valor se realiza no final da produção, ao contrário de c e v fixados no início da produção); em consequência, a taxa de exploração do trabalho tende a diminuir ou pelo menos a variar pouco. Os dois efeitos combinados - aumento do denominador e manutenção ou decréscimo do numerador -, leva a uma diminuição de r [3].
O que descrevemos em termos simples é aplicável não só a um certo sector produtivo da actividade económica, mas também ao conjunto das actividades económicas de um país. A LQTTL designa-se por «tendencial» porque retrata uma tendência subjacente ao desenvolvimento de qualquer economia capitalista, tendência essa que pode ser contrariada em certos períodos. Efectivamente, o próprio Marx teve o cuidado de assinalar e descrever a existência de factores económicos que podem, durante um certo tempo, contrariar a tendência para o decrescimento da taxa de lucro. Entre eles, são de assinalar: a maior exploração do trabalho; o embaratecimento dos meios de produção; o aparecimento de novas indústrias; a existência de sobrepopulação; a exploração de mão-de-obra mais barata, além fronteiras. Muitas das contra-tendências que Marx assinalou adquirem hoje, numa economia globalizada, um papel ainda mais relevante do que no seu tempo. Basta, por exemplo, lembrarmo-nos da deslocalização de empresas para países de mão-de-obra mais barata e submissa, permitindo um acréscimo da exploração do trabalho (mais horas de trabalho, menos pausas, menor protecção social, etc.).
A LQTTL tem sido estudada teórica e empiricamente (isto é, com base em dados das contas públicas recolhidos pelas instituições oficiais dos respectivos países) por vários investigadores. Num trabalho recente ([4]), investigadores de uma universidade americana mostraram que, tomando em conta as principais contra-tendências apontadas por Marx, se verificava a existência (estatisticamente significativa) de ciclos de crescimento e declínio sobrepostos a uma evolução linear decrescente da taxa de lucro da economia dos EUA, ao ritmo de 0,3%/ano, no período de 1948 a 2007.
A obtenção ou construção de séries temporais que permitem estudar a LQTTL nem sempre é fácil e livre de controvérsias (as contas públicas dos países capitalistas não estão estruturadas a la Marx!). Os investigadores usam uma ou outra aproximação do cálculo de r. Felizmente verifica-se que as diferentes maneiras de medir a taxa de lucro não influem muito nas principais conclusões que se extraem dos dados ([5]).
Observemos a Figura 1. Foi construída usando dados trimestrais do U.S. Bureau of Economic Analysis (BEA); mostra a traço grosso a evolução dos lucros de todas as empresas produtoras de bens e serviços, com exclusão das empresas de serviços financeiros, em termos de percentagem do PIB com dedução da contribuição do sector financeiro - logo, em percentagem de todos os bens e serviços, excepto financeiros, produzidos nos EUA [6]. Chamemos r* a este quociente, usado como avaliação da taxa de lucro por instituições ao serviço do capitalismo ([7]). Vemos que a curva de r* exibe ondulações, com segmentos ascendentes correspondentes a períodos de crescimento económico, logo seguidos de decaimentos muitas vezes bem marcados por vales correspondentes a recessões. Estão localizados a tracejado três desses vales: em 1974-75, na crise do petróleo; em 2001, quando rebentou a bolha dot-com; em 2008-2009, depois de rebentar a bolha imobiliária.
A crise do petróleo marca o fim da «época de ouro» do capitalismo pós 2.ª guerra mundial. Note-se que a crise, cujas datas oficiais ([8]) de início e fim são Novembro de 1973 e Março de 1975, era uma crise já «anunciada» pelo declínio acentuado de r* a partir de 1966 (com uma pequena recuperação em 1972-73). A crise dot.-com, que decorreu oficialmente de Março a Novembro de 2001, também foi «anunciada» pelo declínio acentuado de r* a partir de 1997. Finalmente, a crise imobiliária, cujo período oficial é de Dezembro de 2007 a Junho de 2009, foi «anunciada» pelo declínio acentuado de r* a partir de 2006.
 Fig. 1. Evolução dos lucros totais (deduzidos os impostos) das empresas de sectores não-financeiros dos EUA em percentagem do PIB (custos correntes), com curva de tendência a tracejado.

Na Figura 1 mostramos a tracejado uma curva de tendência média, exibindo apenas as maiores oscilações pré e pós-recessão. Depois de uma recessão ou crise (isto é, uma recessão grave) verifica-se uma retoma das actividades económicas e uma recuperação mais ou menos rápida da taxa de lucro por actuarem as contra-tendências da LQTTL que referimos acima; contudo, mais tarde, a LQTTL volta a revelar-se, levando ao declínio e queda da actividade económica. Note-se que, para além das oscilações (ciclos) que já assinalámos, a curva a tracejado permite descortinar uma tendência global de declínio da taxa de lucro para todo o período 1948-2011.
Se, em vez de r*, usássemos uma avaliação da taxa de lucro r, mais próxima da definição marxista, as conclusões seriam essencialmente as mesmas (ver, p. ex., [4, 9]). Tal é ilustrado na Figura 2 ([9]). A seguir à Grande Depressão Americana dos anos 30 registou-se uma elevada subida da taxa de lucro. A partir de 1945 verifica-se uma tendência sistemática para o declínio de r, entrecortada por ciclos de subida-descida, entre os quais os já assinalados na Figura 1. Notar ainda a recessão dita do «início dos oitenta», também visível na Figura 1. De facto, ambos os gráficos contêm praticamente a mesma informação de picos e vales.
A Figura 3 ([9]) mostra a evolução da taxa de lucro r dos sectores não-financeiros dos EUA até 2013 (estimativa para 2012-2013), juntamente com a composição orgânica do capital, COC. Constata-se, tal como previu Marx, que COC é aproximadamente a imagem inversa de r: quando um cresce o outro sobe e vice-versa. Estão também assinaladas as durações entre picos e vales de r: 19, 17 e 15 anos. Se se mantiver o valor médio destas durações (o número de ciclos é pequeno demais para ter estimativas de grande confiança), será plausível esperar um próximo vale cerca de 2015.

