O que é a «sociedade participativa»? perguntará
o leitor. Algum novo e progressivo estádio do desenvolvimento humano, mais
avançado que o capitalismo do «Estado de bem-estar»?
Note-se que mesmo quanto ao «Estado de
bem-estar» do Norte da Europa haveria muito a dizer. Os capitalistas dessas «opulentas
sociedades de bem-estar» limitaram-se a desviar uma pequena parte das
mais-valias criadas pelos imigrantes (turcos, marroquinos, etc.) e pela
exploração desalmada de povos inteiros do planeta de onde sacaram
matérias-primas estratégicas a baixo custo (basta apontar como exemplo o saque
do petróleo nigeriano pela anglo-holandesa Shell e o desastre social e
ecológico que causou) para proporcionar um razoável nível de vida aos
trabalhadores autóctones e, claro, bónus substanciais aos dirigentes sindicais
que apoiaram a colaboração de classes (estabelecendo acordos anti-greve).
Quanto a turcos, marroquinos, etc., foram empurrados para guetos com modestos
níveis de vida.
Mas voltemos à questão inicial: é a «sociedade
participativa» um estádio mais avançado do desenvolvimento humano?
Não.
É um estádio
regressivo do capitalismo e do desenvolvimento humano das sociedades
«ocidentais» que começaram desde há uns anos a experimentar os efeitos desse
estádio emergente.
De facto, o rei explicou o que se entendia por
«sociedade participativa»: é a sociedade em que «cada um toma responsabilidade
pelo seu próprio futuro e cria os seus próprios apoios de segurança social e
financeira, com a ajuda do governo». «Esta mudança para a "sociedade
participativa" é especialmente visível na segurança social e nos cuidados
a longo prazo». Isto porque «O estado de bem-estar clássico da segunda metade
do século XX, particularmente nas citadas áreas [segurança social e financeira,
cuidados a longo prazo] desenvolveu organismos que não são sustentáveis na
forma actual».
Em suma, e tirando os eufemismos, o que o rei
disse é que a «sociedade participativa» é o retrocesso
ao capitalismo sem segurança social, sem garantias de emprego e salário (sem
«segurança financeira») e sem perspectivas de reformas, pensões e cuidados de
saúde (sem «cuidados a longo prazo»). Cada um que se desenrasque -- tome
«responsabilidade pelo seu próprio futuro» -- «com a ajuda do governo». Mas
esta «ajuda do governo» pós-«Estado-providência» é meramente decorativa e só
serve para enternecer os ouvintes, dado que não pode significar mais do que
meros aconselhamentos. E cheios de bons conselhos estão o grande capital e o
seu Estado. Vimos bem isso em Portugal quer com o banqueiro Fernando Ulrich
(achou que devemos aguentar com a austeridade porque até os sem-abrigo
aguentam), quer com Passos Coelho (achou que o desemprego e a emigração criam
novas oportunidades), quer com outros.
Convém, desde já, notar que quem escreveu o
discurso do rei foi o primeiro-ministro do actual governo holandês que é do
Partido Liberal. E também convém notar que o Partido Liberal está no governo em
coligação com o Partido do Trabalho (o equivalente ao nosso PS), de que uma
figura de proa é o Sr. Jeroen Dijsselbloem, actual Presidente do Eurogrupo, instituição
que congrega os ministros da Economia e Finanças dos Estados-Membros da
Eurozona. E é bem sabido que o Sr. Jeroen Dijsselbloem é um grande apoiante das
políticas de Angela Merkel.
