quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Os 99% e os 1%

Um pouco por todo o mundo têm surgido, ultimamente, movimentos de protesto contra as desigualdades sociais. Um dos mais emblemáticos e amplamente noticiado foi o Occupy Wall Street («Ocupem a Wall Street», centro de negócios do grande capital americano), em grande parte inpirado pelas insurreições populares da primavera árabe.


Manifestação dos 99% perto da Wall Street.

Os manifestantes do «Ocupem a Wall Street» tinham como slogan principal, que aparecia em muitos cartazes, o seguinte: We are the 99% («Nós somos os 99%»). O slogan tem directamente a ver com o problema das desigualdades sociais do mundo capitalista desenvolvido, problema esse que se vem agudizando dado o progressivo declínio do sistema capitalista (ver o que escrevemos sobre a descida da taxa de lucro no n/ artigo «A Crise do Euro» neste blog).
Porquê 99%? É esta questão que vamos aqui analisar, em termos simples, começando pelos EUA e indo depois para os países europeus da Zona Euro, que inclui Portugal.
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Vamos a factos.
A figura 1 mostra a distribuição de rendimento anual dos EUA em 2010. Gráficos de rendimento como este podem construir-se (e constroem-se), em muitos países do mundo, usando como dados as declarações de rendimento dos agregados familiares para o IRS. No eixo horizontal temos intervalos de rendimento (no caso da figura, intervalos de 5.000 dólares de amplitude, excepto para os dois últimos intervalos); no eixo vertical temos a percentagem de agregados familiares que aufere um rendimento que cai num dado intervalo. Por exemplo, para o intervalo de 5.000 a 9.999 dólares, verifica-se ter havido em 2010 cerca de 4,2% de agregados familiares (vamos chamar famílias para simplificar) com rendimentos anuais nesse intervalo.
Note-se como o gráfico mostra altas percentagens na zona dos baixos rendimentos exibindo uma tendência decrescente para os altos rendimentos. Aliás o gráfico da figura não está completo. Para estar completo teríamos que prolongar o gráfico até ao rendimento máximo auferido em 2010 por um cidadão americano: o espantoso rendimento anual de 3.710.000.000$ (quase 4 biliões de dólares) do Sr. Bill Gates. Isto é, o leitor terá de imaginar o gráfico da figura 1 prolongado para a direita cerca de 14 vezes!!!
Fig. 1. Distribuição do rendimento anual nos EUA em 2010.

Como a informação contida num destes gráficos, mesmo incompleto, é grande, os estatísticos procuraram arranjar maneiras de, através de poucos números, transmitir a informação essencial e permitir uma fácil comparação entre anos e países. Para tal, começam por determinar qual o valor abaixo do qual se situa o rendimento de uma certa percentagem de famílias. Por exemplo, relativamente ao rendimento anual dos EUA em 2010, os estatísticos determinaram que metade das famílias teve rendimento abaixo de 50 mil dólares e que 90% das famílias declarou um rendimento inferior a 135 mil dólares. Este último caso pode obviamente experimir-se de outra forma: 10% das famílias teve um rendimento superior a 135 mil dólares. Os 50 mil dólares e os 135 mil dólares designam-se por limiares do rendimento (respectivamente, limiar dos 50% e limiar dos 90%).
Estamos agora em condições de entender a questão inicial: qual é o rendimento acima do qual se situa 1% das famílias dos EUA em 2010? É cerca de 300 mil dólares. Mas, atenção: como já vimos que o gráfico se prolonga muito para além dos 300 mil dólares, o rendimento médio dos 1% do topo é bem maior!
A figura 2 mostra o que um estatístico calculou com base nas distribuições de rendimento dos EUA entre 1979 e 2007. São mostradas 3 curvas de rendimento médio ([1]): o rendimento médio de 1% das famílias no topo da distribuição, as famílias mais ricas; idem, para 60% das famílias com mais baixos rendimentos (lembrar o que dissemos acima sobre metade das famílias ter rendimentos abaixo de cerca de 50 mil dólares); idem, para 20% das famílias com mais baixos rendimentos. A figura é clara: O rendimento médio dos 1% do topo foi, em 2007, cerca de 27 vezes maior que o rendimento médio dos 60% do fundo! Além disso, à medida que o capitalismo como sistema vai declinando e tornando-se cada vez mais parasitário, as desigualdades sociais têm-se vindo a agravar brutalmente: em 1995 o fosso anterior correspondia a um factor de 10 vezes; em 2007 quase triplicou!
  