Fig. 2. Evolução da taxa de lucro dos EUA, a custos correntes (CC, usando o valor corrente do dólar) e a custos históricos (CH, usando o valor do dólar referido a um dado ano em paridade de poder de compra, i. e., tomando em conta a inflação). (Fonte: [9].)

Fig. 3. Evolução da taxa de lucro (custos correntes) e da composição orgânica do capital (COC) dos EUA. (Fonte: [9].)

Não é por acaso que a economia dos EUA tem sido a mais estudada pelos economistas. Isso deve-se a duas razões principais: o PIB dos EUA representava em 2006 cerca de 20% do PIB mundial; os EUA têm, de longe, os melhores serviços estatísticos, com as recolhas de dados mais completas e de melhor qualidade. Contudo, o que dissemos sobre a LQTTL ou o que iremos dizer sobre crises do capitalismo aplica-se a qualquer das economias capitalistas ([10, 11]). A Figura 4 ilustra, tal como a 1 e 2, a tendência geral para o declínio da taxa de lucro nos EUA, Japão e Alemanha, tendência essa à qual se sobrepõem ciclos de crescimento e declínio.
As crises económicas, caracterizadas por drásticos abaixamentos do PIB, aumento do desemprego, etc., têm, portanto, causas próximas. A causa próxima varia de crise para crise: subida dos preços do petróleo («crise do petróleo»), queda das cotações especulativas das novas empresas de venda pela Internet («bolha dot-com»), colapso da «indústria» hipotecária de risco («bolha imobiliária»). Mas têm também uma causa subjacente, mais profunda e que faz sentir os seus efeitos mais cedo: o declínio da taxa de lucro.

Fig. 4. Evolução da taxa de lucro para os EUA, Japão e Alemanha (sector industrial). A fonte da figura é a referência [11]. Os valores do eixo vertical são percentagens.

Trabalho Produtivo e Trabalho Não-Produtivo

Ao descrever acima a LQTTL referimos a sua aplicabilidade a um «sector produtivo da actividade económica» e apresentámos as figuras 1 a 4 como dizendo respeito à produção de bens e serviços não- -financeiros (no caso da Figura 4, apenas o sector industrial). É agora altura de procurar esclarecer sucintamente o que se entende por actividade produtiva (ou trabalho produtivo).
A ideia de trabalho produtivo remonta a economistas anteriores a Marx, mas foi por este colocada em moldes mais claros e seguros. Em termos simples, trabalho produtivo num sistema de economia capitalista (a noção varia com o sistema económico a que se refere) é todo o trabalho que produz mais--valia (s) para um capitalista, mais-valia essa que pode ser capitalizada, isto é, pode voltar a entrar no processo de produção capitalista ([12]). A noção não tem nada a ver com um julgamento moral do trabalho: há imensos trabalhos improdutivos que são socialmente úteis. Trata-se de uma noção meramente operacional que permite distinguir, face aos diversos sectores de actividade económica, aqueles que resultam numa mais-valia que contribui para a acumulação de capital, daqueles outros que simplesmente correspondem a um consumo ou circulação de mais-valia.
Vejamos alguns exemplos. Numa fábrica os operários desenvolvem um trabalho produtivo: produzem mais-valia para um capitalista. O mesmo se passa com os engenheiros ligados ao processo produtivo. Um capataz, cuja única missão fosse controlar os operários, realizaria um trabalho improdutivo: o salário do capataz seria pago com parte de s que o patrão retiraria exclusivamente do trabalho dos operários e do pessoal técnico, incluindo engenheiros. Se o capataz não existisse continuaria a produzir-se mais-valia; só que não necessariamente redundando na mesma exploração do trabalho, s/v. A designação «produtivo» não implica a obrigatoriedade de produzir um bem físico; aplica-se também à prestação de serviços. A actividade de um professor é prestar um serviço. Se essa actividade for numa escola pública, o trabalho é improdutivo (embora socialmente útil): o governo retira dos impostos e, portanto, do total de mais-valia produzida no país, uma parcela para lhe pagar. Se a actividade do professor for numa escola privada, passa a ser uma actividade produtiva: tem de produzir uma mais-valia para o proprietário da escola. Vejamos o caso do comércio (circulação de bens). Um trabalhador ao serviço de um comerciante desenvolve um trabalho improdutivo, mesmo quando (como frequentemente acontece) produz mais trabalho do que aquele que é pago. Porquê? Porque a actividade comercial corresponde a trocar bens por dinheiro ou vice-versa; o trabalho do trabalhador não pode ser capitalizado, transformado em capital para produzir novos bens ou serviços. Se o comerciante em vez de empregar os trabalhadores que permitem efectuar a referida troca bens <-> dinheiro, empregar o dobro não é por isso que recebe maior rendimento. O rendimento do comerciante tem a ver simplesmente com a apropriação de uma parte da mais-valia incorporada nos produtos que compra ou vende. Algo de semelhante se passa com os trabalhadores bancários (circulação de capitais): são pagos com parte da apropriação de mais-valia efectuada pelos banqueiros.
As contas públicas dos países capitalistas reflectem, em alguma medida, esta distinção entre actividade produtiva e não-produtiva. De uma forma geral as actividades não-produtivas (onde se exerce trabalho não-produtivo) são: o comércio, as actividades financeiras (bancos, seguros, instituições de investimento, bolsas, etc.) e os serviços governamentais que têm em vista quer finalidades sociais (ensino, saúde, etc.) quer a manutenção do sistema capitalista (polícia, exército, sistema judicial, etc.).
A crise da bolha imobiliária foi despoletada pela utilização em actividades não-produtivas, nomeadamente especulações financeiras dos Bancos, de uma grande parte da mais-valia criada pelos trabalhadores.

