segunda-feira, 6 de maio de 2013

Classes Sociais (Parte I)

As designações classistas, usadas quer pelos media quer pelos cidadãos em geral, são quase sempre designações baseadas no rendimento. Fala-se, por exemplo, em classe alta, média e baixa. São designações que não têm em conta a identificação económica das classes, nomeadamente o seu posicionamento quanto às relações de produção. São, por isso, inadequadas no que se refere à caracterização da orientação ideológica e política dessas «classes», quanto ao seu papel histórico. A materialidade das relações sociais, economicamente determinadas, é o determinante básico (mas não único) da orientação ideológica e política e, por conseguinte, do lado da barricada que cada um escolhe na sua passagem pela História.
É também comum assistir-se à utilização incorrecta das designações de classes que possuem uma definição precisa em termos de identificação económica. Ouve-se, por exemplo, dizer «Ele vive bem. É um autêntico burguês.» com um significado errado de burguês, como se tivesse a ver com o critério de rendimento.
A identificação económica das classes sociais remonta aos filósofos iluministas franceses do século XVIII e à burguesia revolucionária da Revolução Francesa. Os primeiros estudiosos ingleses da economia política, nomeadamente Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823) deram também uma contribuição importante à caracterização económica das classes sociais. Coube, porém, a Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) a tarefa de tornar mais precisos os conceitos de classe, conceitos esses que foram sendo actualizados por vários autores, principalmente os de influência marxista, acompanhando a evolução do capitalismo. Note-se que, uma vez esgotadas as revoluções burguesas na Europa e nas Américas, a burguesia deixou de ser uma classe revolucionária, interessando-lhe, pelo contrário, ocultar ou mesmo suprimir tudo que tivesse um carácter ideológico preciso e potencialmente «subversivo». Patrocinou, por isso, uma visão classista baseada no rendimento; aquela que os meios de comunicação dominados pela burguesia nos transmitem. Acresce que, com a hegemonia da economia neoclássica e, mais modernamente, neoliberal, a burguesia foi mais além, advogando a ideia de que não existem classes no mundo actual, sendo os capitalistas e trabalhadores meros factores de produção que podem livremente migrar de uma posição para outra. Tudo a bem da «paz social», da colaboração fraterna dos «factores de produção».
Propomo-nos, com o presente artigo (Parte I) e seguintes (Partes II e III), contribuir para o esclarecimento da caracterização de classes no sistema capitalista, à luz da sua identificação económica (embora com alguns apontamentos políticos quando achados de interesse). A nossa exposição é estruturada nas seguintes secções:
1 – A Produção Capitalista
2 – Trabalho Produtivo e Improdutivo
3 – Empresas Capitalistas
4 – A Identificação das Classes. Burguesia e Proletariado
5 – As «Classes Médias» e a Pequena Burguesia
6 – Os Sectores Estatais
7 – O Lumpen-proletariado
8 – Nota Final
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1 - A Produção Capitalista
Com vista a identificar economicamente as classes sociais, temos primeiro de introduzir de forma breve alguns conceitos da teoria do valor de Marx, bem como de trabalho produtivo e improdutivo.
Segundo a concepção marxista, na produção capitalista de bens para serem vendidos no mercado (isto é, mercadorias ou commodities como se diz em inglês), o valor de um bem produzido é determinado pela quantidade média de trabalho correntemente necessária para o produzir [1]. Trata-se aqui de um trabalho «abstracto», resultante da comparação média em termos de mercado de vários trabalhos concretos [2]. O valor pode ser representado quer em horas de trabalho abstracto quer em termos de uma moeda, como o euro. Se a produção do bem A necessita de duas vezes mais tempo de trabalho que a do bem B, então o valor de A é o dobro do de B. A expressão «correntemente necessária» reflecte a ideia de que o valor de novos objectos determina o valor dos antigos. Assim, se um alqueire de trigo vale 6 € em 2010 e em 2011 vale 5 €, então o trigo excedentário de 2010 vale também 5 € em 2011. A expressão «quantidade média de trabalho» significa que o que interessa ter em conta é aquilo que Marx designa por «tempo de trabalho socialmente necessário», uma média do tempo de trabalho empregue pelos vários produtores do mesmo bem; os que empregam mais tempo de trabalho do que o «socialmente necessário» não obtêm por isso mais valor.
