sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A grande mentira da «Economia de Mercado»

A existência de uma economia de mercado, também chamada economia de mercado livre, é um dos Critérios de Copenhaga (critério económico) a que deve satisfazer um país para poder ser membro da União Europeia. Na descrição económica neoclássica uma economia de mercado é aquela em que as decisões sobre investimento de capital, produção e consumo são baseadas, sem interferências do governo, na «lei da oferta e da procura» estabelecida pelos mercados.
O conceito, herdado das doutrinas dos primeiros teóricos liberais como Adam Smith, foi formalizado e as suas implicações tratadas e modeladas matematicamente pelos economistas neoclássicos. É o modelo por excelência do capitalismo, que os estudantes de economia absorvem quase exclusivamente. Os seus defensores de diversos matizes não se cansam de elogiar e defender a «economia de mercado», que no seu entender promove equilíbrios, a eficaz alocação de recursos, a estabilidade dos preços e mais uma série de benesses para bem de toda a população; tudo isto muito lindamente tratado, num ambiente asséptico em que as classes sociais praticamente não entram; a «sociedade» são indivíduos todos iguais, já que motivados pelo mesmo desejo (maximizar o seu prazer); são «factores» como lhes chamam os economistas neoclássicos, factores de produção e factores de consumo.
Num próximo estudo mostraremos porque razão a teoria neoclássica do mercado livre sofre de erros científicos insanáveis nos seus fundamentos. Note-se desde já que a teoria se concentra na análise de «equilíbrios», sendo de pouca ajuda quando eventos de desequilíbrio, como crises, se anunciam no horizonte e finalmente ocorrem. Ben Bernanke, presidente do Banco de Reserva Federal dos EUA, considerado uma das maiores luminárias em economia – e cujas luzes não lhe permitiram prever a Grande Recessão da bolha imobiliária em 2008-2009 – dizia depois assim: «investidores, empregadores e consumidores literalmente ergueram as mãos e admitiram que não fizeram o que não conheciam, ou como Donald Rumsfeld expressou, havia demasiadas incógnitas desconhecidas [‘too many unknown  unknowns’]»; «Também não sabemos muito sobre como parar as bolhas»; «os modelos económicos [neoclássicos] são úteis no contexto para o qual foram projectados… os modelos standard são projectados para episódios que não são crises». Isto é, a economia neoclássica só é útil quando tudo está muito bem equilibradinho, tudo corre bem.
Note-se que no mundo real uma economia totalmente livre de regulações governamentais não existe. Todos os governos dos países capitalistas têm regulamentos sobre produtos que podem e não podem ser vendidos, sobre apoios a conceder à produção nacional (agricultura, pescas, indústrias), sobre programas de apoio social (p. ex. subsídio de desemprego), sobre o mercado de trabalho e condições de trabalho, etc.
Vejamos agora o que se passa relativamente à ideia muito difundida pelos economistas neoclássicos (e mais ainda pelos neoliberais) de que a concorrência totalmente livre, promovida pela economia de mercado livre, evita a formação de desequilíbrios, de monopólios.