Crises

As crises são parte integrante do capitalismo. Não é possível existir sistema capitalista sem crises geradoras de sofrimentos acrescidos dos trabalhadores.
No início da fase ascendente, optimista, de um ciclo económico entre recessões, os capitalistas são estimulados a aumentar os seus investimentos em novas indústrias e tecnologias inovadoras com o objectivo de impulsionar a produção de lucros. Não há aqui preocupação social de monta; mesmo a produção de bens socialmente inúteis pode servir para produzir lucros. Nesta altura, em que se acabou de sair de uma recessão, v ainda não é alto, o que permite uma boa exploração do trabalho - um elevado s/v -, logo, um elevado r. Nesta fase ascendente os trabalhadores conseguem obter, através da sua luta, melhores salários. Isto faz diminuir s/v o que combinado com um elevado c/v faz ameaçar r. No início da fase ascendente a resposta capitalista, a um r que já não é o que era, consiste geralmente em aumentar o volume da produção permitindo obter um volume de lucro (s) ainda elevado. Taxas de juro baixas e expansão de crédito aos consumidores estimulam este tipo de resposta.
Ao fim de algum tempo, porém, a resposta à inexorável LQTTL de aumento da produção começa a deparar-se com sinais ameaçadores, que configuram aquilo que se designa por sobre-acumulação de capital: acumulação de existências de bens que não se conseguem vender e tendência para o sub-aproveitamento da capacidade instalada de produção ([13]). A razão disto é simples: a diferença crescente entre o consumo global e o volume de bens produzidos (mesmo com recurso ao aumento das exportações) é tal que o volume de lucro começa a declinar.
A Figura 5 mostra a evolução do volume de lucro nos EUA desde o 4.º trimestre de 2005 ao 3.º trimestre de 2009 em plena crise da bolha imobiliária ([14]). Note-se como o volume de lucro começa a declinar antes do início da da crise marcada pelo pico do PIB.
A Figura 6 mostra a razão existências/vendas-globais dos sectores de actividade produtiva (de bens duradouros e não duradouros) dos EUA. Um aspecto salta à vista: à escala de todos os sectores de actividade produtiva dos EUA verifica-se um claro crescimento deste indicador em períodos que antecedem a eclosão oficial de recessões importantes: Novembro de 1948, Julho de 1953, Agosto de 1957, Novembro de 1973, Julho de 1981, Dezembro de 2007. Note-se que nem todas as recessões são precedidas de um aumento relevante da razão existências/vendas (caso, por exemplo, da crise dot.com em 2000-2001). Mas muitas são-no. Isto é: existe evidência empírica de um acréscimo de sobreprodução global antecedendo a eclosão de muitas recessões.


Fig. 5. Volume de lucro e PIB real dos EUA em biliões de dólares (*). Fonte: [14].

Fig. 6. Evolução da razão existências/vendas dos EUA desde 1947 a 2011 (dados trimestrais). Inícios de recessões assinalados com traços verticais a tracejado.

Logo que surgem os primeiros sinais de abrandamento do volume de lucro a classe capitalista começa a adoptar soluções que contrariem essa tendência, como a deslocalização total ou parcial de empresas para países de mão-de-obra barata e a transferência de capitais para sectores mais rentáveis.
No que respeita à transferência de capitais para sectores mais rentáveis é de realçar a tendência para o aumento da actividade nos serviços financeiros que se observa desde os anos oitenta. A Figura 7 mostra, para os EUA, a evolução comparada da contribuição para o PIB de três sectores de actividade económica (dados do BEA): sector produtivo (agricultura, minas, construção, indústria, transportes), serviços não financeiros (incluindo comércio) e serviços financeiros. Note-se: o aumento da importância dos sectores de serviços face ao sector produtivo; o sector de serviços financeiros é, actualmente, quase tão importante na contribuição para o PIB dos EUA quanto o sector produtivo. Mas há ainda mais a dizer sobre isto: se olharmos para a Figura 8 constatamos o já mencionado decaimento da taxa de lucro (não marxista, calculada de forma semelhante ao r* e baseada nas respectivas contribuições para o PIB) do sector não financeiro e um brutal crescimento da taxa de lucro do sector financeiro a partir de 1982. Esta subida, na última década, é impressionante. É, contudo, o sector que mais caiu na última crise da bolha imobiliária: cerca de 25% (!), atingindo prejuízos de cerca de 5%! Note-se que, como estamos a falar de lucros de um agregado, ou seja, de um lucro médio, um lucro de por exemplo 0% significa que as empresas de serviços financeiros com lucros equilibram as que têm prejuízos.

Fig. 7. Evolução da contribuição para o PIB dos EUA de três sectores de actividade económica: sector produtivo, serviços (não financeiros) e serviços financeiros.


Fig. 8. Evolução da taxa de lucro dos sectores financeiros e não-financeiros da actividade económica dos EUA. O cálculo é feito conforme indicado no texto e em [6].

