De um lado, o regime despótico de Bashar
al-Assad ao serviço de uma clique alauíta tremendamente rica à custa do povo.
Tremendamente rica e corrupta. Bashar que, com o apoio total do FMI, embarcou
numa via neoliberal de liquidação do sector público e que aumentou o saque de
bens da Síria em associação com o capital estrangeiro. Que entregou o petróleo
e o gás à Shell (Reino Unido), Total (França), National Petroleum Company
(China) e Stoytangaz (Rússia). Bashar, cujo primo Rami Makhlouf, se tornou um
dos mais poderosos figurões na economia, controlando 60% da riqueza do país (investimento
estrangeiro, a maior companhia de telecomunicações, o sector da construção,
bancos, transportes aéreos e comércio de retalho) enquanto 60% da população vivia
antes da guerra civil em extrema pobreza, com menos de 2 dólares por dia (30%
com menos de 1 dólar/dia). Bashar que continuou a política do pai de privar o
povo de quaisquer direitos, impedindo os trabalhadores de quaisquer organizações
sindicais independentes do governo. Bashar, o inimigo da OLP e aliado, no seu
país e no Líbano, das forças mais reaccionárias, incluindo o fascista Partido
Social Nacionalista Sírio. Bashar, que metralhou da forma mais brutal o seu
próprio povo logo desde as primeiras manifestações de protesto, ainda que
tímidas, em 2011. Bashar, cujos aliados são as forças ultra-reaccionárias do
Irão e do Hezbollah, que o apoiam maciçamente em homens e armas. A Rússia é
também um aliado tradicional do regime e apoia-o em armas sofisticadas
(incluindo os famosos mísseis scud) e conselheiros militares. A razão (para
além da venda de armamento) é simples: o regime cedeu a à Rússia a utilização
da base naval de Tartus, a única base naval que a Rússia possui no
Mediterrâneo.
Bashar, cujo bom comportamento face ao
imperialismo era atestado por Sarkozy e Hilary Clinton. Esta última disse dele
em Março de 2011: «Existe agora na Síria um novo líder. Muitos dos membros do
Congresso de ambos os partidos, que foram à Síria em meses recentes, dizem que
acreditam que ele é um reformador».
(Para saber mais sobre a dinastia Al-Assad,
ver: http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/02/a-primavera-arabe-parte-iii-siria.html
)
Do outro lado, a burguesia sunita síria, que
sempre foi marginalizada pelos al-Assad (os alauítas são um ramo xiita) e que,
no decurso da guerra civil ¾ passada a
primeira fase de proeminência dos elementos revolucionários consequentes,
apoiados no povo comum (trabalhadores, camponeses, estudantes, elementos
tribais) organizados em torno dos Comités de Coordenação Locais e nos Conselhos
Revolucionários ¾ veio a dominar completamente o Conselho Nacional Sírio (CNS), órgão
centralizador da oposição ao regime.
Dizíamos
assim em artigo anterior de 12 de Março (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/03/a-primavera-arabe-parte-iv-siria.html
): «O Conselho Nacional Sírio (CNS) agrupa fundamentalmente a oposição burguesa
que procura uma saída ao regime de Assad. É um Conselho formado por notáveis
burgueses, separados das massas e exteriores ao conflito. É a força política
que tem sido interlocutora do imperialismo (principalmente França e EUA) e seus
aliados (Turquia, Qatar, Jordânia, Arábia Saudita) e tem apelado à intervenção externa.». Pois bem, desde essa altura o
Qatar e a Arábia Saudita têm suportado o CNS em armamento e milícias. Essas
milícias, como seria de esperar da sua proveniência, são do mais reaccionário
que se possa imaginar. No momento actual quem domina o Exército da Síria Livre
(ESL) são os jihadistas sunitas da facção de Jabhat al-Nusra ligada à al-Qaeda.
Os elementos revolucionários foram marginalizados ou esmagados, embora ainda
não totalmente destruídos nomeadamente nas grandes cidades de Homs e Damasco.
Os EUA, a partir de Junho, começaram abertamente a apoiar o CNS em dinheiro,
armamento ligeiro e logística (serviços de informação). O apoio em armamento
cinge-se ao armamento ligeiro visto que os EUA temem que eventuais
fornecimentos de armamento pesado possam ir cair nas mãos da al-Qaeda.
