«A verdade nua e
crua é que as opulentas sociedades ocidentais encorajam valores, atitudes e
estruturas de personalidade conducentes ao crime de colarinho branco. Nas
palavras de Ian Taylor*, a economia de mercado promove o crime
através da
"exaltação da cultura de
competição darwiniana por estatuto [social] e por recursos, e encoraja um
nível de consumo que não é capaz de proporcionar a todos por meios
legítimos"
Neste ambiente
os vigaristas criaram tentadoras e frequentemente engenhosas armadilhas de
fazer dinheiro, prometendo recompensas principescas aos crédulos. As vítimas
sucumbem às tentações que lhes oferecem, na esperança de obter muito
dinheiro, ao qual se julgam com direito, aqui e agora, já.
Vigaristas
impiedosos e concertados quebram a lei porque é a maneira mais fácil de
obterem dinheiro. Juntamente com o desejo de riqueza coexiste o desejo de
provar que conseguem ganhar as lutas competitivas, que têm um lugar proeminente
nos nossos sistemas económicos. Os vencedores são admirados pela sua
habilidade e energia.»
|
|
*[Pensamos que não
se trata de uma citação de Ian Taylor, mas sim do sociólogo Currie, E.
(1997), do seu livro "Market
Society and Social Disorder"]
|
O texto acima (por nós traduzido da versão
inglesa) não é de um marxista, mas sim de um defensor do capitalismo. O seu
autor é Kari Nars, ex-presidente do Banco Central da Finlândia. O texto consta
da primeira página do livro de Kari Nars «Swindling
Billions: An Extraordinary History of the Great Money Fraudsters» («Burlas
de Biliões: Uma História Extraordinária dos Grandes Burlões Financeiros», [1];
note-se que temos vindo a usar «bilião» neste blog com o significado de mil
milhões).
O livro contém muita informação de interesse.
Nele o autor revela alguns mecanismos de burla financeira que se tornaram
«exemplos» históricos. Nas 250 páginas do livro só há espaço para revelar
«alguns» dos mecanismos de burla. O conjunto de todas as variantes de burlas
financeiras encheria vários volumes. Principalmente desde que o neoliberalismo,
que rege as «opulentas sociedades ocidentais» a partir de meados dos anos
setenta, tornou o sector financeiro no último e decadente refúgio da «economia
de mercado». Refúgio dos vigaristas oficiais e dos vigaristas do costume (a
estes não se refere Kari Nars).
* *
*
A «história» de Kari Nars começa nos
primórdios do capitalismo com a bolha especulativa de John Blunt em 1711-1721.
John Blunt vendia acções da Companhia dos Mares do Sul, em Londres, a preços
inflacionados. Pela mesma época o escocês John Law ludibriava em Paris a corte
de Luís XV e a burguesia parisiense com um esquema semelhante, envolvendo
acções da Companhia do Mississipi. Entretanto, os instrumentos e estratagemas usados
pelo capital financeiro para ludibriarem o próximo têm crescido dramaticamente.
Actualmente, com as técnicas informáticas e a globalização das comunicações,
«nascem» todos os meses novos esquemas de burla financeira. Além disso, como já
assinalámos várias vezes neste blog (ver, p. ex., [2]) nas «opulentas
sociedades ocidentais» (opulentas apenas para uma pequena camada da população,
bem entendido) o sector produtivo do capitalismo (designadamente, agricultura,
minas e indústrias transformadoras) enfrenta baixas taxas de lucro o que
empurra todos os dias os grandes capitalistas a procurarem a obtenção de
grandes lucros em sectores de serviços, principalmente no sector de serviços financeiros.
Nas sociedades «ocidentais» (EUA, Canadá, UE, Japão) o sector financeiro é,
actualmente, um sector muito importante e em crescimento da economia
(juntamente com o sector de serviços) enquanto o sector produtivo está em declínio.
Por exemplo, nos EUA entre 1948 e 2009, o sector financeiro (agregando, para
além das actividades financeiras propriamente ditas, o
imobiliário e serviços a empresas) mais que duplicou a sua contribuição para o PIB: de 10% para
22,6%. Por comparação, o sector produtivo (agregando agricultura, minas,
indústrias e transportes) decresceu na sua contribuição para o PIB de 58,6%
para 23,3% ([3]; ver também [4]).
Se nos restringirmos às actividades
financeiras propriamente ditas (bancos, empresas de investimento, seguros) a
contribuição para o PIB nos EUA era em 2011 de 8,6% (ver figura abaixo). No Canadá era de 6,5% em 2012. No Japão era de cerca de 5% em 2010, mas o partido no governo propunha-se aumentar a
importância do sector financeiro para valores acima de 10% ([5]).
Evolução da contribuição percentual do sector financeiro para o PIB dos
EUA ([4]). Source:
Bureau of Economic Analysis.
