sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Síria: Reacção de ambos os lados

De um lado, o regime despótico de Bashar al-Assad ao serviço de uma clique alauíta tremendamente rica à custa do povo. Tremendamente rica e corrupta. Bashar que, com o apoio total do FMI, embarcou numa via neoliberal de liquidação do sector público e que aumentou o saque de bens da Síria em associação com o capital estrangeiro. Que entregou o petróleo e o gás à Shell (Reino Unido), Total (França), National Petroleum Company (China) e Stoytangaz (Rússia). Bashar, cujo primo Rami Makhlouf, se tornou um dos mais poderosos figurões na economia, controlando 60% da riqueza do país (investimento estrangeiro, a maior companhia de telecomunicações, o sector da construção, bancos, transportes aéreos e comércio de retalho) enquanto 60% da população vivia antes da guerra civil em extrema pobreza, com menos de 2 dólares por dia (30% com menos de 1 dólar/dia). Bashar que continuou a política do pai de privar o povo de quaisquer direitos, impedindo os trabalhadores de quaisquer organizações sindicais independentes do governo. Bashar, o inimigo da OLP e aliado, no seu país e no Líbano, das forças mais reaccionárias, incluindo o fascista Partido Social Nacionalista Sírio. Bashar, que metralhou da forma mais brutal o seu próprio povo logo desde as primeiras manifestações de protesto, ainda que tímidas, em 2011. Bashar, cujos aliados são as forças ultra-reaccionárias do Irão e do Hezbollah, que o apoiam maciçamente em homens e armas. A Rússia é também um aliado tradicional do regime e apoia-o em armas sofisticadas (incluindo os famosos mísseis scud) e conselheiros militares. A razão (para além da venda de armamento) é simples: o regime cedeu a à Rússia a utilização da base naval de Tartus, a única base naval que a Rússia possui no Mediterrâneo.
Bashar, cujo bom comportamento face ao imperialismo era atestado por Sarkozy e Hilary Clinton. Esta última disse dele em Março de 2011: «Existe agora na Síria um novo líder. Muitos dos membros do Congresso de ambos os partidos, que foram à Síria em meses recentes, dizem que acreditam que ele é um reformador».