A guerra
civil prossegue segundo linhas de sectarismo religioso e étnico (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/03/a-primavera-arabe-parte-iv-siria.html
). Os objectivos iniciais da revolução, de características democrático
burguesas, foram desvirtuados pelos elementos reaccionários da burguesia local
(fundamentalmente sunita) que se apropriaram dela extirpando-a de tudo que
cheirasse a democracia avançada, com o apoio do imperialismo ianque a quem sempre
incomoda qualquer feição popular revolucionária. A clivagem segundo linhas de
classe foi substituída por clivagem segundo linhas religiosas e étnicas. O povo
sírio (como outros povos árabes) está a pagar um alto preço pela sua
incapacidade de se libertar de concepções que absolutizam a religião;
incapacidade também de unir a esquerda (extremamente fragmentada) num partido
condutor da revolução. Os jihaditas sunitas prosseguem a sua luta com vista à
instalação de um estado islâmico fundamentalista, não recuando em cometer as
maiores atrocidades.
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Não está
ainda provado que o exército sírio tenha usado armas químicas. É, contudo, possível
que o tenha feito dado se saber que as possui e que não teria rebates de
consciência em as utilizar. Parece, pelo contrário, pouco provável que tenham
sido as forças oposicionistas a usar armas químicas, dado requererem, entre
outras coisas, certa logística e know-how
não trivial de utilização. Há também quem sugira que as armas químicas foram
usadas em quantidade diminuta por grupos jihadistas vindos expressamente do
Qatar ou da Arábia Saudita para provocar a reacção dos EUA, dado que aos
jihadistas interessa o envolvimento dos EUA enquanto o regime sírio não está
interessado nisso.
Mas mesmo
que tenha sido o exército sírio a usar armas químicas, porque se lembrou agora
o imperialismo ianque de gritar indignadamente contra a utilização de armas
químicas? Porque razão se incomodam agora tanto com a morte de alegadamente 150
civis, quando não mostraram nenhum incómodo com a morte de milhares de civis,
mulheres e crianças, durante a primeira fase da insurreição popular? Porque
razão os incomoda agora tanto a utilização de armas químicas quando, por outro
lado, não se incomodaram absolutamente
nada com a utilização das mesmas (gás venenoso) pelo seu então aliado Saddam
Hussein em Março de 1988 contra os curdos?
A resposta tem a ver com o interesse
imperialista de controlar a Síria, país altamente estratégico do Médio Oriente.
Nos últimos meses, Julho e Agosto, o «empate» entre forças do regime e forças
da oposição estava a ser posto em causa, nomeadamente desde que o exército
sírio com o apoio decisivo da força aérea e de forças blindadas limpou de
rebeldes várias regiões e localidades, incluindo a cidade de Qusayr, cidade
estratégica junto ao Líbano. Iniciava-se uma situação de «desempate». Tal não
convinha ao imperialismo ianque a quem, pelo contrário, convém um empate que
desgaste todas as forças no terreno, podendo no final impor as suas condições
através de um submisso CNS. Passando por cima de qualquer solução negociada,
como a da célebre e ainda não celebrada conferência de Genebra que tem sido
adiada pelos EUA. Só Putin parece desejar tal conferência e mostra-se
surpreendido pelo «Ocidente» apoiar na Síria os mesmos grupos terroristas com
ligação à al-Qaeda que combate no Afeganistão e no Mali.
A questão das armas químicas é um simples
pretexto para a intervenção dos EUA a favor dos seus interesses próprios, que
passam por reforçar o papel da burguesia síria que lhe é submissa e domina o
CNS e o ELS (e, por intermédio deles, a chamada Coligação da Oposição Síria).
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Ninguém sabe o que resultará de uma intervenção
militar dos EUA, agora desejada tanto por Obama como pelos republicanos. Mais uma
demonstração histórica de que as duas principais facções da burguesia dos EUA
(como a de outros países capitalistas), quer sejam do plano A (republicanos)
quer do plano B (democratas) (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013_07_01_archive.html
) pouco se distinguem no geral e estão verdadeiramente unidas nas questões de
fundo.
O tiro pode sair pela culatra aos EUA.
Primeiro, porque ninguém sabe o desenvolvimento que irá sofrer uma pretensa operação
«limitada» e «cirúrgica»; segundo, porque a própria intervenção pode aumentar o
prestígio de Assad e aumentar o apoio da população a Assad que será então
encarado como verdadeiro anti-imperialista e defensor dos interesses nacionais.
Ninguém sabe também quais as consequências de tal intervenção nos países
vizinhos, nomeadamente no atiçar de novos confrontos sectários no Líbano.