sexta-feira, 10 de maio de 2013

Classes Sociais (Parte II)

2 - Trabalho Produtivo e Improdutivo
Vimos que na produção de bens o capitalista tem em vista obter um lucro a partir da mais-valia gerada pelo trabalho. O processo de exploração de mais-valia é designado por exploração económica do trabalho. O trabalho que gera mais-valia é designado por trabalho produtivo.
O conceito de trabalho produtivo, tal como a teoria do valor, foi inicialmente proposto por economistas que defendiam o modo de produção capitalista: Adam Smith e David Ricardo; este último descreveu o conceito com mais ênfase e desenvolvimento que o primeiro. Mais tarde, quando Marx desenvolveu ainda mais estes conceitos [3] e os levou às suas últimas consequências, os economistas ao serviço do capitalismo passaram a rejeitá-los.
Note-se que a produção de mais-valia não implica a produção de bens físicos. Assim, um programador que escreve um programa, um empregado de café e um músico de orquestra são trabalhadores produtivos quando trabalham para um patrão capitalista. O mesmo acontece com trabalhadores de certas áreas de serviços, como os transportes: o transporte de bens para o mercado ao serviço de uma empresa privada implica a realização de mais-valia para os capitalistas donos da empresa.
Inicialmente (finais do séculos XVIII a finais do século XIX), uma empresa capitalista era um conjunto de artesãos produzindo debaixo do mesmo tecto para um patrão. Com o desenvolvimento do capitalismo as condições técnicas do trabalho evoluíram e o processo de produção tornou-se cientificamente organizado. Actualmente, para além dos trabalhadores manuais, são também explorados economicamente trabalhadores técnicos (por exemplo, engenheiros) enquanto não participantes em funções do capital (supervisão das condições de trabalho de forma a assegurar o tempo e a intensidade de trabalho que correspondem à exploração de mais-valia).
Para além das áreas de actividade económica onde é produzida mais-valia existem outras áreas que utilizam a mais-valia produzida algures. Vejamos o caso do comércio (circulação de bens). Um trabalhador ao serviço de um capitalista comerciante desenvolve um trabalho improdutivo (não produtivo) de mais-valia, mesmo quando produz mais trabalho do que aquele que é pago. De facto, a actividade comercial corresponde a trocar bens por dinheiro ou vice-versa; o trabalho do trabalhador não pode ser capitalizado, transformado em capital para produzir novos bens ou serviços. Se o comerciante, em vez de empregar 5 trabalhadores que permitem efectuar a troca desejada bens « dinheiro, empregar 10, não é por isso que recebe maior rendimento. O rendimento do comerciante tem a ver simplesmente com a apropriação de uma parte da mais-valia incorporada nos produtos que compra ou vende; mais-valia produzida algures, em empresas produtoras de bens.
Algo de semelhante se passa com os trabalhadores bancários (circulação de capitais): são pagos com parte da apropriação de mais-valia efectuada pelos banqueiros. Neste caso o esquema de circulação é dinheiro «  dinheiro.
