No Congresso do PS, que concluiu neste último fim-de-semana os seus trabalhos, foi adoptado um documento intitulado «Novo Rumo». O PS é conhecido pela sua postura bombástica, algo megalómana. Os próprios títulos dos seus documentos e programas reflectem tal postura. Com António Guterres tivemos «Estados Gerais» (como na Revolução Francesa!); com José Sócrates tivemos «Novas Fronteiras» (como na epopeia do Far-West!); agora, com António Seguro, temos «Novo Rumo». Tudo assim «à grande e à francesa» «pour épater le bourgeois». A forma é que interessa. O conteúdo não interessa. Na realidade, e como sempre, o «Novo Rumo» é o «Mesmo Rumo»: entradas de leão, saídas de sendeiro. Vejamos porquê.
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O PS é, de facto, um partido social-democrata. É o representante português da corrente social-democrata europeia. Esta corrente representa fundamentalmente os interesses da pequena burguesia (pequenos capitalistas, profissões liberais) que, no caso europeu, procura obter dos grandes capitalistas, através de uma política de colaboração de classes, um entendimento, uma «concertação social», que permita aos trabalhadores usufruir das migalhas que caem da mesa do grande capital. Isto, pelo menos, em tempos de vacas gordas. As migalhas, sob a forma de «contribuições sociais», permitiram construir na época áurea do capitalismo ¾ pós segunda guerra mundial, e como contraponto ao rápido desenvolvimento e atracção que na altura do pós-guerra era apanágio dos países de «socialismo real» ¾, o chamado «Estado Social» europeu.
(Diga-se a propósito que o PSD, que se diz social-democrata é, de facto, aquilo que se chama um partido liberal, representante dos interesses do grande capital que colhe com a sua fraseologia populista e liberal o apoio de outros estratos da burguesia, incluindo latifundiários, e de largas camadas pouco politizadas da população como o campesinato. O CDS é um partido democrata cristão, não centrista, que colhe votos nas mesmas áreas do PSD mas com particular incidência na população católica envelhecida, temerosa de quaisquer mudanças [não é por acaso que vemos Paulo Portas nas campanhas eleitorais a percorrer os lares de terceira idade]).
O PS, tal como os demais partidos sociais-democratas europeus, usa grandes frases sobre a construção do «socialismo democrático», do «socialismo de face humana». De facto, nem o PS nem qualquer outro partido europeu congénere alguma vez construiu ou irá construir o «socialismo». Usam a palavra «socialismo» como fachada, como cobertura da sua política de colaboração de classes em prol da defesa do capitalismo, em particular do grande capital financeiro. Este «segredo de Polichinelo» ainda colhe dividendos entre os trabalhadores, nomeadamente aqueles que estão influenciados pela elite dos trabalhadores enquistados nos sindicatos amarelos da UGT, bem como os trabalhadores influenciados pela diáspora da emigração que alimentam ilusões sobre o PS poder fazer de Portugal uma segunda França, Alemanha ou Holanda.
A grande representatividade do PS está assim explicada. Não se trata de atracção dos trabalhadores pelo «socialismo». Os trabalhadores votantes do PS nem sabem o que isso é. Votam no PS porque este é uma «esquerda de confiança»: juntamente com os senhores doutores e no quadro de uma «concertação social» (leia-se colaboração de classes) conseguirão manter o «Estado Social», actualmente em processo de erosão.
Em certos países europeus (França, Alemanha, Holanda, …) os respectivos partidos sociais-democratas têm (talvez melhor, têm tido) uma participação interessada (talvez melhor, interesseira) de certas camadas de trabalhadores. Aqueles que usufruíram de regalias importantes do respectivo «Estado Social» no âmbito da extracção imperial de mais-valias de países neocolonizados. A colaboração de classes era abertamente reconhecida e aceite por esses trabalhadores usufrutuários do «império»; pelas aristocracias operárias que pelos seus rendimentos pouco ou nada se distinguiam dos rendimentos da pequena burguesia. No caso português a situação é bem diferente. Essa distinção existe e, precisamente por isso, o PS português como dissemos acima representa apenas os interesses da pequena burguesia, nomeadamente dos senhores doutores e de todos os que aspiram a subir ao escalão de grande burguesia. Para o PS os interesses dos trabalhadores virão sempre em terceiríssimo lugar. Para o PS o respeitinho pelas desigualdades é muito bonito.