 Fig. 2. Evolução do rendimento médio nos EUA para o topo de 1% e os 60% e 20% de mais baixos rendimentos ([1]).

Não dispomos dos números mais recentes, mas podemos ter a certeza que com os enormes resgates do Estado americano aos bancos e corporações financeiras (ver n/ artigo «A Crise do Euro»), isto é, com a dádiva de mão beijada do dinheiro dos contribuintes ao grande capital financeiro, a evolução não se alterou substancialmente e o fosso pode até ter-se agravado.
Mas há outro lado da questão que é igualmente importante: é o de quanto representa o rendimento total de uma certa fatia das famílias em termos do rendimento nacional bruto (RNB), isto é, em termos de toda a riqueza que é criada num país num dado ano ([2]). A figura 3 mostra como evoluiu nos EUA essa fracção do RNB. Vemos, por exemplo, que em 2005 os rendimentos dos 1% de famílias mais ricas correspondiam a 17% do RNB e 1 milésimo das famílias mais ricas correspondia a mais de 7% de toda a riqueza produzida! Pior: sabe-se que em 2007 a fracção do RNB correspondente aos 1% das famílias mais ricas era de 20,9%!

Fig. 3. Fracção do RNB de percentagens de famílias de mais altos rendimentos, nos EUA. Fonte: wikipedia.

Percebe-se, agora, as razões de ser da justa indignação dos participantes do «Ocupem a Wall Street».
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Vejamos agora o que acontece na Zona Euro, incluindo Portugal. Para tal, vamos usar os dados disponíveis no Eurostat, de bem menor quantidade que os disponíveis para os EUA. Também, infelizmente, não dispomos dos valores dos rendimentos máximos para cada país ([3]), pelo que não é possível obter rendimentos médios como na figura 2.
Vamos começar por inspeccionar os quocientes dos limiares de rendimento para 60% e 99% das famílias, tal como se apresentam na tabela 1, relativamente ao ano de 2010 (para muitos países, no momento em que escrevemos, não estão disponíveis os valores para 2011). Apenas se apresentam os valores para 15 dos 17 países da Zona Euro; os dois países não representados são de muito pequena população (Malta e Chipre).
Por exemplo, na Alemanha e em 2010, 60% das famílias tiveram um rendimento anual abaixo de 21.141 € e 99% das famílias tinveram um rendimento anual abaixo de 67.597 €. O quociente destes dois valores é 3,2: o limiar dos 99% é mais de três vezes maior do que o limiar dos 60%. Países com maior desigualdade social, deste ponto de vista, terão um maior quociente.

Tabela 1. Limiar do rendimento anual de 60% e 99% das famílias em países da Zona Euro (2010).
País
(A)
60% das famílias com rendimento abaixo de (€)
(B)
99% das famílias com rendimento abaixo de (€)
Quociente B/A
Alemanha
21.141
67.597
3,20
Áustria
22.874
72.565
3,17
Bélgica
21.815
58.071
2,66
Eslovénia
12.959
32.109
2,48
Eslováquia
6.820
16.995
2,49
Espanha
14.900
46.721
3,14
Estonia
6.650
21.931
3,30
Finlândia
23.636
67.253
2,85
França
22.427
84.055
3,75
Grécia
13.908
52.619
3,78
Holanda
22.568
66.122
2,03
Irlanda
22.799
98.027
4,30
Itália
18.251
57.611
3,16
Luxemburgo
36.427
102.971
2,83
Portugal
10.043
38.794
3,86