Num artigo recente ([1]) os autores analisaram um modelo de mercado livre formado por N indivíduos  ou agentes, cada um com uma dada riqueza que designamos por w. A riqueza dos agentes sobe ou desce consoante trocas de pequenas quantidades de riqueza que efectuam num mercado livre. Quando dois agentes, com riquezas w' e w'', se encontram, trocam entre si uma certa quantidade de riqueza Dw = w' w''/( w' + w''). Esta regra de troca (produto das riquezas a dividir pela soma) implica que a quantidade trocada, Dw, é praticamente metade da riqueza de cada um se as riquezas iniciais forem próximas uma da outra, ou praticamente igual à do agente mais pobre, se forem muito diferentes. A escolha dos agentes e do sentido da troca é feita ao acaso. Consideremos, então, dois agentes com riquezas w' = 10.000€ e w'' = 1.000 € que se encontram no mercado para trocar uma quantidade de riqueza, de w'' para w'. A quantidade a trocar é de Dw = 10.000´1.000/11.000 = 909,09€. Isto é, o agente mais pobre ficaria com 90,91€. Para evitar tão drásticas reduções de riqueza, o modelo permite trocar quantidades menores, usando um parâmetro dito de evasão de risco, r. A quantidade a trocar passa a ser Dw(1 - r). No exemplo anterior, se o factor de evasão de risco for 0,9, a quantidade que w'' entrega a w' é 909,09´0,1 = 90,91. O agente mais pobre evita assim o risco de rapidamente ficar sem nada.
Note-se que o modelo é de perfeita concorrência, os agentes actuam autonomamente com subidas e descidas de fortuna totalmente dependentes do acaso: sorte e fortuna nas transacções de um mercado, sem qualquer interferência (governamental) redistributiva. O que acontece quando este modelo é simulado/experimentado? A figura 1 abaixo mostra a evolução das riquezas de um grande número de agentes cujos valores iniciais estão distribuídos uniformemente num dado intervalo, por exemplo entre 0 € e 20.000 €. O valor médio é de 10.000 €, e o gráfico mostra, para o tempo inicial da experiência, tempo 0, uma distribuição de riqueza (quadrados pretos) entre 0 e 2; como a média da riqueza é um simples factor de escala a distribuição entre 0 e 2 significa de facto entre 0 e 20.000€. A distribuição dos agentes é representada no eixo vertical do gráfico pela fracção n/N, da quantidade de agentes n que tem riqueza num dado intervalo de largura 0,2 (*). No tempo inicial, um décimo do total de N agentes tem riquezas em qualquer dos intervalos de largura 0,2 entre 0 e 2. Daí a linha horizontal de quadrados pretos: a riqueza está uniformemente distribuída entre 0 e 20.000 €. Note-se que, como existem 10 intervalos de largura 0,2 entre 0 e 2, o número total de agentes é efectivamente 10´0,1´N = N.
Repare-se agora o que acontece à distribuição da riqueza à medida que o tempo avança. O gráfico mostras as curvas de distribuição ao fim de 10, 30, 50, …, 800 unidades de tempo. A distribuição de riqueza vai-se cada vez concentrando mais na zona dos baixos valores, enquanto nos altos valores escasseia o número de agentes. De facto, os autores do trabalho demonstram que qualquer que seja a distribuição inicial da riqueza ela tende sempre para uma situação em que todos os agentes ficam com zero euros exceptuando uns poucos que ficam com toda a riqueza. Os autores usam mesmo as palavras de Dante para caracterizar o fenómeno: Lasciate ogni speranza, voi che entrate; não há possibilidades de escapar à convergência para uma situação em que quase todos ficam sem nada e uns poucos ficam com tudo. Este fenómeno é independente do valor do parâmetro de evasão de risco, r. Um maior r apenas influi no tempo que demora a convergência para os monopólios.
  
