quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A «sociedade participativa» e Portugal

No passado dia 17 de Setembro a Associated Press noticiava que o rei holandês tinha feito um anúncio histórico numa reunião comemorativa conjunta da Câmara Alta e da Câmara Baixa holandesas. Anunciou que o «Estado de bem-estar social» do século XX tinha terminado ([1]). Em substituição desse «Estado de bem-estar» estava a emergir a «sociedade participativa» (ou «sociedade de participação»: «participation society» no original [2]).

O que é a «sociedade participativa»? perguntará o leitor. Algum novo e progressivo estádio do desenvolvimento humano, mais avançado que o capitalismo do «Estado de bem-estar»?
Note-se que mesmo quanto ao «Estado de bem-estar» do Norte da Europa haveria muito a dizer. Os capitalistas dessas «opulentas sociedades de bem-estar» limitaram-se a desviar uma pequena parte das mais-valias criadas pelos imigrantes (turcos, marroquinos, etc.) e pela exploração desalmada de povos inteiros do planeta de onde sacaram matérias-primas estratégicas a baixo custo (basta apontar como exemplo o saque do petróleo nigeriano pela anglo-holandesa Shell e o desastre social e ecológico que causou) para proporcionar um razoável nível de vida aos trabalhadores autóctones e, claro, bónus substanciais aos dirigentes sindicais que apoiaram a colaboração de classes (estabelecendo acordos anti-greve). Quanto a turcos, marroquinos, etc., foram empurrados para guetos com modestos níveis de vida.

Mas voltemos à questão inicial: é a «sociedade participativa» um estádio mais avançado do desenvolvimento humano?

Não.

É um estádio regressivo do capitalismo e do desenvolvimento humano das sociedades «ocidentais» que começaram desde há uns anos a experimentar os efeitos desse estádio emergente.

De facto, o rei explicou o que se entendia por «sociedade participativa»: é a sociedade em que «cada um toma responsabilidade pelo seu próprio futuro e cria os seus próprios apoios de segurança social e financeira, com a ajuda do governo». «Esta mudança para a "sociedade participativa" é especialmente visível na segurança social e nos cuidados a longo prazo». Isto porque «O estado de bem-estar clássico da segunda metade do século XX, particularmente nas citadas áreas [segurança social e financeira, cuidados a longo prazo] desenvolveu organismos que não são sustentáveis na forma actual».

Em suma, e tirando os eufemismos, o que o rei disse é que a «sociedade participativa» é o retrocesso ao capitalismo sem segurança social, sem garantias de emprego e salário (sem «segurança financeira») e sem perspectivas de reformas, pensões e cuidados de saúde (sem «cuidados a longo prazo»). Cada um que se desenrasque -- tome «responsabilidade pelo seu próprio futuro» -- «com a ajuda do governo». Mas esta «ajuda do governo» pós-«Estado-providência» é meramente decorativa e só serve para enternecer os ouvintes, dado que não pode significar mais do que meros aconselhamentos. E cheios de bons conselhos estão o grande capital e o seu Estado. Vimos bem isso em Portugal quer com o banqueiro Fernando Ulrich (achou que devemos aguentar com a austeridade porque até os sem-abrigo aguentam), quer com Passos Coelho (achou que o desemprego e a emigração criam novas oportunidades), quer com outros.

Convém, desde já, notar que quem escreveu o discurso do rei foi o primeiro-ministro do actual governo holandês que é do Partido Liberal. E também convém notar que o Partido Liberal está no governo em coligação com o Partido do Trabalho (o equivalente ao nosso PS), de que uma figura de proa é o Sr. Jeroen Dijsselbloem, actual Presidente do Eurogrupo, instituição que congrega os ministros da Economia e Finanças dos Estados-Membros da Eurozona. E é bem sabido que o Sr. Jeroen Dijsselbloem é um grande apoiante das políticas de Angela Merkel.

