A história das
sociedades classistas tem sido pródiga em exemplos de submissão-aliança da
classe dominante dos países oprimidos aos ditames da mesma classe de países
opressores. Submissão-aliança cujo objectivo é a exploração conjunta, «aliada»,
das classes expoliadas dos países oprimidos.
Na história actual
dos países capitalistas tal fenómeno -- submissão da classe capitalista, a burguesia, dos países oprimidos, aos
ditames da burguesia de países opressores – é sistemático. É uma lei. Entendemos
aqui oprimido e opressor num sentido lato, que poderá não envolver um domínio
directo, administrativo e militar, do país oprimido por parte do país opressor,
como acontece na dominação colonial. O país oprimido pode simplesmente ser um
país política e economicamente fraco, coagido por relações desfavoráveis de
comércio internacional ou por constangimentos e ditames políticos e económicos
impostos por um ou mais países «fortes» no quadro da divisão de trabalho
imposta pelo capitalismo a nível regional e mundial. É o que acontece com
Portugal no âmbito da União Europeia (UE), dominado por ditames políticos e
económicos que servem fundamentalmente os interesses do «eixo» Alemanha-França
(com hegemonia da Alemanha) apadrinhado pelos EUA.
A burguesia
portuguesa, continuando a sua tradição de dependência/obediência ao capitalismo
estrangeiro, está submissa, e de forma geral contente e grata, aos ditames da
«aliança» que, no âmbito da UE, estabeleceu com a burguesia do «eixo» (e de
outros países da UE). Tal «aliança» constitui, no fundo, um compromisso com as
burguesias do «eixo», voltado para a manutenção de determinados padrões de
exploração das classes trabalhadoras. Por vezes, tal compromisso é larvar;
outras vezes, e em particular em tempos de crise, tal compromisso desabrocha de
forma drástica em toda a sua plenitude: é o que acontece presentemente com a submissão
da grande burguesia portuguesa aos ditames da Troika. Dissemos acima «de forma
geral», porque se o fenómeno é claro no que concerne a grande burguesia,
principalmente a do sector financeiro, podem observar-se excepções no que
concerne a pequena burguesia (por exemplo a de algumas PMEs que produzem
exclusivamente para o mercado nacional).
O objectivo deste
artigo não é, porém, analisar como se traduz nos planos político e económico a
referida submissão-«aliança» no caso de Portugal. (Exemplos de dominação
económica foram já analisados em artigos anteriores.) Vamos tão somente chamar
a atenção para um fenómeno menos analisado: a aculturação que os países oprimidos sofrem por intervenção da respectiva
burguesia, que tudo faz para faciltar, ao nível das consciências, a aceitação
da «aliança», através da importação de formas e modas culturais exógenas. Em
Portugal o fenómeno não se limita apenas às «influências» provenientes de
países directamente opressores; extravasou para outros países cujo potencial
económico e político pode trazer benefícios à burguesia, como o Brasil e
Angola.
Para a grande burguesia
a «dignidade nacional» começa e termina nas portas das sua mansões e é avaliada
pelo número de dígitos das suas contas bancárias. A aculturação das massas, a
perda de dignidade do povo, é-lhe irrelevante.
A aculturação em
Portugal teve a sua primeira manifestação pós 25 de Abril logo a seguir à
adesão à CEE (antepassada da UE) pela mão do PS. De repente ficámos a saber que
era um grosseiro disparate escrever as datas em formato numérico como sempre se
tinha escrito, de acordo com a nossa língua-mãe. Fomos informados que em toda a
documentação, mesmo a de âmbito puramente nacional, «6 de Maio de 1980», por
exemplo, que sempre tínhamos escrito como 6/5/1980, se passava a escrever 1980/05/06;
mesmo que isso desse lugar a erros constantes de interpretação, no caso do
exemplo lendo à portuguesa «1980, 5 de Junho». «Mas porque diabo hão-de os
portugueses ler á portuguesa?», perguntariam provavelmente as sumidades
governativas. Por isso mesmo, logo nas escolas primárias se ensinavam as
crianças a escrever segundo a nova moda, porque «de pequenino é que se torce o
pepino»... a favor do grande capital. Quando o cidadão comum procurava inquirir
sobre as razões de tão estranha moda recebia as mais desencontradas e
misteriosas justificações. De facto, a justificação era muito simples: a
conformação à escrita à inglesa («1980, May 6») usada na documentação da CEE
(actual Norma ISO 8601). Como sempre os nossos ajudantes do grande capital, «mais
papistas que o Papa», trataram de consolidar a nova moda mesmo na documentação interna, de âmbito nacional. E, «por causa das
coisas» impuseram logo o ensino da moda às crianças, não fossem elas crescer
escrevendo puramente à portuguesa sem o devido respeitinho pelas normas da
«Europa». É que para muitos dos senhores da direita que nos têm governado isto
de ser português... enfim, é aceitável, mas ser da Europa do grande capital é muito
melhor.
