IIa. A curva da procura de mercado
Continuando a acompanhar o livro de Steve Keen (ver parte I neste blog) vamos, no presente texto, iniciar a análise da questão da curva da procura de mercado.
Como preâmbulo, convém assinalar que na visão neoclássica da Economia ¾ aquela que é ensinada nas universidade e nas escolas superiores ¾ a sociedade é um conjunto de indivíduos que actuam mais ou menos isolados e que, enquanto consumidores procuram maximizar a sua satisfação pessoal, enquanto produtores procuram maximizar o lucro. Na visão neoclássica não existem classes sociais antagónicas. Não existe inclusive sociedade, entendendo-se por tal algo articulado que está para além da simples soma de indivíduos (Margaret Thatcher: «There is no such thing as society» = «Não existe tal coisa chamada sociedade»); existe apenas um mero conjunto de indivíduos perseguindo objectivos puramente egoístas de maximização da satisfação pessoal.
Alguns economistas neoclássicos admitem a existência de aspectos mais subtis na sociedade, mas acham que o comportamento económico individual (microeconómico) é melhor tratado considerando os indivíduos como puros egoístas; acham ainda que o comportamento colectivo, em particular ao nível de um país (macroeconómico), pode ser derivado da simples soma (ou quase) dos comportamentos individuais.
Vejamos, então, como é colocada a questão da procura de mercado, que está no cerne da muito divulgada noção do equilíbrio em torno da oferta e da procura; da ideia vulgarizada da «lei da oferta e da procura». A figura 1 mostra duas curvas relacionando a quantidade de café em kilos com o preço por kilo num dado mercado: a curva da procura (1) e a curva da oferta (2).
Estas são curvas como os economistas neoclássicos as imaginam: a) A curva da procura de um determinado bem (curva 1, respeitante ao café) é sempre descendente, como na figura 1; a ideia subjacente é a de que se o preço de um determinado bem aumenta a sua procura diminui, já que os consumidores tenderão a consumir menos e/ou substituir esse bem por outro de mais baixo preço (por exemplo, chá ou cevada torrada). b) A curva da oferta (curva 2) é sempre ascendente, como na figura 1; a ideia subjacente é a de que se o preço aumenta haverá maior incentivo dos produtores para produzir mais.
Fig. 1
Vemos que as curvas se intersectam no ponto que corresponde a 10 € por kilo. Suponhamos que por qualquer razão (talvez um rumor de que ia faltar o café) num dado momento o preço do mercado subia para 18 €/kg. Então, por este preço, só existirá uma procura (média por pessoa consumidora no mercado) de 0,6 kg, enquanto a oferta por este preço é de 1,6 kg. O excedente da oferta sobre a procura irá levar a baixar o preço até não haver excedente: até se atingir o ponto de intersecção, 10 € por kg. A convergência para o ponto de intersecção far-se-ia por ajustes sucessivos como se ilustra com a curva a ponteado. De forma semelhante, se por qualquer razão o preço baixasse para 6 € por kg, o excedente da procura relativamente à oferta iria fazer subir o preço até extinguir tal excedente. O ponto de intersecção é, portanto, um ponto de equilíbrio. Esta é uma das exemplificações dos equilíbrios que estudam os economistas neoclássicos.
Parece tudo lógico, não é? Bom, há dois aspectos que ficaram obscuros. 1.º Aspecto: dissemos «como os economistas neoclássicos as imaginam»; resta saber se esta «imaginação» é correcta ou não. 2.º Aspecto: a figura 1 mostra possíveis curvas quando um dado bem é considerado isoladamente; será que quando temos mais de um bem em jogo ainda temos o mesmo tipo de curvas?
A questão essencial aqui é que, se as curvas não forem como na figura 1, podemos ter situações arbitrariamente complicadas. Reparemos na figura 2 que mostra curvas hipotéticas para um dado bem. Quanto à curva da oferta continua ascendente como no exemplo anterior. Deixaremos a questão da oferta para depois da análise da procura. Quanto à curva da procura, ela deixou de ser uma curva simplesmente ascendente e passou a mostrar sinuosidades. Se, num dado momento o preço do mercado se afastar do valor que tem no ponto A para passar a ter o valor p1, como a quantidade de oferta é maior que a da procura, verifica-se uma convergência para A. Se o preço for p2, pelas razões já apontadas a convergência é para B. Finalmente, em certas situações, como quando o preço é p3, a convergência pode ser para C ou para A, tudo depende de uma pequena variação em torno de p3! Isto é, a situação complicou-se dramaticamente: passámos a ter três pontos de equilíbrio e possíveis situações de instabilidade (uma pequena variação em torno de p3 implica em dois valores distintos da procura e pode levar à convergência para A ou para C; instável também, para um preço no «vale» entre C e B).
Fig. 2
Mas será que a curva da procura de mercado poderá ser tão complicada como na figura 2, ou os neoclássicos podem perfeitamente considerar tal situação como uma raríssima excepção e tomar a curva de mercado do tipo da figura 1 como a regra?
Veremos num próximo artigo que, de facto, é a curva da procura de mercado da figura 1 que é altamente excepcional; facto esse, que figuras destacadas da Economia neoclássica procuram esconder.