Foi recentemente noticiado, pelos jornais e outros meios de comunicação social, um erro detectado num artigo de investigadores americanos. O artigo defendia a baixa da dívida pública (DP) num sentido argumentativo da política de austeridade.
O erro teria sido cometido numa folha Excel. A forma como foi noticiado o assunto era de molde a levar o público a pensar que não houve mais que uma simples distracção, e que tudo não passou de um pequeno fait divers. A realidade, porém, é bem mais complexa, sinistra e, por isso, merecedora de uma análise detalhada. É o que nos propomos aqui fazer.
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A crise económica «do petróleo», de meados dos anos setenta, e a queda de lucro dos investimentos de capital que se observava por essa época levou a classe capitalista a procurar saídas económicas e ideológicas para o keynesianismo então praticado. O keynesianismo, que se propunha estabilizar o capitalismo, livrá-lo de crises, através de medidas de controlo do mercado e de investimentos públicos, só tinha sido possível no pós-guerra por existir um grande exército de trabalhadores desempregados, aumentado pelo «baby boom» do pós-guerra, e por existirem largos capitais disponíveis para o investimento no sector produtivo, investimento que tinha os incentivos das novidades técnicas do pós-guerra (rádio, televisão, electrodomésticos, etc.).
A saída encontrada para o keynesianismo só podia ser uma saída de reacção social. Milton Friedman e os seus «Chicago boys» ofereceram-na aos capitalistas. Propuseram uma visão económica que regredia às origens da economia política clássica (a visão liberal), com a defesa do mercado como gerador de equilíbrios; fizeram-no de forma hiperbolizada, com a divinização do «mercado livre». Nessa linha de pensamento sustentaram a privatização total de empresas públicas, incluindo a saúde e a educação. Todos os dirigentes reaccionários dos anos oitenta pegaram avidamente nesse pacote neoliberal, a começar por Thatcher, Reagan e Pinochet. No caso dos dirigentes «ocidentais» fornecia-lhes o pretexto necessário para baixar salários e atacar sindicatos e outros direitos dos trabalhadores, bem como para começar a desmantelar o «Estado Social» com privatizações de empresas do sector público (hospitais, transportes, electricidade, etc.). Tudo na perspectiva de conceder um novo fôlego ao capitalismo.
O FMI e o Banco Mundial (BM), instituições criadas no pós-guerra com o objectivo de firmar a hegemonia do capital americano a nível mundial, rapidamente passaram também da visão keynesiana para a neo-liberal. Ela foi corporizada no chamado «Consenso de Washington» (1981) que enumera um conjunto de «instrumentos políticos» guiando a acção do FMI e BM na concessão de empréstimos. Os «instrumentos políticos» incluem a redução das despesas públicas. Estas e outras medidas do «Consenso», justificadas pelas teorias neoliberais, tinham e têm por objectivo consolidar a hegemonia do capitalismo norte-americano e dos seus associados ocidentais (Europa e Japão).
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É sabido que a política económica da UE e zona euro se insere na visão neoliberal. O desmantelamento do «Estado Social» tem vindo a ocorrer com maior ou menor intensidade conforme os países, sempre justificado por regulamentos como o limite de 60% do PIB da dívida pública (DP) estabelecido no Pacto de Estabilidade e Crescimento. De facto, 12 em 17 países da zona euro não satisfaziam em 2010 tal limite; desses, fazia parte a Alemanha com 83% de DP (Eurostat).
Porquê 60%? É certo que se parte dos lucros dos capitalistas é absorvida pelo Estado, sob a forma de empréstimos, menos sobra para investimentos; além disso, o controlo estatal de áreas economicamente viáveis para a produção de mais-valia retira a possibilidade do capital se expandir. Por estes motivos o capital privado não gosta de DP elevada. Contudo, havia que explicar os 60%, não em termos do interesse do capital, mas em termos «politicamente correctos», de prejuízo do crescimento do valor produzido pela economia, de prejuízo do crescimento do PIB. O que há de especial no valor 60%? Ninguém na UE sabia justificar muito bem. As construções teóricas de Friedman (aliás, contendo vários erros) também não forneciam explicação; esta teria de ser buscada em estudos empíricos. Foi então que em 2010 Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff publicaram dois artigos nos quais, com base num estudo envolvendo 20 países de economia capitalista desenvolvida e o período de 1946-2009, reivindicavam a existência de um limiar a partir do qual o crescimento do PIB médio para os 20 países decaía acentuadamente com a razão DP/PIB. Esse limiar era 90%.