Quando algo determina a deterioração severa do volume de lucros (estado grave de sobre-acumulação) a classe capitalista e seus representantes no governo procuram vários meios de dar resposta ao problema. A resposta clássica - efectivamente, a única solução real - é a da liquidação em grande escala. Tal como um agricultor apara os ramos meio apodrecidos, secos ou quase secos de uma árvore, com vista a renovar-lhe a vitalidade, o sistema trata de remover o que já não interessa para a economia capitalista, procedendo a uma destruição mais ou menos física (por vezes obtida da maneira mais drástica, através de guerras), mais ou menos «criativa» de capitais fixos e variáveis: despedimentos massivos, falências de empresas, fecho temporário de empresas, vendas de existências ao desbarato, envio de equipamentos para sucata. Uma vez instalado este processo, entra-se numa descida acentuada do PIB per capita e no aumento acentuado do desemprego. Entra-se numa crise. Durante a crise, e para usar a mesma analogia do agricultar aparando a árvore capitalista, é frequente proceder-se ao corte de «ramos ladrões», aqueles ramos que só servem para chupar seiva (mais-valias produzidas na economia) sem produzir nenhum lucro para o capitalista: serviços sociais, como os de saúde, educação e justiça.
Em suma, uma crise efectua um reset do sistema, com a entrada em cena de novas indústrias, embaratecimento de equipamentos e matérias-primas (diminuição de c) e melhores condições de exploração do trabalho (aumento de s/v). Tudo se conjuga para uma nova curva ascendente de r. No caso de uma guerra o reset é radical. Basta olhar para a acentuada subida da taxa de lucro desde a Grande Recessão dos anos 30 até 1945 mostrada na Figura 2.

A Actual Fase Financeiro-Imperialista do Capitalismo

Na «época de ouro» do capitalismo, de 1946 a finais de 1973, funcionaram as medidas «suaves» propostas pelo economista britânico John M. Keynes com vista a perpetuar um capitalismo sem crises: baixas taxas de juro, incentivos ao investimento e consumo (estimulando, portanto, a manutenção de baixas existências), e investimentos a nível governamental que respondessem a necessidades sociais e contribuíssem para baixos níveis de desemprego. Este sistema de «Estado social» deveria permitir a coexistência de capitalistas e trabalhadores no mais perfeito dos mundos. Foi adoptado pela social-democracia na Europa e até mesmo pelos conservadores americanos (Nixon, 1971: «I am now a Keynesian in economics!»). O sistema funcionou bastante bem (criando não poucas ilusões na classe operária dos países «ocidentais») durante 27-28 anos por duas razões principais: a segunda guerra mundial tinha destruído boa parte de equipamentos e existências e tinham surgido novas indústrias (rádio, televisão, electrónica, etc.); a seguir à guerra e devido ao «baby-boom» os salários eram baixos (nos primeiros anos, pelo menos). Quando os salários nos países capitalistas aumentaram foi fácil atrair mão-de-obra estrangeira disposta a trabalhar por um mais baixo salário. Foi, por exemplo, o caso bem conhecido da emigração portuguesa para a França.
Um capitalismo sem crises é, contudo, uma impossibilidade. A LQTTL continuava a actuar (ver de novo as Figuras 1 e 2) e em 1974 estava-se de novo em crise com taxas de lucro industrial da ordem de 10%, quando nos anos 50 e 60 alcançavam níveis de 25% e 20% (Figuras 2, 3 e 4). Os think-tanks capitalistas trataram de propor novas soluções. Emerge nos EUA a figura de Milton Friedman e a «escola de Chicago» que advoga o «mercado livre» sem interferência governamental ([15]) e a liberdade individual de fazer tanto dinheiro quanto possível sem qualquer regulação. Friedman defendeu a privatização de quase todas as funções estatais, incluindo a liquidação de serviços públicos, com o argumento hipócrita de que tais funções eram contra a «liberdade individual». Estava lançado o neoliberalismo, acolhido com fervor nos anos oitenta por Reagan e Thatcher. Friedman teve o seu laboratório de ensaio no Chile do ditador fascista Pinochet, onde ajudou a construir o «milagre económico» para os ricos e tornou-se também conselheiro do regime estalinista chinês em 1988, ajudando a construir a «economia de mercado socialista com características chinesas». Na Chicago School of Political Economy Friedman desenvolveu um conjunto de teorias matemáticas monetaristas, aparentemente científicas e neutrais ([16]), cuja tese central é: inflação e débito excessivo são consequência de gastos excessivos do governo que levam a aumentar a quantidade de numerário circulante.
Um émulo de Friedman foi o ultra-reaccionário Friedrich von Hayek da Escola Austríaca de Economia cujo livro «A Estrada da Servidão» estigmatizando a intervenção estatal, foi divulgado pelo Reader's Digest e era leitura de cabeceira de Margaret Thatcher.
Em 1983, num discurso proferido no encontro anual do Banco Mundial (BM), Ronald Reagan inaugura a transição desta organização bancária mundial bem como do FMI de uma política com preocupações keynesianas para uma política frontalmente neoliberal. O discurso, inspirado por Hayek, dizia nomeadamente: «As sociedades que conseguiram o progresso económico mais espectacular e abrangente, no mais curto espaço de tempo, não foram as maiores em dimensão, nem as de recursos mais ricos e certamente não as que foram mais rigidamente controladas. O que as uniu foi a crença na magia do mercado. Milhões de indivíduos tomando as suas decisões no mercado sempre alocarão recursos melhor que qualquer processo de planeamento governamental centralizado». A partir de então BM, FMI e organizações associadas e dependentes, nascidas em finais da 2.ª Guerra Mundial (acordos de Bretton-Woods) e consagrando o domínio imperial económico dos EUA, seguiram um conjunto de medidas neoliberais (Consenso de Washington) a aplicar a estados insolventes, de que se destacam ([17]; comentários nossos entre parênteses rectos inseridos na tradução de texto original):
Disciplina fiscal e redução de despesas públicas. Défices grandes e continuados resultam de falta de coragem política de ajustar despesas públicas aos recursos disponíveis.
Reforma de impostos. A base de indivíduos colectáveis deve ser larga, os impostos devem incentivar investimentos. [Leia-se: colectar pouco os capitalistas e muito e amplamente todos que estão abaixo.]
Taxas de juro. Devem ser determinadas mais pelo mercado do que pelo Estado.
Liberalização do comércio. Eliminação de restrições às importações. O ideal de comércio livre (tarifas aduaneiras baixas) só deve ser temporariamente restringido para incentivar indústrias nascentes [em particular aquelas em que o capital dos EUA tem interesses].
Encorajar o investimento estrangeiro directo. Porque este traz o tão necessário capital, capacidades e know-how. O encorajamento pode ser feito através de títulos de dívida, trocando dívida por participações dos investidores estrangeiros em firmas locais, tais como empresas do Estado privatizadas [!].
Para além do saque de bens estatais as políticas neoliberais tiveram e têm como corolário os seguintes efeitos: domínio económico, pelos monopólios dos gigantes económicos capitalistas EUA, Japão e Alemanha, sobre as economias dos pequenos países; abate de sectores produtivos com deslocalização de indústrias para países de mão-de-obra barata e pouca fiscalização de condições sub-humanas de trabalho e exploração de trabalho infantil (China, Índia, Indonésia, Malásia, Tailândia, México); crescimento desenfreado do sector financeiro encorajado por operações puramente especulativas (as famosas «bolhas») atingindo níveis espantosos de capital fictício.