A seguir á
questão da data, outras imposições da UE a práticas portuguesas foram chegando:
proibição do consumo de petinga e leitão, proibição da arte chávega da pesca,
moda de escrever á inglesa valores monetários (p. ex., € 200 em vez de 200 €),
etc. Outras práticas foram adoptadas de motu proprio, como o passar por alto a
descrição das lutas populares no ensino da História de Portugal (crise de 1385
e outros eventos), e a importação da festividade do Haloween proveniente dos
EUA. Então não se está mesmo a ver que o Haloween faltava à cultura portuguesa?
A última
manifestação de aculturação corresponde ao «acordo ortográfico». Deu-se como
justificação do «acordo» facilitar a comunicação entre os países da CPLP.
Contudo, as dificuldades que se levanta(ra)m entre esses países nunca foram e
são de comunicação; são de outra índole: pagamento de dívidas, falta de
aplicação de articulados de acordos, etc. Não é por diferenças ortográficas que
subsistem problemas entre certos países da CPLP! Em Portugal foi avançada a explicação de que com
o «acordo» o mercado das nossas editoriais iria expandir-se para o Brasil.
Enumeremos, entretanto, certos factos essenciais da questão:
1.º: O «acordo»
representou uma grave perda de correspondência entre a ortografia e a fonética
do português de Portugal (bem como perda de correspondência com a etimologia). Em
vez de uma regra com poucas excepções, passámos a ter nenhuma regra. Um de
inúmeros exemplos gritantes é a palavra «espetador», versão do «acordo» para
«espectador»; isto é, aquele que assiste a um espectáculo passa a ser entendido
como um manejador de espeto. A aculturação imposta pelo «acordo» é evidente e
tem motivado muitos escritores portugueses a não seguirem o «acordo».
2.º: Apesar do
«acordo» subsiste um enormíssimo «desacordo» ortográfico entre o português de
Portugal e do Brasil.
3.º: As
diferenças ortográficas entre o português de Portugal e do Brasil são, digamos,
a ponta do iceberg. Muito maiores – enormes -- são as diferenças de léxico e de
sintaxe! Na expressão oral são também substanciais as diferenças de pronúncia
que não têm nada a ver com a ortografia.
No Brasil, onde
nos encontramos neste momento, o desconhecimento do «acordo» parece ser total.
Em Portugal – como sempre, «mais papistas que o Papa» -- martelam-nos
constantemente a cabeça com o «acordo» como se isso fosse um motivo de orgulho
para o povo português. Quanto á ideia do mercado livreiro, informamos que não conseguimos encontrar um único livro escrito
em português de Portugal em 3 grandes livrarias da cidade brasileira onde nos
encontramos presentemente. Os (poucos) livros de autores portugueses que
encontrámos eram todos de casas editoriais brasileiras. Encontrámos também
livros da editora Leya mas confeccionados no Brasil, escritos em português do
Brasil. Se é que serve para alguma coisa o «acordo» irá servir não Portugal,
mas sim o Brasil a entrar no mercado livreiro das ex-colónias de Portugal e
talvez também no português.
Enfim, uma
pesada machadada na cultura portuguesa, injustificada mesmo pela óptica dos
interesses imediatos dos capitalistas, e só possível porque o sentido crítico e
de dignidade da intelectualidade portuguesa anda por níveis baixíssimos.
A aculturação
serve os interesses do Capital por várias razões: contribui para baixar o
sentido de auto-estima; estimula o conformismo e a perda de sentido crítico;
remete pra segundo plano a identidade própria e o sentido unitário de luta por
intereses próprios, a troco de uma «cultura» cosmopolitista que favorece a
penetração da ideologia capitalista e imperialista.
No passado, a
burguesia quando se arvorava como defensora da cultura nacional, fazia-o num
sentido chauvinista, procurando atrelar os trabalhadores a um «pacto nacional»
de cariz mais ou menos fascistóide. Actualmente a burguesia prefere jogar a
carta do cosmopolitismo, do «modernismo», usando-a para justificar e tornar
aceitáveis os valores culturais imperialistas. É do interesse dos trabalhadores
não se deixarem aculturar numa massa amorfa, susceptível a todas as influências
externas, submissa a todas as indignidades, mas, pelo contrário, defenderem
valores identitários próprios, unidos na luta contra quaisquer ditames,
culturais ou outros, do capital internacional.