Portanto, a ideia da «sociedade participativa» não proveio do rei (aliás, bem alheado dessas «coisas» teóricas, [3]). Podemos estar seguros que é uma ideia de propaganda, despudoradamente construída pelos teóricos de Bruxelas ao serviço do grande capital, em particular dos que decretam as políticas de austeridade na Zona Euro, com vista a deitar poeira aos olhos dos trabalhadores. Note-se que a austeridade já não toca só os países do Sul da Europa. Na própria Holanda têm vindo a ser aplicadas várias medidas de austeridade com as consequências habituais: recessão, falências (existem, como cá, centros comerciais com quase todas as lojas fechadas), desemprego (que já está em 8,7% e deverá subir). Se fosse só nos países do Sul provavelmente o governo holandês nem se teria dado ao incómodo do anúncio do advento da «sociedade participativa» (anúncio feito, com toda a solenidade, através da sacrossanta boca do rei), deixando-nos a nós, os pobretanas do Sul, na santa ignorância de tão seráfico advento. 

De tudo isto, o importante a reter é: a falta de perspectivas do sistema capitalista é implicitamente admitida pelos corifeus económicos e financeiros de Bruxelas. Eles sabem perfeitamente que as políticas de austeridade não vão trazer qualquer solução no sentido de proporcionar um nível de vida digno aos trabalhadores. Resta-lhes apenas vender a solução capitalista anterior à 2.ª Guerra Mundial (e, em certos aspectos, anterior a ela, [4]) como se fosse uma ideia inovadora, anunciada com trombetas reais.

Temos vindo, ao longo de muitos artigos deste blog, a chamar a atenção para o facto de que a actual crise não é uma «crise do euro», isto é, tendo como causa principal o uso de uma moeda única. É uma crise do capitalismo. Mais: ainda não conhecíamos nem o discurso do rei holandês nem a ideia da «sociedade participativa» quando procurámos demonstrar com factos e números a insustentabilidade do desenvolvimento económico no sistema capitalista (ver, em particular: http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-iv-causa-da.html; http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-vi-valor.html ).

Mas voltemos ao discurso do rei. Diz ele que as pessoas esperam e «querem fazer as suas próprias escolhas, organizar as suas próprias vidas, e tomar conta umas das outras.». As pessoas querem ser «independentes do governo» e devem pedir às famílias, amigos e vizinhos para os ajudar quando têm necessidade.

O cinismo destas frases é evidente. Recapitulando:

Desemprego: não há mal nenhum nisso porque os desempregados até «querem ser independentes do governo», querem ser ajudados pelas famílias, amigos e vizinhos.

Pensões, reformas, cuidados de saúde, etc.: nada de Estado; as pessoas esperam e «querem fazer as suas próprias escolhas, organizar as suas próprias vidas, e tomar conta umas das outras.»

Só faltou dizer que os milhões de cidadãos que vivem actualmente na miséria ou à beira dela também não querem nada do Estado, não querem sequer ouvir falar de segurança social, cuidados médicos, etc. (A propósito: segundo dados do Eurostat, a percentagem da população holandesa em risco de cair na pobreza ou na exclusão social subiu para 15,7% em 2011; em Portugal é de 24,4%). Nada disso. Querem, sim, ser «independentes», ser capazes de «fazer as «suas próprias escolhas». Se alguém do governo lhes aparece a oferecer uma reforma ou um cuidado médico ainda são capazes de o correr a pontapé por estar a impedir de serem «independentes» e capazes de «fazer a sua própria escolha» à custa da participação de familiares, amigos e vizinhos. Viva a «sociedade participativa»!

Isto é, regressamos a essa abençoada época em que os trabalhadores eram pobrezinhos, e gozavam desse gozo inebriante de serem alvo da caridadezinha, das sociedades filantrópicas, dos exércitos de salvação, etc.
Os capitalistas, é claro, também vão ter a sua dose de «participação». Vão continuar a participar no saque de mais-valias criadas pelos trabalhadores. Mas agora vão ter ainda mais possibilidades de participação: vão poder participar em acrescidas e inúmeras sociedades caritativas de ajuda aos pobres. Em Portugal, se calhar, ainda iremos assistir ao ressurgir do Movimento Nacional Feminino, com ampla e honrosa participação de primeiras-damas, de socialites e de esposas de abastados banqueiros, todas prenhes de virtudes cristãs, todas comandando a distribuição de sopa dos pobres e de alguns trapos velhos.