A Especulação Financeira

«Nunca na história do capitalismo foi o sector financeiro tão importante para a saúde do capitalismo. Na sua maturidade o capitalismo é decrescentemente um sistema de acréscimo das forças produtivas. É cada vez mais um parasita financeiro repousando improdutivamente nos sectores produtivos da economia global (principalmente China, Índia, etc.).» ([9]).
A especulação financeira é o paraíso para onde tendem todos os capitalistas descontentes com a descida da taxa de lucro das actividades produtivas. Bancos, bolsas, instituições e empresas de crédito, e até governos (isto é, os representantes legais da classe capitalista) estimulam este apetite, agora «teoricamente» justificado pelos doutrinários neoliberais. O resultado de tudo isto é a formação de «bolhas» especulativas sempre prestes a explodir e a arrastar nessa explosão respeitáveis bancos. Não importa: os governos (insistimos, os representantes legais da classe capitalista) lá estão para decidir resgates à custa de activos estatais; isto é, para salvar os capitalistas à custa dos contribuintes, não à custa dos activos dos próprios capitalistas.
O refúgio dos capitalistas na especulação financeira não é um fenómeno novo. Já Marx tinha estudado este fenómeno classificando o capital especulativo como capital fictício. Também tinha chamado a atenção para o facto de os capitalistas procurarem aumentar os volumes de lucros através de esquemas de crédito fácil, desregulado.
Ao contrário dos activos físicos do capital industrial, empréstimos bancários, acções e obrigações são títulos de crédito sobre a riqueza futura; não criam mais-valia, antes actuam como esponjas absorvendo o rendimento e propriedade dos devedores, expropriando-os (incluindo governos) quando estes não conseguem pagar. Dizia Marx: «A usura centraliza a riqueza fiduciária. Não altera o modo de produção, mas agarra-se a ele como um parasita... o capital usurário não confronta o trabalhador como o capital industrial,...[mas] empobrece este modo de produção, paralisa as forças produtivas em vez de as desenvolver.»
Para ilustrar a força inexorável do capital usurário Marx ironizava sobre os cálculos de juros compostos do filósofo Richard Price, dizendo que um penny poupado no tempo de Jesus a um juro composto anual de 5% equivaleria a uma esfera de ouro estendendo-se do Sol ao planeta Júpiter. «O bom Price estava simplesmente fascinado pelas quantidades enormes que resultam de uma progressão geométrica de números... ele olha para o capital como uma coisa que age por si própria, sem ter em conta as condições de reprodução do trabalho, como um mero número que auto-cresce».
Durante as últimas décadas o sector financeiro ultrapassou tudo que Marx poderia ter imaginado. Derivativos, vendas a descoberto e alavancagem levaram à desindustrialização e a enormes resgates que pesam sobre os contribuintes. Na esfera política a finança neoliberal tornou-se a defensora dos monopólios actuando sem regras e da não aplicação de impostos sobre ganhos de valores mobiliários ([18]).
A especulação financeira envolve transacções de valores mobiliários (acções, obrigações, divisas, derivativos, etc.) ou imobiliários (casas, propriedades, objectos de arte, colecções, etc.) com vista a aproveitar flutuações de preços, independentemente do valor intrínseco subjacente. A especulação financeira tem sempre riscos inerentes - por vezes elevados - que as grandes corporações procuram disseminar e alijar para cima das mais pequenas. Vejamos os instrumentos principais (designados eufemisticamente por instrumentos financeiros e implementados por bancos, bolsas e grandes corporações) usados em especulações financeiras ([19]), designados pelo bilionário Warren Buffet de instrumentos financeiros de «destruição massiva» ([20]):
Venda a descoberto (short selling) – venda de activos, geralmente de valores mobiliários, como acções, que não se possuem; são emprestados. Espera-se ganhar vendendo hoje caro para mais tarde comprar barato. Exemplo: X julga (ou sabe por informação confidencial: inside trading) que as acções da empresa YOYO vão descer. Estão agora cotadas a 10 € e irão descer para 8€ dentro de três meses. Y está interessado em obter 10.000 acções da YOYO. X não tem acções da YOYO; firma um contrato com um corretor que lhe empresta hoje as 10.000 acções a serem devolvidas dentro de três meses. X vende as acções a Y e recolhe 100.000 €. Se, dentro de três meses, as acções descerem para 8 €, X ganha 20.000 € (geralmente há uma propina a pagar ao emprestador pelo que o ganho seria algo menor). O risco que corre é o das acções não descerem; se, por exemplo, as acções subirem para 10,5 €, X perde 5.000 €.
Derivativo (derivative) - contrato no qual se estabelecem pagamentos cujo valor deriva (daí o nome) do preço de um activo. Existem vários tipos de derivativos, mas só iremos descrever dois muito comuns, usados em larga escala por instituições bancárias: os futuros (contrato de compra e venda em data futura) e os contratos de opção (semelhante, com a opção de a compra ou venda não se realizar). Exemplo de «futuro»: A empresa U da zona euro prevê efectuar um pagamento em dólares até ao final do corrente ano. O câmbio actual face ao euro é 1,3 $/€, mas espera-se que o valor do dólar suba face ao euro. Para limitar possíveis perdas com o aumento da cotação do dólar, U firma no início do ano um contrato com o banco Z, de aquisição de um montante de dólares correspondente a 100.000 €, em 1 de Dezembro desse ano, ao câmbio de 1,2 $/€. Se no final do ano o câmbio for de 1,1 $/€, U ganha 10.000 $ e o banco perde esse mesmo montante. Exemplo de «opção»: O Banco P possui títulos de hipoteca no valor aproximado de 1 milhão de euros, a manter-se a taxa de juro hipotecário. Estabelece em Março um contrato de opção com uma instituição gestora de hipotecas, Q, pelo qual esta tem o direito (mas não a obrigação) de lhe comprar os títulos até ao próximo 1 de Setembro pelo valor de 500.000 €. No contrato Q paga a P um prémio de 3.000 €. Os lucros ou perdas de P e Q dependem da taxa de juro e da evolução dos preços no sector imobiliário, caso haja incumprimentos que levem à execução de hipotecas.
