IIIb. A curva da oferta de mercado
No artigo anterior tínhamos analisado o que se passava quanto à oferta de bens num mercado monopolista, com uma só firma.
Tínhamos visto, que para o monopólio não existe uma curva da oferta. Para fixar o ponto óptimo de operação, o monopólio, para além da curva da procura, precisa de duas curvas e não de uma: custo total e receita total ou, em alternativa, receita marginal e custo marginal. A intersecção destas duas últimas curvas determina a quantidade óptima a produzir (óptima porque maximiza o lucro). Usando depois a curva da procura, obtém-se o preço óptimo.
Continuando a seguir o livro de Steve Keen Debunking Economics (ver parte I neste blog) vamos agora analisar a questão da curva da oferta de um mercado «perfeitamente competitivo». Será que neste caso existe uma curva da oferta?
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Um mercado com várias firmas é «perfeitamente competitivo», segundo a definição neoclássica, se: todas as firmas fabricam o mesmo produto, não havendo diferenças do ponto de vista dos consumidores; cada uma das firmas só reage ao preço de mercado, desconhece e não reage ao que fazem as outras firmas. Nenhuma firma, portanto, pode influenciar o preço de mercado; tem de tomar o preço que o mercado impõe.
Nesta visão de mercado competitivo os economistas neoclássicos defendem que cada firma só pode olhar para um preço de equilíbrio sem o poder influenciar, porque: se a firma vende acima do preço de equilíbrio os consumidores passam a comprar a outras firmas, logo, a primeira irá decrescer o preço até ao ponto de equilíbrio; se vender abaixo do preço de equilíbrio será inundada de consumidores e irá aumentar o preço.
Sendo assim, é como se cada firma «visse» uma curva de procura horizontal, impondo o valor do preço de mercado; digamos 434,5 € para o exemplo da tabela 1 constante do artigo anterior (Parte IIIa). Então, a receita total passa a ser uma recta (em vez da parábola da figura 1, mostrada na Parte IIIa) e a receita marginal uma constante: o preço de mercado, 434,5€:
receita marginal = preço de mercado = 434,5€ (valor constante)
A situação é ilustrada na figura 1a abaixo. A intersecção da recta do custo marginal com a curva do custo marginal (idêntica à do monopólio) determina de uma só vez o preço e a quantidade óptima, 113 unidades, do mercado competitivo. Não são precisas 3 curvas como no caso do monopólio. Quanto à curva da oferta de mercado, dizem os neoclássicos, basta somar as curvas de custos marginais de todas as firmas. Suponhamos que eram 10 firmas; obteríamos o resultado ilustrado na figura 1b. Nesta figura a curva da oferta é a curva do custo marginal do conjunto (agregado) das 10 firmas. A intersecção dá- -se para o preço de mercado, 434,5 €, e para uma quantidade óptima de 1132 unidades » 10´113.
Parece tudo bem, não é verdade?
Fig. 1. a) Num mercado competitivo a receita marginal de uma firma é constante e igual ao preço de mercado, preço esse que nenhuma firma pode influenciar; a intersecção com o custo marginal da firma determina a quantidade a produzir. b) A curva da oferta de mercado obtém-se somando as curvas de custos marginais das firmas individuais.
De facto não está tudo bem e a construção da figura 1 é impossível de realizar. Vejamos porquê. A construção parte de duas assunções: 1- quando há muitas firmas cada firma é tão pequena que vê uma curva de procura horizontal, e a sua produção não influi no preço de mercado; 2 - se uma firma aumenta a produção de 1 unidade, então como as outras firmas não reagem ao que faz a primeira (ver definição acima), a produção total do agregado de firmas também sobe de 1 unidade.
Ora, estas duas assunções são inconsistentes, como é possível provar matematicamente com rigor ([1]). Vamos, aqui, ilustrar geometricamente a razão da inconsistência, com a ajuda da figura 2. Nesta figura mostra-se uma recta descendente da procura e uma ascendente da oferta, do agregado de firmas. Se uma firma aumenta a produção de 1 unidade, então pela condição 2 acima, a curva da oferta desloca-se para a direita, para a recta a tracejado. O deslocamento é pequeno mas existe. Se nada mais acontecesse, o preço iria para a nova intersecção da recta da procura com a recta a tracejado da oferta. Mas, os neoclássicos dizem que não; dizem que, como cada firma vê uma recta de procura horizontal, tudo se passa como se a firma que aumentou a produção visse um pequeníssimo segmento de recta (a vermelho e tracejado) junto ao preço inicial; logo, sem variação de preço. Mas tal afirmação equivale a dizer que a recta da procura, em vez de ser construída por adição de pequeníssimos segmentos de recta com a inclinação da própria recta, poderia ser construída por adição de pequeníssimos segmentos de recta horizontais, o que é manifestamente impossível ([2]). Seria o mesmo que dizer que sendo um pequeno espaço à volta de cada um de nós essencialmente plano, então toda a Terra é plana!
Em suma, a curva da oferta não existe.
Fig. 2. Se a oferta de uma firma aumenta de 1 unidade a curva da oferta desloca-se para a direita (a tracejado) mas, segundo os neoclássicos, sem modificar o preço porque a procura é encarada, em torno do preço, como um pequeno segmento horizontal. Mas isso corresponde a dizer que a curva da procura pode ser construída por soma de muito pequenos segmentos horizontais, o que é manifestamente errado.
Já que a curva da oferta não existe, quando as duas assunções acima são tidas em conta, levanta-se a questão: o que acontece num mercado competitivo mas em que abandonamos a assunção 1: a produção de qualquer firma influi no preço de mercado? A resposta é: o preço e a quantidade produzida serão exactamente os mesmos como se houvesse um monopólio!
No livro de Steve Keen são apresentados outros resultados, em particular desmentindo a crença de que a maximização do lucro num mercado competitivo corresponde a igualar receita marginal e custo marginal. São também apresentados resultados de simulações numéricas que mostram o bem fundado das críticas e a falta de fundamento das crenças de Economia neoclássica sobre o comportamento do mercado competitivo.
No próximo artigo (Parte IV) veremos mais pormenores interessantes sobre este assunto.
[1] A demonstração matemática é a seguinte: Seja um número arbitrário de firmas produzindo quantidades qk, e seja Q a soma de todas as quantidades: Q = åqk. A condição 2 corresponde a ¶qi/¶qj = 0, para todo o i diferente de j. Então, é fácil ver que dQ/dqi = 1. Seja P o preço e determinemos como varia com qi. Temos dP/dqi = dP/dQ.dQ/dqi pela regra da derivação encadeada. Logo, dP/dqi = dP/dQ. Logo, é impossível ter simultaneamente dP/dqi = 0 e dP/dQ < 0. A submissão de um artigo de Steve Keen a uma revista de Economia neoclássica mereceu de um dos revisores o comentário de que a regra de derivação encadeada não se aplicava à Economia!!!
[2] Corresponde ao erro crasso, na Matemática, de considerar infinitesimais como valendo zero.