*    *    *

Se há coisa em que Portugal bate a Holanda aos pontos é que já estamos muito mais avançados na construção da «sociedade participativa»:

- Temos um desemprego em crescimento, que o governo estima aumentar em 2014 para 17,4%. Isto, apesar de algum decréscimo anunciado em Setembro; só que se tratava de decréscimo causado pelo trabalho sazonal de serviço à mesa em esplanadas por 310 euros por mês (JN, 26/9/2013). Além de que, no cômputo do desemprego, o governo não tem em conta a emigração. Ora, se ao menos todos os desempregados emigrassem, em vez de andarem para aí com reivindicações, o governo teria o grato prazer de anunciar a descida da taxa desemprego para 0%.

- Para além dos cortes já efectuados nas reformas e pensões, sabemos agora que em 2014 vai haver novos cortes, da ordem de 10%, em pensões de sobrevivência e noutras (JN, 7/10/2013).

- Temos um sistema de educação em ruínas com um número de docentes correspondente ao que tínhamos há 16 anos atrás (JN, 5/10/2013).

- Temos postos de finanças fechados que obrigam muitos contribuintes a andar 100 km (JN, 7/10/2013) para tratarem dos impostos.

- Temos cada vez menos médicos e enfermeiras nos centros de saúde e cada vez mais valências fechadas nesses centros (e mesmo extinção de centros).

- Temos um sistema de justiça absolutamente ridículo e desacreditado (ver, a propósito, [5]).

- etc., etc.

E, finalmente, a coroar superiormente a nossa «sociedade participativa» temos uma «sopa dos pobres» que faz inveja à que existia em 1945.

A continuar neste caminho vamos fazer inveja à restante Europa com a nossa inovativa, criadora, espantosa e magnífica construção de uma «sociedade participativa».




[1] Toby Sterling, "Dutch King: Say Goodbye to Welfare State" Associated Press, 17/9/2013. Ver também Vonk (Netherlands), "Dutch king declares the end of the welfare state",  www.marxisten.nl  27/9/2013.


[2] A palavra (composta) holandesa «participatiesamenleving» significa precisamente «sociedade de participação».


[3] O rei está ligado aos interesses do grande capital através dos bens próprios e fundos de investimento que detém ou em que participa. Quis aplicar em 2009 um vultuoso investimento para construir uma estância de luxo em Moçambique, o que gerou controvérsia no parlamento holandês tendo sido questionado sobre a moralidade de construir tal instância num país tão pobre como é Moçambique.


[4] Citamos aqui um texto do Instituto de Segurança Social. «Foi a Lei n.º 1.884, de 16 de Março de 1935 que, em conjunto com diversos diplomas posteriores de regulamentação, lançou a estrutura para a criação de um sistema de seguros sociais obrigatórios correspondente ao modelo então em vigor em muitos países europeus. Em obediência aos princípios corporativos estabelecidos na constituição política de 1933 e no estatuto do trabalho nacional, esta lei determinava as bases da então designada previdência social que, tendencialmente, deveria abranger os trabalhadores por conta de outrem, do comércio, indústria e serviços. O âmbito material do sistema era limitado a prestações de doença (cuidados de saúde e subsídio de doença), invalidez, velhice e morte, geridas fundamentalmente por caixas sindicais de previdência, na sua maioria de âmbito nacional. Os trabalhadores do sector agrícola e do sector das pescas viriam a ser enquadrados em sistemas de protecção social específica geridos pelas casas do povo e casas dos pescadores.


[5] A. Marinho e Pinto, "Diarreia legislativa", JN 2/9/2013.