Ora, Portugal exibe o segundo maior valor, 3,86. Isto é, do ponto de vista da razão entre os dois limiares, Portugal é o segundo pior país. O pior de todos é a Irlanda com 4,3.
Note-se que estes quocientes expressam apenas uma comparação entre dois estratos de famílias: o estrato dos 99% e o estrato dos 60% (sub-estrato do anterior). Dito de outro modo: os quocientes reflectem uma repartição de riqueza do estrato dos 60% face ao total dos 99%.
Seria interesante construir uma tabela com valores análogos aos da figura 2 (rendimento médios dentro de cada estrato), mas tal não é possível porque não estão disponíveis os dados necessários para tal. Entretanto, para Portugal, consegue-se obter uma medida parecida com a da figura 2 para o ano de 2010. Nesse ano a maior declaração de rendimentos parece ter sido a do presidente do Banco Espírito Santo ([4]): 1,5 milhões de euros (a módica quantia de 125 mil € por mês). Isto quer dizer que o valor médio nos 1% do topo andará à volta de 750.000 € e o rendimento médio dos 60% de mais baixos rendimentos andará perto do limiar dos 40%: 7,5 mil €. O quociente entre as duas estimativas de médias é 100; bem maior do que a dos EUA para 2007!
Analisemos agora a fracção do rendimento nacional bruto correspondente a 99% das famílias nos mesmos países da Zona Euro (tabela 2). Por subtracção para 100% fica-se a conhecer a fracção do RNB dos 1% do topo (3.ª coluna da tabela 2).

Tabela 2. Fracção do RNB dos 99% das famílias (e 1% do topo) em países da Zona Euro (2010).
País
O rendimento total de 99% das famílias corresponde à seguinte percentagem do RNB:
Logo, o 1% do topo corresponde à
seguinte percentagem do RNB:
Alemanha
93,6
6,4
Áustria
94,1
5,9
Bélgica
94,1
5,9
Eslovénia
95,0
5,0
Eslováquia
94,5
5,5
Espanha
96,1
3,9
Estonia
91,9
8,1
Finlândia
93,7
6,3
França
93,1
6,9
Grécia
93,4
6,6
Holanda
94,6
5,4
Irlanda
92,9
7,1
Itália
94,4
5,6
Luxemburgo
94,0
6,0
Portugal
93,7
6,3

O país com o 1% mais rico é a Estónia. Portugal fica na 5.ª posição em 15 países, ex-aequo com a Finlândia.
Isto é, Portugal situava-se, em 2010, no terço superior dos países da zona Euro que têm a mais rica camada do topo dos 1%.
Mas será que a evolução, ao menos, tem sido no sentido de os mais ricos ficarem menos ricos?
A figura 4 mostra a evolução da fracção do RNB dos 1% do topo em Portugal e, s média da Zona Euro. Claramente se nota que:
1 - Portugal esteve sempre acima da média da Zona Euro. Isto é, os muito ricos em Portugal foram sempre, comparativamente, mais ricos do que acontece em média na Zona Euro (17 países).
2 – A evolução recente da concentração da riqueza no topo é no sentido de ser mais elevada em Portugal do que a média da Zona Euro. Inclusive, já em plena crise e com o pacto de agressão da troika, a concentração de riqueza de 2010 (6,3%) para 2011 (6,4%) aumentou, aumentando também o desvio face à média da Zona Euro! Quem disse que a austeridade é para todos?

Fig. 4. Evolução da concentração da riqueza nos 1% do topo.

Sim, os 99% de Portugal têm todas as razões possíveis para manifestar a sua indignação. Já o estão a fazer.


Manifestação no Terreiro do Paço em 29 de Setembro de 2012. Uma autêntica manifestação dos 99%!

 [1] Fonte: http://lanekenworthy.net/2010/07/20/the-best-inequality-graph-updated/. Este gráfico teve em conta a taxa de inflação; contudo, este aspecto não é importante dado tratar-se de uma comparação de valores que sofrem a mesma depreciação.
[2] O rendimento nacional bruto inclui os lucros de capitais de um país investidos no exterior e exclui os lucros de empresas estrangeiras exportados para fora do país.
[3] Os rendimento máximos são, contudo, do conhecimento dos serviços de impostos dos respectivos países.
[4] Fonte: http://www.agenciafinanceira.iol.pt/economia/ricos-milionarios-irs-impostos-rendimentos-agencia-financeira/1275539-1730.html.