Na produção capitalista o objectivo essencial da produção não é a satisfação das necessidades sociais, mas sim a obtenção de lucro; as necessidades sociais são satisfeitas apenas na medida em que conduzem à produção de bens que podem ser vendidos com lucro. Além disso, existem muitos bens que são produzidos que nada têm a ver com necessidades sociais, desde bugigangas a ogivas nucleares.
Os bens produzidos incorporam duas componentes de valor, de capital, fornecido (pago) pelos capitalistas: 1) o valor transferido pelos meios de produção (máquinas, matérias-primas, valor de patentes, etc.) = «capital constante», que incorpora valor de anterior tempo de trabalho; 2) salários pagos aos trabalhadores = «capital variável». Entretanto, quando o bem produzido é apresentado no mercado o seu valor não é simplesmente «capital constante» + «capital variável». Se o fosse, o capitalista, enquanto simples fornecedor de capital, obteria de volta aquilo que investiu. Isto a menos de flutuações do valor de troca no mercado. É óbvio que nenhum capitalista embarcaria em tal negócio. O que na realidade acontece é que o bem produzido incorpora uma terceira componente de valor, a «mais-valia», que está na origem do lucro do capitalista.
A «mais-valia» corresponde a trabalho excedentário (é esta a designação dada por muitos economistas), não pago aos trabalhadores. Levanta-se a questão: mas isto não é uma ilegalidade ou imoralidade? De forma nenhuma. Nas sociedades capitalistas a «extracção» de mais-valia do trabalho é perfeitamente legal e moral. A justificação é a seguinte. A empresa não tem de pagar ao trabalhador o que corresponde ao valor incorporado pelo trabalhador no bem produzido. O bem produzido pertence à empresa, não pertence ao trabalhador. O que a empresa paga ao trabalhador (ou deveria pagar, melhor ou pior) não é o valor do seu trabalho, mas sim o valor da sua «capacidade de trabalho». Suponhamos que a empresa paga ao trabalhador 900 €/mês; paga esta importância de forma a assegurar uma dada capacidade de trabalho; paga ao trabalhador 900 €/mês de forma a assegurar-lhe um certo nível de alimentação, alojamento, cuidados de saúde, etc., que permita manter a capacidade de trabalho do trabalhador, assegurando que no mês seguinte ele esteja pronto para trabalhar. (É claro que o salário correspondente ao assegurar de dada «capacidade de trabalho» é historicamente e socialmente determinado, dependendo também da luta dos trabalhadores. Em cada sector de actividade tem como referência o salário mínimo.) Com o «custo de manutenção» do trabalhador em 900 €/mês (custo de manutenção da sua capacidade de trabalho) a firma consegue que ele produza o equivalente a 1200 €/mês em bens a transaccionar no mercado. Os 1200 - 900 = 300 €/mês constituem a mais-valia de onde o capitalista extrai o lucro. O salário = custo-de-manutenção-da-capacidade-de-trabalho foi legalmente fixado em contrato de trabalho, aceite pelo trabalhador (que remédio!). O contrato foi «livremente» celebrado e os 900 €/mês são considerados pela classe capitalista como permitindo boas condições de existência, para que o trabalhador volte no mês seguinte com a mesma capacidade de trabalho; capaz de produzir 1200 €/mês. Eis a legalidade e a moralidade satisfeitas. Ninguém se dá conta da produção de mais-valia, e a obtenção de lucro por parte do capitalista parece a muita gente ter origem misteriosa (esperteza do capitalista que consegue «enganar» o mercado?).
A teoria marxista do valor sofreu, por parte de muitos autores, várias críticas de inconsistência. Todas elas foram cientificamente refutadas [2]. As escolas económicas defensoras do capitalismo (nomeadamente a escola neoclássica da economia convencional) são incapazes de apresentar uma explicação alternativa coerente para o lucro. Para elas a origem do lucro continua ainda rodeada de uma auréola de mistério.

[1] A ideia de valor já tinha sido introduzida por David Ricardo (1772-1823). Marx apenas a tornou mais precisa. Várias obras de Marx, com destaque para "O Capital", apresentam a teoria do valor. Seguimos aqui a exposição de A. Kliman, "Reclaiming Marx's "Capital. A Refutation of the Myth of Inconsistency", Lexington Books, 2007.
[2] Uma clarificação precisa e detalhada destes conceitos é apresentada em "O Capital", vol. I, de Marx. De leitura mais fácil sugere-se "O Capital: Conceitos Fundamentais" de Marta Harnecker, publicado por Iniciativas Editoriais (4.ª edição de 1975); esta obra está também publicada noutras línguas. Ver também Karl Marx, "Trabalho Assalariado e Capital". Edições «Avante!».