sábado, 28 de setembro de 2013

Desenvolvimento Sustentável: VI - Valor para Todos?

vimos que no sistema capitalista a actividade económica se rege pela busca do lucro e este, por sua vez, provém da extracção de valor excedente do trabalho, a mais-valia. Este tema foi por nós exposto com algum detalhe em: http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-i.html , http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/03/nova-evidencia-cientifica-favor-de-marx.html e http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/05/classes-sociais-parte-i.html .

Para extrair mais-valia é preciso que haja mão-de-obra e esta vem escasseando nas economias capitalistas desenvolvidas. Em particular, escasseia a mão-de-obra barata que assegura a manutenção de uma taxa de lucro considerada atraente pelos capitalistas. Para responder a essa escassez de mão-de-obra barata os capitalistas das economias desenvolvidas, armados da doutrina neoliberal, fazem uso de pelo menos três medidas (individualmente ou conjuntamente): a) atacam, através do seu Estado, os direitos dos trabalhadores (salários, subsídios de desemprego, direitos contratuais, etc.; é o que estamos a assistir em Portugal); b) apoiam a imigração de mão-de-obra barata para os respectivos países; c) deslocalizam empresas (ou parte do ciclo produtivo) para países de mão-de-obra barata. (Isto se quiserem permanecer com a sua actividade no sector produtivo de bens e serviços; muitos, cada vez mais, se deslocam para o sector financeiro -- em particular, para as actividades especulativas com capital fictício -- que lhes podem trazer grandes lucros a curto prazo.)

Existem, todavia, dificuldades com estas medidas: 

a) Para além da luta dos trabalhadores, é preciso ter em conta que, nas economias desenvolvidas, o preenchimento do «exército» disponível de trabalhadores que existiu no passado, devido às grandes migrações de mão-de-obra da agricultura para a indústria, há muito acabou. A própria queda da taxa de fertilidade nessas economias vem diminuindo as fileiras do «exército», aumentando o poder reivindicativo dos trabalhadores.
b) Inclusive nos países em desenvolvimento (economias emergentes, como os BRICS e outros) começa a escassear a mão-de-obra necessária para as respectivas empresas, originando um menor fluxo de emigração para as economias desenvolvidas. Por exemplo, cada vez iremos observar menos russos e ucranianos a entrar em Portugal. A própria China, segundo alguns estudos ([1]), está próxima do ponto em que já não terá possibilidades de ir buscar mais mão-de-obra à agricultura para a colocar na indústria.

Por conseguinte, a busca global de valor por parte dos capitalistas começa a deparar com dificuldades crescentes. Na China a população activa vai entrar em declínio, conforme mostra o gráfico abaixo (ver também [2]).

Isto é, as próprias bases do desenvolvimento económico capitalista começam a tornar-se insustentáveis.


Evolução da população activa de alguns países (previsão a partir de 2012).

Mas existe um outro aspecto ainda mais grave da extracção de valor para o qual o sistema capitalista não encontra respostas credíveis: como obter valor para sustentar os não produtores de valor? É sobre este aspecto que vamos focar a seguir a nossa atenção.

*    *    *

«A maioria dos países da União Europeia (UE) enfrenta sérios desafios aos seus sistemas de pensões, devido em larga medida ao envelhecimento demográfico das populações. As populações estão a envelhecer por causa das taxas de natalidade relativamente baixas e à rapidamente crescente esperança de vida, particularmente nas idades seniores.» [tradução nossa].

Assim começa um relatório de 2012 da UE sobre a sustentabilidade dos sistemas de pensões da Europa ([3]).

O problema desta sustentabilidade é analisado ao longo do relatório, em particular a questão central do grau de dependência dos seniores da população activa -- aquilo que se designa por «índice de sustentabilidade potencial» e é geralmente calculado como o quociente entre a população com mais de 65 anos (considerada inactiva) e aquela com idades entre 15 e 65 anos (considerada activa). Este índice tem vindo a aumentar significativamente nos últimos anos e todos os estudos apontam para um aumento ainda mais significativo nas próximas décadas (ver figura abaixo de [3]).


Taxa de dependência de seniores (>=65 anos) da população activa (entre 15 e 65 anos).
Olhando para o gráfico acima vemos, por exemplo, que na Espanha em 2060 se estima que o número de pessoas com mais de 65 anos (seniores) represente cerca de 60% do número de pessoas activas. Por outras palavras, por cada sénior (em Espanha e em 2060) existirão apenas 1/0,6 = 1,67 pessoas em idade activa capazes de a sustentar. Note-se o optimismo desta estimativa: sabemos bem que actualmente em Espanha grande parte da população em idade activa está desempregada!

As estimativas para Portugal não devem ser muito diferentes das respeitantes à Espanha. Em Portugal, o valor para 2011 era de 3,5 ("activos" para um "inactivo"; [4]) perto do valor espanhol no mesmo ano. A mesma proximidade de valores era observável para anos passados.