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Para o PSD e o CDS a arte de enganar não necessita de grande sofisticação. Algumas mentirolas e um pouco de demagogia populista é quanto basta para convencer os seus votantes despolitizados ou politicamente atrasados. Os votantes mais politizados sabem perfeitamente quais os interesses que o PSD e o CDS representam.
O caso muda de figura no que respeita ao PS. A necessidade de convencer trabalhadores e a fracção de pequena burguesia de tendência radical coloca dificuldades ao discurso do PS. Teve de elevar a arte do ludíbrio a cúmulos de virtuosismo. Essa arte assenta nos seguintes ingredientes:
1) A repetição de que o PS é de «esquerda» apesar da sua política privilegiar a burguesia, sendo essencialmente indistinguível da política do PSD e PSD/CDS (não nos esqueçamos que, entre outras coisas, o PS foi o primeiro partido a coligar-se num governo com o CDS a seguir ao 25 de Abril; isto quando ainda usava uma fraseologia marcadamente de esquerda, inclusive marxista);
2) A utilização de fraseologia pretensamente modernista, baseada em congeminações de filósofos ao serviço do capitalismo, para emprestar um ar douto às suas políticas de direita (recordemos, por exemplo, as justificações da ministra da Educação dos governos Sócrates baseadas nas «ciências da educação» desenvolvidas por filósofos burgueses franceses);
3) A utilização na mesma frase de apontadores para a direita e para a esquerda (do género «O PS é a esquerda responsável» em que o «responsável» serve de contraponto à esquerda, como se dissesse «O PS, apesar de ser de esquerda é também o partido da ordem burguesa», ou ainda «Há por aí uma esquerda irresponsável mas nós não somos desses»; incrivelmente o diletante BE também diz coisas semelhantes!);
4) A utilização de frases ambíguas, frequentemente com utilização de conceitos «acima das classes» (o conceito de «cidadania» redescoberto por Manuel Alegre e consortes é um exemplo; a seguir à Revolução Francesa e demais revoluções liberais todos passaram a ser cidadãos perante as leis da sociedade burguesa, com uns ¾ os burgueses ¾ mais cidadãos que os outros; o conceito só é de esquerda no âmbito da sociedade feudal). Todas as frases ambíguas do PS devem ser sempre lidas nas sua interpretação mais direitista.
Vejamos, então, o que saiu deste último Congresso do PS:
- «O PS honrará as dívidas do país e respeitará as obrigações de membro da Zona Euro» (Seguro, 26/4). Isto, devidamente lido, quer dizer que o PS tenciona submeter-se inteiramente aos ditames da troika (exemplo de 4).
- «O nosso compromisso é o de mudar a Europa, para que coloque toda a sua força, a sua energia, os seus instrumentos, em prol da criação do emprego, da criação de desenvolvimento e prosperidade» (Seguro, 26/4). A primeira parte da frase, «O nosso compromisso é o de mudar a Europa», é um exemplo da tendência megalómana do PS: já não vão só mudar Portugal; vão também mudar a Europa! E é também um exemplo de 4: que Europa? A UE? A das instituições Europeias (comissões, etc.)? Merkel e Hollande? Partidos europeus que representam os trabalhadores? Partidos europeus que representam o capital? Depois seguem-se as boas intenções: «criação do emprego, [da] criação de desenvolvimento e prosperidade». Mas por que meios a divina «Europa» acima das classes «usando toda a sua força, a sua energia» (já estamos a ver a deusa a abrir a túnica e a arregaçar as mangas) vai criar emprego, desenvolvimento e prosperidade? Será que essa «Europa» está agora ausente do consulado Passos-Gaspar?
Enfim, belas frases bombásticas que não dizem nada, não esclarecem nada. Absolutamente nada.
- A 27/4 Seguro, quanto a propostas económicas, tirou um coelho do chapéu. Um coelho de 12,5 biliões (mil milhões) de euros para ajudar a criar emprego. Em termos simples, 7,5 biliões viriam da banca portuguesa e 5 biliões do Banco Europeu de Investimento. Dos 7,5 biliões 4,5 seriam obtidos por diminuição do rácio entre o capital da banca e os seus activos ponderados pelo risco. Esse rácio foi colocado pelo Banco de Portugal em 10% a partir de 31/12/2012; anteriormente estava a 9% e é a esse valor que Seguro quer regressar, libertando cerca de 4,5 biliões. Não estamos, contudo, a ver o Banco de Portugal a voltar atrás numa decisão baseada numa ponderação de riscos sem fazer soar campainhas de alarme na troika e no BCE. Aliás, se fosse assim tão simples usar este coelho bancário, o amigo dos banqueiros Gaspar já há muito o teria usado.
