quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte II (Síria e Líbia)

II – Da Dominação Colonial à Independência
Síria
A Síria, tal como o Líbano e o Iraque, era no século XIX província da Turquia (o Império Otomano) ([1]). A partir de 1860 a dívida pública da Turquia sofreu a mesma evolução que já vimos no caso da Tunísia e do Egipto: a construção de infra-estruturas pela Inglaterra e França levou à «concessão» de empréstimos e, o pagamento destes acompanhados de corrupção, à contratação de mais empréstimos (onze, entre 1860 e 1874!), pelo Banco Otomano, de facto um banco anglo-francês. Em 1875 a Turquia declarou-se em bancarrota. Em 1876 um movimento popular levou à instauração de uma constituição com um parlamento de duas câmaras ao estilo burguês voltado para um capitalismo nacional. A burguesia turca impôs, contudo, uma visão chauvinista de uma «única nação otomana».
Em Agosto de 1876 a reacção feudal turca entronizou um sultão arqui-reaccionário, Abdul Hamid, representante dos grandes senhores feudais. Um regime despótico foi imposto que sufocou quaisquer tentativas autonomistas. Um estado de terror e denúncia permanente surgiu. As populações das províncias árabes como a Síria foram duplamente oprimidas: pela Turquia que impunha pesados impostos; pelo imperialismo estrangeiro, francês no caso da Síria, que se apropriou do comércio, passando a Síria a servir de mero apêndice de produção de matérias-primas, nomeadamente de seda em bruto que seguia para as fábricas de seda de Lyon, bem como de tabaco. O Crédit Lyonnais abriu várias agências na Síria. A Síria era nesta época e seria ainda por muito tempo um país habitado por tribos de várias etnias e filiações religiosas; o ensino estava entregue ao clero mais reaccionário; as relações tribais eram patriarcais; a manufactura era do tipo familiar ([2]).
No fim do século XIX a Alemanha penetrou em força na Turquia. O Kaiser Guilherme II, representante dos junkers ([3]) prussianos, tornou-se o grande apoiante de Abdul Hamid e do regime feudal turco. Visitou por duas vezes a Turquia em grande pompa, tendo declarado ser o grande amigo do Sultão e do Islamismo.
Em 1886 estalaram insurreições populares na Síria (principalmente em Alepo) e no Líbano. Em 1904 eram fundadas associações nacionalistas árabes em Paris. Em 1908 estalava a revolução dos Jovens Turcos encabeçada por oficiais como Mustafá Kemal (conhecido por Ataturk, «pai dos turcos»). Kemal e seus companheiros eram revolucionários burgueses que temiam as massas populares, defendiam inicialmente um entendimento com o sultão, e defendiam uma visão chauvinista pan-otomana. Embora tendo prometido (a contragosto) defender os interesses nacionais árabes durante o período da «fraternidade árabe-otomana» (1908-1909), a breve trecho, já depois da deposição do sultão em 1909, optaram por trair os compromissos anteriores e seguir uma linha chauvinista e reaccionária, defendendo nomeadamente a preservação da propriedade latifundiária feudal, o abandono de reformas de impostos a favor das massas camponesas e outras medidas, como a lei anti-greve contra os trabalhadores.
Na véspera da 1.ª Grande Guerra, as autoridades turcas tinham esmagado movimentos autonomistas, quer das correntes que defendiam a insurreição anti-turca (El-Ahd, que previa, um entendimento com a Entente; o seu principal dirigente estav ligado ao serviço secreto inglês) quer das correntes reformistas (Qahtanya), que ainda pensavam ser possível um entendimento com a Turquia. Vários dirigentes sírios refugiaram-se no Cairo durante a guerra.