Alavancagem (leverage ou gearing) – é uma técnica financeira (que por simplicidade incluímos na descrição de instrumentos) que permite multiplicar ganhos (ou perdas), quer por contracção de empréstimos, quer por compra de activos, quer ainda pelo uso de derivativos. Exemplo 1: R adquire uma casa no valor de 100.000 €, contribuindo com um pagamento inicial de 10.000 € e contraindo um empréstimo hipotecário de 90.000 € no banco S, ao juro de 6% (5.400 € de juros anuais). Se o valor da casa aumenta 8.000 € num ano o retorno de S é de 8.000/(10.000 + 5.400) = 51,9%. Isto é, com uma taxa de alavancagem de 10 para 1 (activos/(activos – passivos) = 100/(100 – 90)) R ganhou, logo no primeiro ano, um retorno de mais de 50% do valor investido. Exemplo 2: Um Banco comercial obtém um depósito de 10.000 € à taxa de 3 %. Juntamente com 10.000 € de activos próprios efectua um empréstimo à taxa de 6 %. A taxa de alavancagem é de 2:1 e obtém um retorno final de 1200 – 300 = 900 € (desprezando pormenores menos importantes para o caso). Suponhamos, agora, que nas mesmas condições iniciais de activos e passivos, o banco firmava um derivativo de futuros em acções no qual obtinha um retorno de 20%. Então, com a mesma taxa de alavancagem, o retorno final seria bem maior: 20.000´0,2 – 300 = 3700 €.
Com excepção das vendas a descoberto, que são sempre consideradas especulação financeira, os derivativos e a alavancagem podem não ser especulativos se puderem ser assegurados por um valor concreto. O exemplo de derivativo envolvendo a empresa U e o banco Z é um exemplo corrente que permite aumentar a segurança de certas transacções. Já o contrato de opção entre P e Q pode configurar uma especulação se muitos dos títulos hipotecários de P são de elevado risco (envolvendo particulares sem meios concretos que assegurem o pagamento das hipotecas). P pode estar simplesmente a libertar-se de posteriores passivos e Q ter a intenção de especular com os títulos de P vendendo-os em parcelas a terceiras partes. A alavancagem hipotecária, exemplificada acima, pode ser simplesmente um mero empréstimo de baixo risco a um particular. Mas também pode ser especulação quando se usam taxas de alavancagem elevadas e/ou novas hipotecas. Notemos que, se no exemplo, a taxa de alavancagem for de 100 para 1 o retorno de R é de 8.000/(1.000 + 5.400) = 125%! R normalmente trataria de vender a casa enquanto o mercado está em alta e os juros estão baixos. Se a casa ao fim de seis meses vale 150.000€ e R paga o que falta ao banco, fica então com 60.000 € (desprezando pagamentos de juros, etc); nada mau para quem começou com 10.000 €. R pode começar de novo. Por seu turno, enquanto as taxas de juro estão baixas e os preços das casas sobem, os bancos também especulam: emprestam cada vez mais, recolhendo juros e libertando-se disseminadamente de títulos hipotecários de risco, os «activos tóxicos». Foi esta a causa despoletadora da «bolha imobiliária».
O princípio é o mesmo com a alavancagem de derivativos: apostar na possibilidade de que certos activos cresçam 100% em poucos dias quando foram apenas obtidos com base num valor mais pequeno, por exemplo 10%. O mercado de derivativos cresceu imenso desde 1998. Tudo serve para criar derivativos: taxas de juro (o mais usado), taxas de câmbio (como no exemplo acima), acções, títulos de crédito, mercadorias, hipotecas, seguros, taxas de inflação, previsões meteorológicas, etc.
Especular em derivativos é como fazer uma aposta num casino. Num artigo recente da revista Fortune dizia a articulista (directora executiva de uma instituição de consultoria): «quer compreendam isso ou não todos os contribuintes foram sugados pelo jogo de realidade virtual dos derivativos e com grande prejuízo».
Os riscos dos derivativos podem ser enormes e, por vezes, difíceis de avaliar. Ainda antes da crise da «bolha imobiliária» tinham ocorrido graves problemas com derivativos: em 1995, um corretor do Barings Bank levou à falência esta instituição centenária devido a perdas em derivativos futuros que ascenderam a 1,3 biliões de dólares; em 1993 e 1994 a Metallgesellschaft AG da Alemanha perdeu o equivalente a 1,3 biliões de dólares em derivativos relacionados com o petróleo; em 1998, a Long-Term Capital Management, um gestor de fundos de cobertura (hedge funds) dos EUA, perdeu 4,6 biliões de dólares principalmente devido a derivativos. Apesar disso, o mercado de derivativos continuou e continua a crescer exponencialmente e a contaminar corporações e instituições financeiras em todo o mundo devido à globalização.
A quantidade actual de capital fictício é enorme. A Figura 9 ([21]) mostra a evolução do valor total mundial do mercado de derivativos até 2006; atingia nesse ano perto de 280 triliões de dólares. Em contrapartida, o PIB mundial, também mostrado na figura, ascendia a 47 triliões de dólares em 2006, isto é, cerca de seis vezes menos! Por outras palavras, para assegurar todo o valor envolvido em mercados de derivativos à escala de mundial em 2006, a população de todo o globo teria de trabalhar só para isso cerca de seis anos! A qualificação de capital fictício que usámos acima está plenamente justificada. Durante a crise da «bolha imobiliária», como era de esperar, o mercado de derivativos regrediu e veio a estabilizar. Voltou a subir em 2010. Estimativas de 2011 colocavam o valor total do mercado de derivativos entre 600 e 1.500 triliões de dólares, enquanto o PIB mundial era pelo menos cerca de 10 vezes mais baixo, da ordem de 65 triliões de dólares. A ficção capitalista aumentou!!!