Carmen Reinhart é uma cubana naturalizada americana, professora na Universidade de Maryland, investigadora do NBER (National Bureau of Economic Research) que trabalhou nos anos noventa no FMI. Kenneth Rogoff é professor na Universidade de Harvard e trabalhou no FMI (que defendeu acerrimamente contra um prémio Nobel de Economia).
Quando o trabalho de Reinhart e Rogoff (que designaremos simplesmente por «RR») foi publicado foi logo entusiasticamente acolhido pelo FMI, pelo Comité Orçamental do Senado dos EUA e por todos os meios de comunicação ao serviço do capital: Financial Times, The Economist, Wall Street Journal, New York Times, etc. Finalmente os capitalistas dispunham de um trabalho científico para justificar a «austeridade».
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Em Abril de 2013 três investigadores (Thomas Herndon, Michael Ash, Robert Pollin) do Departamento de Economia da Universidade de Massachussetts Amherst publicaram um artigo intitulado «Does High Public Debt Consistently Stifle Economic Growth? A Critique of Reinhart and Rogoff» (http://www.peri.umass.edu/fileadmin/pdf/working_papers/working_papers_301-350/WP322.pdf) que se propunha replicar a análise do trabalho RR, estudando criticamente o assunto. Usaram a mesma folha Excel (emprestada por RR) e, portanto, os mesmos dados relativos ao PIB e à DP de 20 países de economia capitalista desenvolvida no período de 1946-2009. Os dados tinham sido categorizados por RR nos 4 grupos da tabela abaixo:
Categoria de percentagem da razão DP/PIB
| ||||
Abaixo de 30%
|
Entre 30% e 60%
|
Entre 60% e 90%
|
90% ou mais
| |
Países (*)
|
17
|
20
|
19
|
10
|
Países-anos
|
426
|
439
|
200
|
110
|
(*) EUA, Canadá, países da UE, Japão, Austrália, Nova Zelândia.
Os trabalhos RR tinham chegado ao seguinte resultado:
Valor médio da razão DP/PIB
| ||||
Abaixo de 30%
|
Entre 30% e 60%
|
Entre 60% e 90%
|
90% ou mais
| |
Valor médio do crescimento do PIB
|
4,1%
|
2,8%
|
2,8%
|
-0,1%
|
RR concluíram daqui que 90% de dívida pública em termos de PIB era o limiar a partir do qual existia grave prejuízo do crescimento da economia.
Entretanto, ao replicar os resultados, os três investigadores, que designaremos simplificadamente por HAP, deram-se conta que RR tinham cometido os seguintes erros nos dois trabalhos de 2010:
1 – Exclusão selectiva de dados
No período de 64 anos de 1946-2009, havia originalmente faltas de dados para alguns países; entre outras coisas, os registos dos vários países não começavam todos em 1946. Este é um problema comum em dados económicos. Mas o mais curioso é que RR procederam nesses dados a uma exclusão selectiva: retiraram da análise os dados de períodos iniciais da Austrália (1945-1950), Nova Zelândia (1946-1949), e Canadá (1946-1950). Ora, só no caso da Nova Zelândia 3 dos dados excluídos caíam na categoria 90% (ou mais) com crescimento do PIB positivo e elevado. Os valores da taxa do PIB para a Nova Zelândia nesses 4 anos são: 7,7, 11,9, -9,9, 10,9 porcento. Com a exclusão destes quatro valores sobrou apenas um ano (1951) na categoria 90% com taxa do PIB de -7,6%
2 – Erro de selecção na folha Excel
Um erro cometido por RR na folha Excel levou a excluir totalmente os registos de 5 países: Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá e Dinamarca. Este erro, só por si, contribuiu para baixar em 0,3% a taxa do PIB na categoria mais alta de DP/PIB.