Do outro lado, a burguesia sunita síria, que sempre foi marginalizada pelos al-Assad (os alauítas são um ramo xiita) e que, no decurso da guerra civil ¾ passada a primeira fase de proeminência dos elementos revolucionários consequentes, apoiados no povo comum (trabalhadores, camponeses, estudantes, elementos tribais) organizados em torno dos Comités de Coordenação Locais e nos Conselhos Revolucionários ¾ veio a dominar completamente o Conselho Nacional Sírio (CNS), órgão centralizador da oposição ao regime.
Dizíamos assim em artigo anterior de 12 de Março (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/03/a-primavera-arabe-parte-iv-siria.html ): «O Conselho Nacional Sírio (CNS) agrupa fundamentalmente a oposição burguesa que procura uma saída ao regime de Assad. É um Conselho formado por notáveis burgueses, separados das massas e exteriores ao conflito. É a força política que tem sido interlocutora do imperialismo (principalmente França e EUA) e seus aliados (Turquia, Qatar, Jordânia, Arábia Saudita) e tem apelado à intervenção externa.». Pois bem, desde essa altura o Qatar e a Arábia Saudita têm suportado o CNS em armamento e milícias. Essas milícias, como seria de esperar da sua proveniência, são do mais reaccionário que se possa imaginar. No momento actual quem domina o Exército da Síria Livre (ESL) são os jihadistas sunitas da facção de Jabhat al-Nusra ligada à al-Qaeda. Os elementos revolucionários foram marginalizados ou esmagados, embora ainda não totalmente destruídos nomeadamente nas grandes cidades de Homs e Damasco. Os EUA, a partir de Junho, começaram abertamente a apoiar o CNS em dinheiro, armamento ligeiro e logística (serviços de informação). O apoio em armamento cinge-se ao armamento ligeiro visto que os EUA temem que eventuais fornecimentos de armamento pesado possam ir cair nas mãos da al-Qaeda.
A guerra civil prossegue segundo linhas de sectarismo religioso e étnico (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/03/a-primavera-arabe-parte-iv-siria.html ). Os objectivos iniciais da revolução, de características democrático burguesas, foram desvirtuados pelos elementos reaccionários da burguesia local (fundamentalmente sunita) que se apropriaram dela extirpando-a de tudo que cheirasse a democracia avançada, com o apoio do imperialismo ianque a quem sempre incomoda qualquer feição popular revolucionária. A clivagem segundo linhas de classe foi substituída por clivagem segundo linhas religiosas e étnicas. O povo sírio (como outros povos árabes) está a pagar um alto preço pela sua incapacidade de se libertar de concepções que absolutizam a religião; incapacidade também de unir a esquerda (extremamente fragmentada) num partido condutor da revolução. Os jihaditas sunitas prosseguem a sua luta com vista à instalação de um estado islâmico fundamentalista, não recuando em cometer as maiores atrocidades.
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Não está ainda provado que o exército sírio tenha usado armas químicas. É, contudo, possível que o tenha feito dado se saber que as possui e que não teria rebates de consciência em as utilizar. Parece, pelo contrário, pouco provável que tenham sido as forças oposicionistas a usar armas químicas, dado requererem, entre outras coisas, certa logística e know-how não trivial de utilização. Há também quem sugira que as armas químicas foram usadas em quantidade diminuta por grupos jihadistas vindos expressamente do Qatar ou da Arábia Saudita para provocar a reacção dos EUA, dado que aos jihadistas interessa o envolvimento dos EUA enquanto o regime sírio não está interessado nisso.
Mas mesmo que tenha sido o exército sírio a usar armas químicas, porque se lembrou agora o imperialismo ianque de gritar indignadamente contra a utilização de armas químicas? Porque razão se incomodam agora tanto com a morte de alegadamente 150 civis, quando não mostraram nenhum incómodo com a morte de milhares de civis, mulheres e crianças, durante a primeira fase da insurreição popular? Porque razão os incomoda agora tanto a utilização de armas químicas quando, por outro lado, não se incomodaram absolutamente nada com a utilização das mesmas (gás venenoso) pelo seu então aliado Saddam Hussein em Março de 1988 contra os curdos?
A resposta tem a ver com o interesse imperialista de controlar a Síria, país altamente estratégico do Médio Oriente. Nos últimos meses, Julho e Agosto, o «empate» entre forças do regime e forças da oposição estava a ser posto em causa, nomeadamente desde que o exército sírio com o apoio decisivo da força aérea e de forças blindadas limpou de rebeldes várias regiões e localidades, incluindo a cidade de Qusayr, cidade estratégica junto ao Líbano. Iniciava-se uma situação de «desempate». Tal não convinha ao imperialismo ianque a quem, pelo contrário, convém um empate que desgaste todas as forças no terreno, podendo no final impor as suas condições através de um submisso CNS. Passando por cima de qualquer solução negociada, como a da célebre e ainda não celebrada conferência de Genebra que tem sido adiada pelos EUA. Só Putin parece desejar tal conferência e mostra-se surpreendido pelo «Ocidente» apoiar na Síria os mesmos grupos terroristas com ligação à al-Qaeda que combate no Afeganistão e no Mali.
A questão das armas químicas é um simples pretexto para a intervenção dos EUA a favor dos seus interesses próprios, que passam por reforçar o papel da burguesia síria que lhe é submissa e domina o CNS e o ELS (e, por intermédio deles, a chamada Coligação da Oposição Síria).

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Ninguém sabe o que resultará de uma intervenção militar dos EUA, agora desejada tanto por Obama como pelos republicanos. Mais uma demonstração histórica de que as duas principais facções da burguesia dos EUA (como a de outros países capitalistas), quer sejam do plano A (republicanos) quer do plano B (democratas)  (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013_07_01_archive.html ) pouco se distinguem no geral e estão verdadeiramente unidas nas questões de fundo.
O tiro pode sair pela culatra aos EUA. Primeiro, porque ninguém sabe o desenvolvimento que irá sofrer uma pretensa operação «limitada» e «cirúrgica»; segundo, porque a própria intervenção pode aumentar o prestígio de Assad e aumentar o apoio da população a Assad que será então encarado como verdadeiro anti-imperialista e defensor dos interesses nacionais. Ninguém sabe também quais as consequências de tal intervenção nos países vizinhos, nomeadamente no atiçar de novos confrontos sectários no Líbano.