Portanto, a ideia da «sociedade participativa»
não proveio do rei (aliás, bem alheado dessas «coisas» teóricas, [3]). Podemos
estar seguros que é uma ideia de
propaganda, despudoradamente construída pelos teóricos de Bruxelas ao serviço
do grande capital, em particular dos que decretam as políticas de austeridade
na Zona Euro, com vista a deitar poeira aos olhos dos trabalhadores. Note-se
que a austeridade já não toca só os países do Sul da Europa. Na própria Holanda
têm vindo a ser aplicadas várias medidas de austeridade com as consequências
habituais: recessão, falências (existem, como cá, centros comerciais com quase
todas as lojas fechadas), desemprego (que já está em 8,7% e deverá subir). Se
fosse só nos países do Sul provavelmente o governo holandês nem se teria dado
ao incómodo do anúncio do advento da «sociedade participativa» (anúncio feito,
com toda a solenidade, através da sacrossanta boca do rei), deixando-nos a nós,
os pobretanas do Sul, na santa ignorância de tão seráfico advento.
De tudo isto, o importante a reter é: a falta de perspectivas do sistema
capitalista é implicitamente admitida pelos corifeus económicos e financeiros
de Bruxelas. Eles sabem perfeitamente que as políticas de austeridade não
vão trazer qualquer solução no sentido de proporcionar um nível de vida digno
aos trabalhadores. Resta-lhes apenas vender a solução capitalista anterior à
2.ª Guerra Mundial (e, em certos aspectos, anterior a ela, [4]) como se fosse
uma ideia inovadora, anunciada com trombetas reais.
Temos vindo, ao longo de muitos artigos deste
blog, a chamar a atenção para o facto de que a actual crise não é uma «crise do
euro», isto é, tendo como causa principal o uso de uma moeda única. É uma crise
do capitalismo. Mais: ainda não conhecíamos nem o discurso do rei holandês nem
a ideia da «sociedade participativa» quando procurámos demonstrar com factos e
números a insustentabilidade do desenvolvimento económico no sistema
capitalista (ver, em particular: http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-iv-causa-da.html;
http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-vi-valor.html
).
Mas voltemos ao discurso do rei. Diz ele que
as pessoas esperam e «querem fazer as suas próprias escolhas, organizar as suas
próprias vidas, e tomar conta umas das outras.». As pessoas querem ser
«independentes do governo» e devem pedir às famílias, amigos e vizinhos para os
ajudar quando têm necessidade.
O cinismo destas frases é evidente. Recapitulando:
Desemprego: não há mal nenhum nisso porque os
desempregados até «querem ser independentes do governo», querem ser ajudados
pelas famílias, amigos e vizinhos.
Pensões, reformas, cuidados de saúde, etc.:
nada de Estado; as pessoas esperam e «querem fazer as suas próprias escolhas,
organizar as suas próprias vidas, e tomar conta umas das outras.»
Só faltou dizer que os milhões de cidadãos que
vivem actualmente na miséria ou à beira dela também não querem nada do Estado,
não querem sequer ouvir falar de segurança social, cuidados médicos, etc. (A
propósito: segundo dados do Eurostat, a percentagem da população holandesa em
risco de cair na pobreza ou na exclusão social subiu para 15,7% em 2011; em
Portugal é de 24,4%). Nada disso. Querem, sim, ser «independentes», ser capazes
de «fazer as «suas próprias escolhas». Se alguém do governo lhes aparece a
oferecer uma reforma ou um cuidado médico ainda são capazes de o correr a
pontapé por estar a impedir de serem «independentes» e capazes de «fazer a sua
própria escolha» à custa da participação
de familiares, amigos e vizinhos. Viva a «sociedade participativa»!
Isto é, regressamos a essa abençoada época em
que os trabalhadores eram pobrezinhos, e gozavam desse gozo inebriante de serem
alvo da caridadezinha, das sociedades filantrópicas, dos exércitos de salvação,
etc.
Os capitalistas, é claro, também vão ter a sua
dose de «participação». Vão continuar a participar
no saque de mais-valias criadas pelos trabalhadores. Mas agora vão ter ainda mais
possibilidades de participação: vão poder participar
em acrescidas e inúmeras sociedades caritativas de ajuda aos pobres. Em
Portugal, se calhar, ainda iremos assistir ao ressurgir do Movimento Nacional
Feminino, com ampla e honrosa participação de primeiras-damas, de socialites e de
esposas de abastados banqueiros, todas prenhes de virtudes cristãs, todas
comandando a distribuição de sopa dos pobres e de alguns trapos velhos.