- Quanto a propostas políticas, Seguro defendeu a necessidade de uma maioria absoluta «porque tem de haver condições de estabilidade política» (repetindo uma ideia-chave que o PS sempre usou em anteriores eleições). Referiu também não descartar coligações governamentais dizendo que «O estado de emergência em que o país está não dispensa ninguém», um belo exemplo de frase ambígua com apontadores para a esquerda e para a direita (exemplo de 3). Na realidade a frase era para ser lida como apontador para direita, como fez questão de esclarecer o deputado Manuel Seabra: «Desiludam-se aqueles que pensam que o consenso se faz à Esquerda». Pronto, aí temos o BE sem a possibilidade de passar um atestado de bom comportamento ao PS (ver n/ artigos de 4/1 e 17/3).
- Ainda na política assinale-se que não houve uma única referência ao abandono do memorando com a troika e à renegociação da dívida, como bem notou Carvalho da Silva, um dos dinamizadores do Congresso das Alternativas que tanta fé punha numa concertação com o PS. Razão tínhamos nós, logo no início desse evento, em afirmar que tal Congresso não serviria para mais nada do que emprestar um tom de esquerda ao PS (ver n/ artigo de 21/9/2012).
- No Congresso PS não podia, é claro, faltar uma frase lapidar de cretinice modernista de Francisco Assis: «Não recebemos lições de ninguém em termos de modernização do Estado Social». Assim mesmo. Num país de enormes carências básicas, com cerca de 1/3 de pobres, com um pálido fantasma de «Estado Social», Assis crê que a única coisa que faz falta é a modernização. Como se fôssemos uma espécie de Suécia em que o que só faz falta em termos de modernização é qualquer coisa como a distribuição gratuita de escovas de dentes eléctricas nas consultas odontológicas. E, caro leitor: faça favor de não avançar com ideias e sugestões ao Assis. Ele sabe tudo e não aceita lições de ninguém. É o mega-meta-filósofo.
- Para aumentar o carisma de Seguro, assistiu-se no Congresso a uma sessão de bajulice bem ao estilo PS, com Álvaro Beleza elogiando declamatoriamente Seguro como «um homem excepcional de grandes qualidades humanas e liderança» e terminando nestes termos: «Tu sabes somar, sabes mais porque és honesto, dedicado, humano, rigoroso, atencioso». Parece que Seguro ficou muito emocionado. Não sabemos se alguns dos presentes não tiveram por momentos a sensação de estarem na Coreia do Norte a assistir ao elogio de Kim Jong-un. Enfim, como diriam os «nuestros hermanos» foi de «ir às lágrimas».
Novo Rumo? Não. O mesmo rumo de sempre.
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Arriscamos, sem grande risco, um prognóstico: o PS irá ganhar as próximas eleições legislativas e irá governar sozinho.
Vão ser mais quatro anos de degradação económica e social, pontuada talvez por uma ou outra pequena melhoria episódica, dependente não da «arte» do PS mas da forma como o capitalismo imperial conseguir aliviar momentaneamente a crise.
Vão ser mais quatro anos perdidos.
Perdidos também em termos da construção de uma alternativa e movimento de esquerda credíveis.
À esquerda, os grandes responsáveis e culpados desta situação são o BE, os renovadores comunistas, os do Congresso das Alternativas e outros do mesmo estilo, que, em vez de riscarem o PS da equação, continuam a alimentar em largas camadas da população a ilusão de que o PS é de esquerda.
São culpados os que, em vez de estudarem tudo que tem sido criado em anos recentes em termos de novas contribuições para (e de) uma praxis de esquerda, em vez de se debruçarem sobre a análise histórica e económica aprofundada das experiências socialistas, preferem a lei do menor esforço, trilhando caminhos rotineiros e utilizando ideias que cheiram a mofo e estão irremediavelmente condenadas ao fracasso. Como a disparatada ideia da «aliança de esquerda» com o PS.