Voltemos ao trabalhador do comércio [4]. Suponhamos que o valor da sua capacidade de trabalho (manutenção socialmente adequada da sua capacidade de trabalho) corresponde ao valor de 5 horas das 7 horas diárias que contratualmente tem de trabalhar. As duas horas excedentes não produzem valor; proporcionam trabalho não pago ao patrão capitalista. Isto é, enquanto o trabalhador produtivo é expropriado do seu trabalho sob a forma de valor, o trabalhador improdutivo é sujeito a uma expropriação directa de trabalho. Como já vimos, não existe valor excedentário (mais-valia) criado na área comercial. O capitalista só participa na partilha de mais-valia produzida na área industrial e noutras áreas produtivas de mais-valia (por exemplo, transportes). O trabalhador do comércio «não cria directamente mais-valia, mas aumenta o rendimento do capitalista na medida em que executa parcialmente trabalho não pago» [5] Quanto mais trabalho não pago executa tanto mais ele é o agente que serve ao capitalista comerciante para embolsar mais-valia produzida nas áreas produtivas. Diz-se que o trabalhador do comércio é economicamente oprimido. À apropriação de trabalho não pago nas áreas improdutivas (de mais-valia) chama-se opressão económica do trabalho.
A noção nada tem a ver com um julgamento moral do trabalho: há imensos trabalhos improdutivos que são socialmente úteis. Trata-se de uma noção meramente operacional que permite distinguir, face aos diversos sectores de actividade económica, aqueles que resultam numa mais-valia que contribui para a acumulação de capital, daqueles outros que simplesmente correspondem a um consumo e circulação de mais-valia.
Voltemos ao caso da banca. Um banco vende serviços: depósitos, empréstimos, etc. Na venda desses serviços o banco apropria-se de: parte de mais-valia produzida em áreas produtivas, lucros capitalistas de áreas improdutivas (provenientes de opressão económica); parte do rendimento dos trabalhadores. O(s) capitalista(s) bancário(s) e seus agentes que desempenham a função do capital (p. ex., gestores) obtêm os seus lucros (ou parte deles) por opressão económica dos trabalhadores bancários. (O processo é aqui mais complexo, dada a existência omnipresente de especulação financeira; por isso dissemos «(ou parte deles)»).
Vejamos outros exemplos [6]. Numa fábrica os operários desenvolvem um trabalho produtivo: produzem mais-valia para um capitalista. O mesmo se passa com os engenheiros ligados ao processo produtivo. Um capataz, cujas funções incluem controlar os operários, realiza dessa forma funções do capital; realiza um trabalho improdutivo e por isso o seu salário é (pelo menos, parcialmente) pago com parte de mais-valia que o capitalista retira do trabalho dos operários e do pessoal técnico, incluindo engenheiros. Se o capataz não existisse continuaria a produzir-se mais-valia; só que não necessariamente redundando na mesma exploração do trabalho. Por vezes o mesmo trabalho pode ser produtivo ou improdutivo, dependendo de para quem se trabalha. A actividade de um professor é prestar um serviço. Se essa actividade for numa escola pública, o trabalho é improdutivo (embora socialmente útil): o governo retira dos impostos e, portanto, do total de mais-valia produzida no país, uma parcela para lhe pagar. Se a actividade do professor for numa escola privada, passa a ser uma actividade produtiva: tem de produzir uma mais-valia para o capitalista proprietário da escola. Um outro exemplo: se eu monto candeeiros ao domicílio o meu trabalho é improdutivo (obtenho um rendimento que provém da mais-valia de outrem); se monto candeeiros num Hotel o meu trabalho é produtivo de mais-valia para o capitalista do Hotel; se monto um candeeiro na minha própria casa o meu trabalho não é produtivo nem improdutivo: está fora da esfera das relações de trabalho da sociedade capitalista.