Notas

[1] A escola keynesiana coloca a causalidade ao contrário. Em vez de colocar à cabeça o lucro que por sua vez determina (é a causa de) o investimento, como Marx fez, Keynes e seus seguidores colocam à cabeça o investimento que por sua vez determina o lucro. Enquanto Marx coloca uma fundamentação objectiva lucro ®  investimento, Keynes, no que concerne a explicação do determinante do montante de investimento, cai (e não pode senão cair) em fundamentações subjectivas tais como o «nível de confiança» e o «instinto animal» dos capitalistas. A realidade empírica, entretanto, não suporta as teorias keynesianas. Por exemplo, durante um largo período da crise da bolha imobiliária o lucro nos EUA diminuiu, apesar e já depois do investimento público aumentar.
[2] Tanto quanto conseguimos saber o volume III de «O Capital» (compilado e publicado postumamente por Friedrich Engels) nunca foi traduzido e publicado em Portugal. Só foram publicados na versão integral os volumes I e II nos anos setenta (edições da Delfos e da Centelha). As Edições Avante têm também vindo a publicar os volumes I e II, estando neste momento publicado o tomo VI do segundo volume. A lei da queda tendencial da taxa de lucro, para além do suporte teórico, tem sido comprovada empiricamente por numerosos economistas e investigadores de Universidades e outras instituições de ensino superior dos EUA, Inglaterra e França, marxistas e não marxistas.
[3] Em rigor haveria que distinguir a expressão destas quantidades em valores (expressos em horas de trabalho ou valores monetários) ou em preços de mercado. O «problema da transformação de valor em preço» foi um dos principais problemas levantados por vários economistas (liberais e marxistas) para sustentar que a teoria económica de Karl Marx sofria de contradições internas. Este problema afectava irremediavelmente a aceitação da lei de valor de Marx e, em consequência, da LQTTL. Estas dificuldades contribuiram para divulgar a ideia de que a teoria económica marxista era apenas uma curiosidade histórica. O «problema da transformação» só foi resolvido em anos recentes (com início em 1982) por vários investigadores, com destaque para o economista Andrew Kliman (professor na Universidade de Pace, Nova Iorque). (O leitor interessado pode ler: Kliman A. (2007) Reclaiming Marx' "Capital" – A refutation of the Myth of Inconsistency, Lexington Books.) Ao nível simples a que tratamos a LQTTL não precisamos de nos preocupar com o «problema da transformação» e podemos usar indiferentemente os conceitos em termos de valor ou de preços de mercado. Por idênticas razões, de simplicidade, evitámos o uso de denominações conceptuais que nos levariam tempo a explicar, sem benefício de monta para o leitor comum; assim, por exemplo, usamos várias vezes a palavra «trabalho» quando deveríamos usar «força de trabalho».
[4] Deepankar Basu, Panayotis T. Manolakos (2010) Is There a Tendency for the Rate of Profit to Fall? Econometric Evidence for the U.S. Economy, 1948-2007. Economics Dept., University of Massachusetts. Review of Radical Political Economics, May 24, 2012. Este trabalho fornece também uma explicação da fundamentação teórica da LQTTL incluindo a refutação das principais objecções levantadas à LQTTL (o chamado «teorema de Okishio»). Ver também: Andrew Kliman (2010) A reply to Michel Husson on the character of the latest crisis (http://akliman.squarespace.com).
[5] Um artigo de leitura acessível é: http://thenextrecession.wordpress.com/2011/07/29/ measuring-the-rate-of-profit-and-profit-cycles/. Outro, do mesmo autor, com dados actualizados: Michael Roberts (2010) The causes of the Great Recession: mainstream and heterodox interpretations and the cherry pickers, 12th Annual Conference of the Association for Heterodox Economics, Bordéus, R103.
[6] Os dados do PIB estão disponíveis na Tabela 1-1-5 do BEA-NIPA. Os lucros de empresas constam da Tabela 6-16. A contribuição para o PIB do sector financeiro consta da Tabela 6-1. Todos os dados a custos correntes.
[7] Pode encontrar-se este tipo de avaliação de taxas de lucro, por exemplo, nos estudos da Yardeni Research, Inc., e da Standard & Poors.
[8] Os EUA dispõem de uma instituição que determina, com base em vários indicadores (de que o mais importante é a taxa de variação do PIB), os inícios e fins oficiais dos períodos recessivos: o NBER-National Bureau of Economic Research.