Fig. 1. Evolução da riqueza de um grande número de agentes, partindo de uma distribuição uniforme. Figura adaptada de [1] para a situação de r = 0.


Neste modelo de mercado livre existia interacção entre os agentes. Será que sem interacção, apenas por investimento da riqueza numa economia sem esquemas redistributivos, como propõem os defensores neoliberais do mercado livre, é possível tender para uma distribuição equitativa da riqueza? Um outro artigo recente ([2]) dá uma resposta a esta questão. Neste estudo considera-se existir N agregados familiares. Cada agregado recebe um certo valor pelo trabalho e tem de decidir quanto gasta em consumo e quanto põe de lado para investimento. O investimento tem um retorno (positivo ou negativo) que depende do acaso com um certo valor médio, a, e um certo desvio padrão (medida de dispersão), s. Todos os agregados estão nas mesmas condições: todos recebem o mesmo valor pelo trabalho e todos têm as mesmas capacidades em termos de paciência (preferência pelo consumo hoje em vez de amanhã) e de habilidade (quanto investir em média); apenas a sorte do investimento pode originar divergência no rendimento dos agregados.
Os autores do artigo demonstram que a riqueza de cada agregado, xi(t) para o agregado número i, evolui com o tempo t da seguinte forma:

xi(t) = xi(0)exp(At + GB i(t)),

onde xi(0) é a riqueza no instante inicial, zero, A e G são factores que dependem dos já citados a, e desvio padrão, s, bem como de um factor de evasão de risco que reflecte quanto vai para consumo e quanto vai para investimento, B i(t) é uma evolução temporal aleatória (**) e exp() é a função exponencial. Em suma, passando por cima de detalhes matemáticos e usando termos simples, a riqueza de um agregado em cada instante de tempo (dia, p. ex.) depende da riqueza à partida e cresce ou decresce de acordo com a conjugação de um factor de acaso (B i(t)) e um factor de crescimento linear (At).
A figura 2 abaixo mostra uma simulação do modelo quando todos os agregados (50.000) partem do mesmo valor inicial, x(0). Mostra, nomeadamente, a porção da riqueza total dos agregados com riqueza entre as 1% mais ricas, entre as 1 a 5% mais ricas e entre as 10% mais pobres. Por exemplo, ao fim de 100 unidades de tempo (podemos supor meses) os agregados de maior riqueza, com riqueza no topo de 1% (linha azul) – por outras palavras, os 500 mais ricos -, detêm conjuntamente cerca de 0,8, isto é 80%, do total de riqueza; 4% dos agregados com riqueza imediatamente inferior aos anteriores detêm conjuntamente cerca de 17% do total; finalmente, os 10% agregados (5.000 agregados) de mais baixa riqueza detêm uns meros 2% do total. Vemos que, à medida que o tempo avança a desigualdade social aumenta. Até cerca de 270 unidades de tempo a porção de riqueza dos 1% do topo ainda está abaixo da porção detida pelos 4% inferiores, mas rapidamente esta situação se altera e quando se atinge 1.000 unidades de tempo a desigualdade social é enorme: os 1% mais ricos agregados familiares detêm já perto de 80% da riqueza total; os 4% mais ricos imediatamente inferiores só detêm cerca de 14%; os 10% mais pobres estão todos na miséria absoluta; detêm praticamente 0% da riqueza.
  
Fig. 2. Evolução da porção da riqueza total possuída pelos agregados familiares com riqueza entre as 1% mais ricas, entre as 1 a 5% mais ricas e entre as 10% mais pobres.


A figura 3 complementa este panorama. Mostra a porção da riqueza total, detida em cada instante de tempo, pelo agregado familiar mais rico. Verifica-se que, se esperarmos tempo suficiente (no caso da figura basta esperar até 5.000 unidades de tempo), acaba por um único agregado familiar deter toda a riqueza!

Fig. 3. Porção da riqueza total, detida em cada instante de tempo, pelo agregado familiar mais rico.


(Estas e outras simulações foram por nós realizadas usando as fórmulas descritas em [2] e confirmam os resultados dos autores.)

Estes trabalhos mostram pois, que na versão mais pura, mais simplificada, de mercado livre, a tendência não é para a formação de distribuições equitativas. O oposto é que é verdade. A tendência é para a formação de monopólios e distribuições extremamente desiguais da riqueza. Será este resultado muito surpreendente? Não. É precisamente o que se verifica na vida real. Sem um papel interventivo do Estado impondo esquemas reguladores e redistributivos a formação de monopólios e de grandes desigualdades sociais é inexorável.
Dizia Milton Friedman acerca da liberdade de mercado: «Uma sociedade que coloca a igualdade antes da liberdade, não obterá nenhuma delas. Uma sociedade que põe a liberdade antes da igualdade obterá um elevado grau de ambas» e ainda «Subjazendo a maior parte dos argumentos contra o mercado livre, está o descrédito na própria liberdade». Friedman foi o «pai» do «milagre económico» do Chile de Pinochet, sociedade onde imperava uma ditadura feroz e onde teve lugar um enorme crescimento da desigualdade social. O que dizer, portanto, de estas e outras «tiradas» das sumidades económicas neoclássicas? Apenas isto: balelas reaccionárias!

 [1] J.R. Iglesias, R.M.V. de Almeida (2012) Entropy and Equilibrium State of the Free Market. European Physical Journal B, vol.85 (3):85.
[2] Fernholz, Ricardo, Robert Fernholz (2012) Wealth distribution without redistribution. Claremont McKenna College working paper.


(*) Esta nossa explicação é uma versão simplificada, para benefício do leitor, da descrição rigorosa. A simplificação que efectuamos é matematicamente inteiramente válida.
(**) Corresponde ao movimento browniano standard simples.