3 – Cálculo de médias exótico
Em cada categoria de DP/PIB RR calculam a média por país para os vários anos e, só depois, calculam a média para todos os países. Assim, por exemplo, A Grécia e a Grã-Bretanha, ambas com 19 anos na categoria de 90% (ou mais) de DP/PIB e com taxa de PIB positiva contribuem tanto para a média quanto o único ano de taxa de PIB negativa da Nova Zelândia mencionada em 1!
4 – Erro de transcrição?
Na transcrição da taxa de PIB da Nova Zelândia em 1951, da folha Excel deste país para a folha Excel de todos os países, RR cometeram um erro: aparece -7,9% em vez de -7,6%. Só por si este erro faz baixar de 0,1% o valor da média.
Em suma, em vez de um trabalho cuidado, RR apresentam um trabalho descuidado, cheio de erros, sendo um deles ¾ o cálculo das médias ¾ grave. O resultado do cálculo sem erros, apresentado no trabalho HAP, é o seguinte:
Valor médio da razão DP/PIB
| ||||
Abaixo de 30%
|
Entre 30% e 60%
|
Entre 60% e 90%
|
90% ou mais
| |
Valor médio do crescimento do PIB
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4,2%
|
3,1%
|
3,2%
|
2,2%
|
Isto é, em vez da queda drástica de 3,9% da taxa média do PIB na maior categoria de DP/PIB, constata-se apenas uma queda moderada de 1%.
As quatro diferentes fontes de erro anteriormente assinaladas contribuíram todas para a queda da taxa média do PIB na categoria mais elevada de DP/PIB. Todas. Esta espantosa «coincidência» não pode deixar de levantar a suspeita de que RR, como os dados não suportavam o seu preconceito ideológico, trataram de manipular os dados para que o resultado passasse a ser o que queriam que fosse.
RR não se limitavam a dizer que o aumento da DP/PIB levava ao decréscimo da taxa de crescimento do PIB. Como vimos, diziam mais. Diziam que 90% de DP/PIB era um limiar a partir do qual a taxa do PIB decrescia mais do que devia: decrescia não linearmente. A figura abaixo mostra os diversos valores da taxa do PIB para cada categoria de DP/PIB. As médias calculadas por RR estão assinaladas por losangos; as calculadas correctamente por HAP estão assinaladas por bolas. Os cálculos errados de RR levaram a suportar a ideia da evolução da DP/PIB como mostrada a vermelho. Na realidade a evolução é como mostrada a azul.
Figura adaptada do trabalho de Herndon T, Ash M, PollinR Does High Public Debt Consistently Stifle Economic Growth? A Critique of Reinhart and Rogoff.
No trabalho HAP os autores também efectuaram os cálculos das médias introduzindo duas novas categorias de DP/PIB: 90 a 120% e acima de 120%. Continuaram a não detectar nenhuma queda abrupta da taxa de crescimento do PIB. Para além disso, aplicaram um teste estatístico comparando as diferenças de médias entre as categorias 60-90 e entre 90-120 face à diferença 30-60. O resultado foi: não há diferenças estatisticamente significativas.
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Em suma: uma das «verdades» propaladas pelas luminárias neoliberais do FMI, apoiada entusiasticamente pelos manipuladores de marionetes do BCE e outras instituições ao serviço do capital financeiro (sendo uma das marionetes e true believer o acéfalo e insensível Vítor Gaspar) cai pela base.
E acresce que há ainda uma outra questão não abordada no trabalho HAP: a questão da causalidade. Todo o trabalho de RR segue a interpretação causal do FMI: a de que é a dívida pública excessiva que causa o declínio do crescimento do PIB. De facto, para níveis elevados de DP/PIB no actual quadro das «austeridades» das economias desenvolvidas a causalidade é inversa: é o declínio do PIB que causa a crescentemente excessiva dívida pública. Basta olhar para o que está acontecer em Portugal.
Reinhart e Rogoff não se deram por vencidos com o artigo HAP. Avançaram justificações do tipo de tapar o sol com uma peneira que só podem fazer rir. O leitor encontra mais sobre este assunto em Michael Roberts, Revising the Two RRs (http://thenextrecession.wordpress.com/2013/04/17/revising-the-two-rrs/).