3 - Empresas Capitalistas
No caso de uma firma de um único capitalista (p. ex., empresa individual), este, para além da sua função como capitalista (supervisão das condições de trabalho de forma a assegurar o tempo e a intensidade de trabalho que correspondem à exploração ou opressão económica), tem também, frequentemente, funções de trabalhador (p. ex., gestão do processo produtivo).
No caso de grandes empresas (corporações), como as sociedades por acções, a situação é bem mais complexa. Neste caso são os accionistas que detêm a posse legal dos meios de produção, enquanto a propriedade económica real, o controlo dos meios de produção, incumbe aos principais gestores. São eles que exercem a função do capital (supervisão, etc.) usando uma estrutura burocrática hierarquizada de funcionários, quer com funções parciais de gestão (p. ex., engenheiros com funções supervisoras) quer dominando disciplinas como economia, marketing, matemática, estatística, psicologia, etc., cujo objectivo fundamental é a maximização dos lucros da empresa. A mais-valia produzida escoa-se para os accionistas e gestores principais e, parcialmente, para funcionários com as funções atrás mencionadas.
Note-se que a «firma» ou «grande empresa» pode corresponder a uma pequena ou grande exploração agrícola.

4 – A Identificação das Classes. Burguesia e Proletariado
Marx e Engels, bem como outros autores anteriores, não propuseram nenhuma definição de classes. Além disso, as suas referências a classes sociais encontram-se disseminadas nas respectivas obras, embora Engels tenha reunido num trabalho de divulgação [8] caracterizações de várias classes socais (do sistema capitalista e do sistema feudal).
Lenine, contudo, propôs, num pequeno texto pouco conhecido [7], a seguinte definição de classes sociais:
«Classes são largos grupos de pessoas que diferem entre si
1) pelo lugar que ocupam num sistema social de produção historicamente determinado
2) pela sua relação com os meios de produção (em geral fixada e determinada por lei)
3) pelo seu papel na organização social do trabalho, e
4) consequentemente, pela dimensão da porção de riqueza social de que dispõem e do modo da sua aquisição»
Esta definição tem sido usada com ligeiras alterações por outros autores (é o caso do trabalho de G. Carchedi citado em [4]). Note-se que as obras de Marx e Engels focam com maior ênfase os dois primeiros aspectos da definição acima: por exemplo, se são trabalhadores produtivos ou improdutivos e se possuem ou não meios de produção. Os outros dois pontos aparecem com menos ênfase.
Com base na definição acima são identificadas as duas principais classes do sistema capitalista ¾ historicamente designadas por burguesia e proletariado ¾ como se segue.
Comecemos pela pequena empresa capitalista (incluímos entre parênteses os números da definição acima):
O proletariado são os agentes economicamente explorados ou oprimidos (1), que não possuem meios de produção (2), que desempenham a função de trabalhador colectivo (3), e recebem um salário pela mais-valia que produzem ou que outros produzem (4).
A burguesia é exactamente o oposto: são os agentes que economicamente exploram ou oprimem (1), que possuem os meios de produção (2), que não desempenham funções de trabalhador colectivo mas sim do capital (3), e obtêm um rendimento proveniente de mais-valias produzidas na própria empresa ou produzidas por outras (4).
Por vezes, conforme se trata do sector industrial ou agrícola, utilizam-se, respectivamente, as designações «urbano» e «rural». Por exemplo, assalariados de fábricas (operários) ou de empresas comerciais, tradicionalmente perto ou em centros urbanos, fazem parte do proletariado urbano; assalariados rurais constituem o proletariado rural.
Quanto à grande empresa capitalista, típica do capital monopolista e/ou globalizado:
As caracterizações são as mesmas, com a diferença que é agora necessário classificar os gestores como membros da burguesia, dado serem eles os que detêm o controlo real do capital e desempenham as funções do capital (3). Os que detêm a propriedade legal dos meios de produção e vivem dos rendimentos das acções (principais accionistas) são colectivamente designados por burguesia rentista. Pode, é claro, existir situações mistas, com gestores vivendo das suas funções ao serviço do capital e dos rendimentos de acções.

[3] Para além de "O Capital", o conceito de mais-valia foi analisado em detalhe por Marx na sua obra "Teorias de Mais-Valia", infelizmente não publicado em português.
[4] Seguimos aqui, e em grande parte do nosso artigo, a exposição de Guglielmo Carchedi (1977) On the Economic Identification of Social Classes. Routledge & Kegan Paul Pub., que reputamos de essencial embora de leitura difícil. Carchedi é Professor de Economia e de Sociologia na Universidade de Amsterdão. Vale a pena também ler, do mesmo autor, o artigo Behind and Beyond the Crisis, publicado pela revista International Socialism (n.º 132, pp. 121-155, 2011) onde analisa as relações sociais no sector financeiro. A wikipedia na versão inglesa também fornece um texto de interesse sobre trabalho produtivo e improdutivo: http://en.wikipedia.org/wiki/Productive_and_unproductive_labour.
[5] Esta passagem é do volume III de "O Capital". Tanto quanto conseguimos saber o volume III (compilado e publicado postumamente por Friedrich Engels) nunca foi traduzido e publicado em Portugal. Só foram publicados na versão integral os volumes I e II nos anos setenta (edições das editoras Delfos e Centelha). As Edições Avante têm também vindo a publicar os volumes I e II, estando neste momento publicado o tomo VI do segundo volume.
[6] Ver Mick Brooks (2005) Productive and Unproductive Labor (http://www.marxist.com/unproductive-labour1981.htm). Este trabalho, embora contenha alguns esclarecimentos e exemplos de interesse, contém também vários erros e confusões entre trabalho improdutivo e consumo improdutivo.