Existem outras formas de calcular o índice de sustentabilidade das pensões, usando, em vez dos critérios acima (mais de 65 anos versus entre 15 e 65 anos), critérios mais realistas baseados em estatísticas reais de população activa e inactiva. O impacto da utilização desses critérios mais realistas nas conclusões é, porém, diminuto. Seja que critério se considere, iremos sempre obter gráficos muito parecidos com o da figura acima.

As razões do aumento dos índices de sustentabilidade são claros: o grau de fertilidade (número de filhos por mulher) tem baixado, embora se espere que venha a convergir para um valor próximo de 2,1 a partir de 2030, e a esperança de vida tem vindo sempre a aumentar e prevê-se que assim continuará pelo menos até ao fim deste século (ver figura abaixo de [3]).



 Esperança de vida em diversos países (projecções a partir de 2008).

Várias instituições e seguradoras privadas procuram avaliar a sustentabilidade dos sistemas de pensões de vários países. Um dos estudos muito citado a nível da UE, é o da Allianz Global Investors uma companhia multinacional alemã de seguros e serviços financeiros ([5]), que desenvolveu um índice de sustentabilidade que tem em conta vários aspectos, como por exemplo a evolução demográfica, a situação orçamental do país, as características do sistema de pensões utilizado, etc. O índice varia numa escala de 1 a 10, com 1 correspondendo sistemas de pensões sustentáveis, a menos de reformulações pouco importantes, e 10 a sistemas com necessidade urgente de reformas. Os valores desse índice para 2011 e para vários países, são mostrados na figura abaixo.



Verifica-se que o país com mais necessidade de reforma do sistema de pensões é a Grécia, dado o estado de insolvência da sua economia. A Índia, China e Japão estão no grupo de países com mau índice de sustentabilidade, ao qual pertence também a Espanha e a Itália. Portugal situa-se no grupo logo abaixo do «mau», tecnicamente chamado «zona de perigo».

De facto, a sustentabilidade do sistema de pensões em Portugal tem sofrido alguns rombos devido à recessão (o desemprego diminuiu as contribuições dos trabalhadores e transferências das empresas para o Estado) e às políticas de austeridade (cortes nas pensões) que têm sido seguidas. De 2011 para 2012 as contribuições para as reformas baixou de 672 milhões € e, devido aos cortes nas pensões, o Estado gastou menos 20 milhões € (ver o artigo de Eugénio Rosa: [6]). (Portugal é dos países em que o Estado menos gasta em protecção social: 27% do PIB em 2010, contra 29,4% de média da Zona Euro.)

Mas basta de diagnóstico e passemos à terapêutica. O que têm a propor os representantes do capitalismo para resolver a sustentabilidade das pensões/aposentações? Sobre esta pergunta regista-se uma notável unanimidade. Todos propõem o aumento da idade da reforma (com redução de reformas antecipadas; só se o cidadão for mesmo inválido!). Recomendam também outras medidas, como a diversificação de esquemas de financiamento privado de pensões. Este último aspecto é particularmente grato aos neoliberais porque é uma forma do Estado, enquanto representante do grande capital, se descartar do «peso» de ter de suportar os seniores. Porém, seja público ou privado, o ónus da sustentabilidade dos seniores segundo a óptica capitalista deve recair exclusivamente sobre os trabalhadores. Conforme afirma o supracitado relatório da UE: «[…] todos os benefícios de pensões representam uma transferência de recursos da população trabalhadora para a população aposentada […]». E existe mesmo uma fórmula clássica, usada pelos representantes do capital, relacionando os rendimentos dos trabalhadores com os «benefícios» das pensões (o capitalismo neoliberal regressou à visão de que esta coisa de os trabalhadores terem uma reforma quando já são velhos para trabalhar não é uma necessidade mas sim um «benefício»):

Número de contribuintes x rendimento médio x percentagem de contribuição
=
Número de aposentados x valor médio das aposentações

E aonde é que isto tudo nos leva? Bom, simplesmente a isto: aplicando a fórmula acima e considerando que se mantém o mesmo índice de sustentabilidade que em 2010, a idade de reforma deverá ultrapassar os 70 anos em 2050, chegando mesmo em vários países a ultrapassar os 75 anos (!) conforme a seguinte tabela ([7]):

Idade de reforma em 2050 de forma a manter o mesmo índice de sustentabilidade potencial de 2010:
Espanha
76,0
Holanda
75,5
Irlanda
75,0
Itália
74,7
Polónia
74,3
Alemanha
73,9
França
72,8
Hungria
72,1
Reino Unido
71,7
Suécia
71,3

Se usarmos os dados mais recentes, de 2012 ([8]), a situação ainda se agrava mais para alguns países; por exemplo, para a Espanha, em vez da idade de reforma de 76 anos para 2050, passa a ser de 77,8 anos!

Efectuámos os cálculos para Portugal e mostramos abaixo as respectivas projecções da idade de reforma até 2100, mantendo o índice de sustentabilidade potencial de 2010. Para 2050 obtém-se um valor próximo do da Espanha (76,6 anos) e, continuando a assumir que as principais tendências em que se baseiam as projecções se mantêm válidas, para 2100 a idade de reforma seria de 85 anos!