A guerra representou uma penúria tremenda das massas populares da Síria e de outras províncias, vítimas de requisições e roubos constantes. No final da guerra os nacionalistas sírios aceitaram o «Protocolo de Damasco» que previa o envolvimento da Inglaterra na formação de um Estado árabe no âmbito de uma aliança dos feudais e da burguesia árabes («pan-arabismo»). A França, temerosa pela perda das suas posições na Síria, conseguiu, contudo, mercê de vários estratagemas como o trabalho político entre os refugiados árabes e o envio de missionários e quadros técnicos para a Síria, impor uma aliança Franco-Síria. Em 1918, depois do colapso do exército turco-alemão, o acordo Sykes-Picot reconhecia os «direitos administrativos» franceses no Líbano e na Síria. Em 1919, o Congresso Nacional Sírio (CNS) realizou eleições que foram ganhas (80%) pelos elementos mais conservadores. Em Março de 1920 rebentou uma insurreição popular quando Faisal (o dirigente do Estado pan-árabe) assinou um acordo com a França e o dirigente sionista sobre a imigração de judeus para a Palestina. Logo a seguir, o Tratado de Sèvres impôs o mandato francês sobre a Síria e as tropas francesas entravam em Damasco a 24 de Julho de 1920, depois de terem vencido uma batalha contra o exército sírio. Faisal era expelido de Damasco; terminava a ilusão de um Estado pan-árabe. A Síria convertia-se em colónia francesa governada por um Alto Comissário. Em 1932 a Síria estava organizada em quatro distritos, segundo linhas confessionais: Alepo (sunitas), Latakia (alauítas, um ramo dos xiitas), Damasco (população mista com cristãos maronitas) e Jebel Druse (drusos, ramo ismaílita dos xiitas com influêcnias gnósticas). A língua e cultura francesa foram impostas e os movimentos nacionalistas reprimidos.
Em 1925 os drusos encabeçaram uma revolta que alastrou a Damasco, Alepo e outras cidades. Em 1927 Damasco foi submetida a bombardeamento aéreo e terrestre, o que levantou uma onda de indignação mundial, procurando então a França chegar a um compromisso com os nacionalistas que veio a redundar num acordo em 1936. Em 1941, em plena 2.ª Guerra Mundial, tropas inglesas e da França livre ocuparam a Síria expulsando os colaboradores de Vichy. Como país fornecedor de bens essenciais a economia Síria progrediu durante a 2.ª Guerra, tendo aumentado o comércio e a acumulação de capitais dos mercadores e pequenos industriais ([2]).Em 1945, a Síria tornou-se independente e separada do Líbano, mas só em 17 de Abril de 1946 as últimas tropas francesas abandonaram o solo sírio ([4]).
Líbia
Antes de conquistada pelos italianos a Líbia era designada por província da Tripolitânia do Império Otomano, governada por um paxá nomeado pelo sultão. A penetração turca na Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan no século XIX tinha deparado com feroz resistência das tribos locais (beduínos, berberes e tuaregues). A luta foi encabeçada pela irmandade religiosa islâmica dos senussitas, primeiro pelo seu fundador, Mohamed es-Senussi, e depois pelo irmão el-Mahdi. As bases logísticas senussitas eram mosteiros cujas terras em redor eram cultivadas por nómadas, forçados a trabalhar, e por escravos.
A Itália, que não tinha sido contemplada na partilha colonial do Tratado de Berlim de 1878 e que tinha sido enxotada pelos franceses quando mostrou ambições na Tunísia, aproveitou rivalidades entre as potências europeias, firmando uma série de acordos secretos tendentes ao reconhecimento dos seus «direitos» sobre a Líbia. Por fim, em 28 de Setembro de 1911, decidiu a conquista da Líbia apresentando como pretexto que queria dar à Tripolitânia o «benefício do progresso» e que a Turquia se opunha a este direito legítimo! A Turquia opôs-se mas estava isolada. A armada italiana bloqueou Tripoli e um corpo expedicionário de 34.000 homens desembarcou e tomou Tripoli, Derna, Bengazi e Homs em 15 dias (5 a 20 de Outubro de 1911). A Itália depois da conquista determinou que o nome do território seria «Líbia» (com base na tradição romana).