Em quase todos os países da UE (as excepções
são a Alemanha e a França que continuam a apostar forte no sector produtivo,
embora também aqui se observe a tendência de declínio) constata-se o mesmo
fenómeno. Por exemplo, na Irlanda, o sector financeiro viu a sua contribuição
para o PIB aumentar de 7,3% para 11,8%
entre 2000 e 2009 ([6]). No mesmo período e em Portugal aumentou de 5,5% para
7,1% (7,8% em 2008). No Reino Unido
aumentou espectacularmente de 5,4% para 10,4%.
Na Holanda, de 5,9% para 8,2%.
Face a estas «sociedades opulentas» existem as
«oficinas do mundo», de que o exemplo mais saliente é a China, onde se produzem
as quantidades enormes de mercadorias consumidas pelas «sociedades opulentas».
O quadro seguinte mostra a contribuição para o PIB de vários sectores da
economia em vários países (dados da wikipedia, Eurostat e fontes autorizadas;
os dados dos serviços financeiros para a Índia e Rússia foram obtidos,
respectivamente, de [7] e [8]). Note-se a menor percentagem de contribuição
para o PIB dos serviços em geral e serviços financeiros dos BRICS face a países
da OCDE, e a maior percentagem da indústria dos BRICS. Analisar também os casos
da França e da Alemanha.
Contribuição (em %) para o PIB de quatro sectores da
economia. Valores para 2011 excepto quando indicado outro ano em rodapé.
Sector
|
Alguns Países da
OCDE
|
BRICS
|
|||||||||
EUA
|
UK
|
Suíça
|
Port.
|
França
|
Alem.
|
Brasil
|
Rússia
|
Índia
|
China
|
África do Sul
|
|
Agricultura
|
1,2
|
0,7
|
1,3
|
2,6
|
1,9
|
0,8
|
5,5
|
4,4
|
17,2
|
10,1
|
2,5
|
Indústria
|
19,2
|
21,1
|
27,7
|
22,6
|
18,3
|
28,6
|
27,5
|
37,6
|
26,4
|
45,3
|
31,6
|
Serviços (a)
|
79,6
|
78,2
|
71,0
|
74,8
|
79,6
|
70,6
|
67,0
|
58,0
|
56,4
|
44,6
|
65,9
|
S. Financeiros
|
8,6
|
9,4
|
11,1
|
6,4
|
4,7
|
4,2
|
5,9 (b)
|
4,5
|
< 4 (c)
|
n.d. (d)
|
< 3,4%(e)
|
(a) Inclui serviços financeiros (banca,
empresas de investimento, seguros).
(b) Relatório do Banco do Brasil de 2010.
(c) O valor de 10% indicado em [7] agrega
"real estate" e "business services"; subtraindo os valores
que encontrámos para estes subsectores obtém-se um valor inferior a 4%.
(d) Não foi possível encontrar o valor global
para a China. Com excepção de regiões autónomas (Hong-Kong e Macau) e regiões
especiais (Xangai, etc.) o sector bancário é estatal.
(e) O valor oficial de
3,4% agrega "real estate" e "business services".
Frequentemente, quando um país tem um forte
sector de serviços tem também um forte subsector de serviços financeiros (há
excepções, como por exemplo as Maldivas, com um forte sector de serviços de
Turismo mas fraco sector financeiro). O gráfico da figura abaixo ([9]) mostra a
razão percentual do sector de serviços face ao sector industrial (eixo
vertical) em termos do PIB per capita
(representado em escala logarítmica no eixo horizontal); embora use valores de
2005 permite ter uma ideia do posicionamento de vários países, separando os que
em 2005 tinham um sector de serviços proeminente (países acima da recta) dos países
com um sector industrial proeminente (abaixo da recta).
Próximo artigo:
O
sector financeiro. II: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões
do costume.
[1] Kari Nars «Swindling Billions: An Extraordinary History
of the Great Money Fraudsters», Marshall Cavendish Business, 2011.
[3] Ver [2]; a fonte
dos dados é: Bureau of Economic Analyses, NIPA Table 6.1. Ver também: http://en.wikipedia.org/wiki/Financialization
[4] Mark Thoma,
"The Elevated Position of the Financial
Sector", Economist's View, October 27, 2011, http://economistsview.typepad.com/economistsview/2011/10/the-elevated-position-of-the-financial-sector.html
[5] Yasuyuki Fuchita
«How Much Should Japan Raise the Financial Sector's Share of the Economy?»,
Nomura Journal of Capital Markets, vol.4, no. 4, 2013
[6] Ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-iii.html
. Os dados são do Eurostat e dizem respeito ao valor acrescentado bruto (= PIB
sem impostos e com subsídios ao consumo).
[9] Ejaz Ghani,
"The Service Revolution",
Internacional Labor Organization Conference, Genebra 2011.