A evolução da idade de reforma em Portugal (em anos no eixo vertical) que, segundo os cálculos da óptica capitalista, asseguraria o mesmo índice de sustentabilidade potencial de 2010.

Parece-nos óbvio que idades como 85 ou 75 anos são totalmente desadequadas para a manutenção de actividade laboral normal. O argumento do aumento de esperança de vida não colhe: uma coisa é o aumento da esperança de vida; outra, é a manutenção de condições físicas e psíquicas adequadas à actividade laboral. Na nossa opinião, mesmo com aumento de esperança de vida, impor a manutenção obrigatória de actividade laboral a partir dos 65 anos (ou próximo disso) é mais que desadequado pelos motivos expostos: é também cruel. Por outro lado, a desadequação e até a inoperância de tal «solução» pode ser vista de outra perspectiva não menos dramática: aumentar o número de idosos amarrados a um emprego, além de baixar a eficiência do trabalho e aumentar o rotineirismo, condena as camadas jovens ao desemprego. Enfim, estamos perante uma dupla crueldade! 

*    *    *

Como já dissemos, os cálculos baseiam-se nas projecções demográficas que têm em conta o aumento da esperança de vida e a diminuição da fertilidade, factores que não se crê virem a alterar as suas tendências fundamentais. Entretanto, a situação real é bem pior do que a descrita por este índice de sustentabilidade potencial, porque ninguém tem dúvidas que a manterem-se as políticas neoliberais o desemprego e a baixa de salários terão um efeito desastroso no índice de sustentabilidade real, que toma em linha de conta a população de facto activa e não simplesmente os que têm idades entre 15 anos e a idade de reforma.

Em suma, e por mais voltas que se dê ao problema e mezinhas que se aconselhem: dentro do sistema capitalista não há sequer solução para a sustentabilidade da vida humana, no que concerne ao proporcionar de uma vida digna aos idosos.

(Note-se que não se trata aqui de uma posição moralista. São os próprios factos materiais, objectivos, indesmentíveis, que obrigam necessariamente o sistema capitalista a prosseguir na via imposta pela fórmula acima. Por muito boa vontade e muito humanismo que possuam este ou aquele capitalista individualmente.)

*    *    *

Só um sistema socialista, com uma repartição mais igualitária de rendimentos baseada no valor socializável do trabalho e não na exploração económica privada dos trabalhadores, onde a parte das mais-valias criadas pelo trabalho (que actualmente a classe capitalista consome e esbanja) seriam totalmente aproveitadas para a satisfação de necessidades sociais, pode resolver este problema. Um sistema de transição para o socialismo, dotado de medidas sociais avançadas, poderá trazer já um contributo considerável à resolução do problema. 

No artigo de Eugénio Rosa já citado são apresentados os valores que corresponderiam a aplicar uma taxa de 0,25% sobre as transacções financeiras. O quantitativo total, em 2011, ascenderia a 3.000 milhões de euros, superior ao total pago em subsídios de desemprego (2.104 milhões) mas bastante inferior ao total de pensões (14.448 milhões). É uma medida do tipo da «taxa Tobin» ([9]), aceitável pelo pensamento social-democrata. Poderia contribuir a curto prazo para algum alívio mas não modificaria substancialmente a situação a longo prazo (ver o que dissemos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/09/desenvolvimento-sustentavel-iv-causa-da.html ). Mas mesmo esta moderadíssima medida não seria certamente aceite pelo actual governo ou por um provável próximo governo do PS!

[1] Cai Fang (2010) Demographic Transition, Demographic Dividend, and Lewis Turning Point im China. China Economic Journal, vol.3, 2: 107-119.

[2] Michael Roberts (2013) The global search for value: http://thenextrecession.wordpress.com/2013/07/30/the-global-search-for-value/

[3] "Sustainability of pension systems in Europe – the demographic challenge", Groupe Consultatif Actueriel Européen Position Paper, Julho 2012.

[4] Dados obtidos de www.pordata.pt em 2013-08-10

[5] Pension Systems in a Demographic Transition, Outubro de 2011, Allianz Global Investors.

[6] Eugénio Rosa,A Protecção Social em Portugal e na U.E. e como Garantir a Sustentabilidade dos Sistemas de Segurança Social e C.G.A., 28/2/2013 http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2012/9-2013-Sustentabilidade-Seg-Social-C.pdf

[7] A tabela é de [3] e os cálculos usam dados da «UN 2010 Population Projections, 2010 Revision».

[8] UN 2012 Population Projections, 2012 Revision – dados para a folha de cálculo "low fertility": http://esa.un.org/unpd/wpp/Excel-Data/population.htm

[9] Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Tobin_tax. Pensamos que Eugénio Rosa tinha em mente as transacções financeiras a nível interno de Portugal. De facto, uma taxa deste tipo para transacções financeiras a nível europeu, de 0,1% para acções e obrigações e de 0,01% nos contratos de derivativos foi aceite, em princípio, por 11 Estados da UE em Janeiro de 2013. Outros Estados opuseram-se com toda a firmeza. Resta ainda decidir os detalhes e se a legislação europeia permite tal pecado contra o capitalismo.