Os turcos abandonaram a luta (embora só reconhecessem a suserania da Itália depois da 2.ª Guerra Mundial) mas o mesmo não fizeram as tribos locais que desencadearam feroz resistência. Em 23 de Outubro tinham dizimado grande parte do corpo expedicionário italiano apesar da clara superioridade em armamento do exército italiano ([5]). Um ano depois os italianos continuavam acantonados nas cidades costeiras após terem massacrado 14.800 árabes. Só em Abril de 1913 os italianos conseguiram penetrar nas montanhas da Cirenaica onde enfrentaram a guerrilha dos senussitas que tinham proclamado a guerra santa.
Em 1916, o início da 1.ª Guerra Mundial forçou de novo os italianos a refugiarem-se no litoral. Em Abril de 1917 a Inglaterra e a Itália firmaram um acordo com um dos chefes senussitas, Mohamed Idris, no sentido de os ajudar contra alemães e turcos a troco do reconhecimento de Idris como príncipe e do fornecimento de provisões e armamento. Em Novembro de 1918 um exército de 80.000 italianos desembarcou em Tripoli. A persistência e heroísmo da luta dos líbios dirigidos pelo herói nacional Omal al-Moktar (o «leão do deserto») foi admirável. O regime fascista italiano, através do governador fascista Graziani, construiu 16 campos de concentração e neles encarcerou cerca de 100.000 líbios; 55% morreram de fome, doença e maus-tratos. Em Setembro de 1931 Omar al-Moktar foi preso e enforcado; tinha 80 anos. Só em 1933, à custa de campos de concentração, massacres e represálias cruéis, a Itália consumou o seu domínio colonial na Líbia ([5]).
Entretanto, o regime fascista tinha lançado um programa ambicioso de colonização, que representou o aniquilamento da agricultura e comércio nativos. Estes factores, conjugados com a repressão dos anos trinta, fez com que a população líbia praticamente não tivesse aumentado entre 1911 e 1950: 1,5 milhões. Destes, cerca de 188 mil (um oitavo) eram italianos.
Os líbios que escaparam aos campos de concentração foram obrigados a trabalhar em condições de semi-escravatura na construção da estrada ao longo da costa e nas herdades dos colonos italianos: 85.000 até 1936. Nas indústrias, os italianos limitaram-se a desenvolver pequenas indústrias pré-existentes como a do processamento do atum e do azeite. Destruíram a criação de gado; o número de carneiros, por exemplo, passou de 810 mil em 1926 para 98 mil em 1933. Além disso, a preparação que deram aos líbios nas tarefas administrativas e na escolaridade foram bastante limitadas ([6]). Durante a colonização fascista a economia cresceu, nomeadamente na agricultura, mas em benefício exclusivo dos colonos e do Estado fascista.
Os líbios foram aceites como membros do partido fascista. Mussolini visitou Tripoli e declarou-se «Protector do Islão». Foram obrigados a servir no exército italiano durante a 2.ª Guerra Mundial, ao serviço do «Protector do Islão», embora a máxima graduação que atingiam era a de sargento ([6]).
No final da guerra os ingleses controlavam a Tripolitânia e a Cirenaica e os franceses o Fezzan. Em 1945, o dirigente senussita Idris al-Mahdi as-Senussi, emir da Cirenaica, que tinha resistido à ocupação italiana durante as duas guerras mundiais, regressou do exílio no Cairo. Em 24 de Dezembro de 1951 a Líbia tornava-se uma monarquia independente sob Idris al-Mahdi as-Senussi, o rei Idris I.

[1] A Síria esteve durante muitos anos ligada ao Líbano por laços étnicos e religiosos. No Líbano, Síria e Iraque registaram-se durante a primeira metade do século XIX movimentos autonomistas (e até independentistas no caso do Líbano), embora não tenham vingado.
[2] Philip K Hitti (1959) Syria: A Short History. MacMillan Company.
[3] Designação dada à nobreza latifundiária da Prússia e Alemanha do Leste.
[4] Karin Leukenfeld (2011). Syria: A Historical Perspective on the Current Crisis. Global Research.
[5] V. Lutsky (1969) Modern History of the Arab Countries. Progress Pub., Moscovo.
[6] A.A. Boahen (1990) General History of Africa, vol. 7 (Africa under colonial domiantion 1880-1935). The Colonial Economy: North Africa (pp. 186-199). Unesco, James Currey Pub.