[9] Michael Roberts (2009) The Great Recession. Profit cycles, economic crisis. A Marxist View. ISBN 978-1-4452-4408-2.
[10] Minqi Li, Feng Xiao, Andong Zhu (2007) Long Waves, Institutional Changes, and Historical Trends: A Study of the Long-Term Movements of the Profit Rate in the Capitalist World-Economy. Journal of World-Systems Research, vol.13 (1): 33-54.
[11] Robert Brenner (2006) The Economics of Global Turbulence. Verso Pub. Co. A Figura 4 aparece inserta em Chris Harman (2007) The Rate of Profit and the World Today. International Socialism Issue 115.
[12] Seguimos aqui o trabalho de Mick Brooks (2005) Productive and Unproductive Labor (http://www. marxist.com/unproductive-labour1981.htm). Também vale a pena ler o que diz a wikipedia/en sobre o assunto.
[13] Existem muitos trabalhos de divulgação onde o leitor interessado encontra mais detalhes sobre causas conducentes a crises. Para além do livro da nota 9, chamamos a atenção para os seguintes: Anwar Shaikh (1989) The Current Economic Crisis: Causes & Implications. Against the Current pamphlet; Guglielmo Carchedi (2010) Behind and Beyond the Crisis. International Socialism (artigo que é condensação de um livro). Patrick Bond (2003) What is a crisis of overproduction? em http://www.marxmail.org/faq/overproduction.htm (este com ênfase excessiva na sobreprodução).
[14] Michael Roberts blog (http://thenextrecession.wordpress.com/), Janeiro de 2010.
[15] Sobre a falácia do «mercado livre» e outros mitos neo-liberais reveste-se de importância a leitura do livro do economista (não marxista) Ha-Joon Chang: 23 Things They Don't Tell You About Capitalism, Bloomsbury Press, 2010.
[16] Na Economia como na Física e em outras áreas do conhecimento é perfeitamente possível construir modelos matemáticos correctos mas que assentam em premissas falsas. Uma das principais tarefas do cientista consiste precisamente em avaliar, empírica e teoricamente, a validade das premissas (condições do sistema) que usa.
[17] Um livro que reputamos de fundamental para compreender o que é (foi e tem sido) o BM, o FMI e a OMC é: Peet, R. (2009) Unholy Trinity. The IMF, World Bank and WTO (2nd ed.). Zed Books.
[18] Michael Hudson (2010) From Marx to Goldman Sachs: The Fictions of Fictious Capital. Critique: Journal of Socialist Theory, vol. 38, 3:419-444.
[19] Há muitos portais onde procurar informação sobre instrumentos financeiros. Para além da wikipedia/en achámos interessante a consulta de http://beginnersinvest.about.com/od/stocksoptionswarrants/a/what-is-a-derivative.htm. É também instrutivo (além de simples e divertido) o seguinte vídeo: http://www.youtube.com/ watch?v=FLGRPYAtReo&feature=related. Ver também: http://theeconomiccollapseblog.com/archives/the-coming-derivatives-crisis-that-could-destroy-the-entire-global-financial-system.
[20] Warren Buffet é conhecido pelos seus aforismos mais ou menos cínicos, entre os quais: «É uma luta de classes, a minha classe está a ganhar mas não devia.», numa entrevista à CNN acerca da necessidade de taxar os ricos.
[21] A figura é adaptada de http://www.safehaven.com/article/7104/china-and-the-hedge-fund-dragon, que menciona como fonte dos dados a ISDA-International Swaps and Derivatives Association, Inc.. Figura idêntica com dados da mesma fonte aparece na wikipedia/en.
[22] Gérard Duménil, Dominique Lévy (The Crisis of Neoliberalism. Harvard University Press, 2011), Andrew Kliman (The Failure of Capitalist Production: Underlying Causes of the Great Recession, Pluto Press, 2011) e Guglielmo Carchedi (Behind the Crisis, Historical Materialism Book, BRILL, 2010) são académicos e economistas marxistas que analisaram a crise da bolha imobiliária. Sobre economistas marxistas que previram a crise, ver também: Gérard Duménil http://www.politicaleconomy.org.uk/subprimecrisis-marxian.htm e http://www.isj.org.uk/ ?id=557.
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Brevemente:
Parte II – A Crise Imobiliária dos EUA
                  A Crise das Dívidas Soberanas
Parte III – O Caso Português
                   Síntese e Índice final


* Usamos a nomenclatura anglo-saxónica e do português do Brasil: 1 bilião = 109 (mil milhões); 1 trilião = 1012.