* *
*
Se há coisa em que Portugal bate a Holanda aos
pontos é que já estamos muito mais avançados na construção da «sociedade
participativa»:
- Temos um desemprego em crescimento, que o
governo estima aumentar em 2014 para 17,4%. Isto, apesar de algum decréscimo
anunciado em Setembro; só que se tratava de decréscimo causado pelo trabalho
sazonal de serviço à mesa em esplanadas por 310 euros por mês (JN, 26/9/2013). Além
de que, no cômputo do desemprego, o governo não tem em conta a emigração. Ora,
se ao menos todos os desempregados emigrassem, em vez de andarem para aí com
reivindicações, o governo teria o grato prazer de anunciar a descida da taxa
desemprego para 0%.
- Para além dos cortes já efectuados nas
reformas e pensões, sabemos agora que em 2014 vai haver novos cortes, da ordem
de 10%, em pensões de sobrevivência e noutras (JN, 7/10/2013).
- Temos um sistema de educação em ruínas com
um número de docentes correspondente ao que tínhamos há 16 anos atrás (JN,
5/10/2013).
- Temos postos de finanças fechados que
obrigam muitos contribuintes a andar 100 km (JN, 7/10/2013) para tratarem dos
impostos.
- Temos cada vez menos médicos e enfermeiras
nos centros de saúde e cada vez mais valências fechadas nesses centros (e mesmo
extinção de centros).
- Temos um sistema de justiça absolutamente
ridículo e desacreditado (ver, a propósito, [5]).
- etc., etc.
E, finalmente, a coroar superiormente a nossa
«sociedade participativa» temos uma «sopa dos pobres» que faz inveja à que
existia em 1945.
A continuar neste caminho vamos fazer inveja à
restante Europa com a nossa inovativa, criadora, espantosa e magnífica
construção de uma «sociedade participativa».
[1] Toby Sterling, "Dutch
King: Say Goodbye to Welfare State" Associated Press, 17/9/2013.
Ver também Vonk (Netherlands), "Dutch king declares the end of the welfare state", www.marxisten.nl 27/9/2013.
[2] A palavra (composta) holandesa «participatiesamenleving» significa precisamente «sociedade de participação».
[3] O rei está ligado aos interesses do grande
capital através dos bens próprios e fundos de investimento que detém ou em que
participa. Quis aplicar em 2009 um vultuoso investimento para construir uma
estância de luxo em Moçambique, o que gerou controvérsia no parlamento holandês
tendo sido questionado sobre a moralidade de construir tal instância num país
tão pobre como é Moçambique.
[4] Citamos aqui um texto do Instituto de Segurança
Social. «Foi
a Lei n.º 1.884, de 16 de Março de 1935 que, em conjunto com diversos diplomas
posteriores de regulamentação, lançou a estrutura para a criação de um sistema
de seguros sociais obrigatórios correspondente ao modelo então em vigor em
muitos países europeus. Em obediência aos princípios corporativos estabelecidos
na constituição política de 1933 e no estatuto do trabalho nacional, esta lei
determinava as bases da então designada previdência social que,
tendencialmente, deveria abranger os trabalhadores por conta de outrem, do
comércio, indústria e serviços. O âmbito material do sistema era limitado a
prestações de doença (cuidados de saúde e subsídio de doença), invalidez,
velhice e morte, geridas fundamentalmente por caixas sindicais de previdência,
na sua maioria de âmbito nacional. Os trabalhadores do sector agrícola e do sector
das pescas viriam a ser enquadrados em sistemas de protecção social específica
geridos pelas casas do povo e casas dos pescadores.
[5] A. Marinho e Pinto, "Diarreia legislativa", JN 2/9/2013.