sexta-feira, 23 de maio de 2014

O imperialismo alemão e o saque a Portugal

Com o título «Ajudas a Portugal e Grécia foram resgates aos bancos alemães» publicou o jornal Público, no passado dia 11 de Maio, uma interessante entrevista de Philippe Legrain ([1]), economista neoclássico que foi conselheiro do presidente da Comissão Europeia (CE) Durão Barroso desde Fevereiro de 2011 até Fevereiro de 2014. Philippe Legrain declara na entrevista que tinha uma opinião muito diferente de outros conselheiros da CE sobre as políticas, ditas de austeridade, impostas a Portugal e à Grécia e que «os meus conselhos não foram seguidos». Apesar dos seus «óculos» neoclássicos (atribui as causas da crise apenas ao sector bancário e entende a crise como tendo apenas a ver com as dívidas pública e externa) Philippe Legrain advoga o perdão das dívidas. Produz também várias declarações de interesse, tanto mais que provêm de alguém que conhece o pensamento e modus operandi da troika e suas ligações aos poderes políticos. Podemos agrupá-las da forma que se segue, usando como subtítulos certas ideias-chave que vimos desenvolvendo desde o início do blog:

- O sector financeiro domina os governos da zona euro
Interrogado sobre como se explica que a «gestão da crise do euro» (de facto, crise do capitalismo da zona euro) tenha sido efectuada da forma que conhecemos, diz assim Philippe Legrain (PL) [sublinhados nossos]: «Uma grande parte da explicação é que o sector bancário dominou os governos de todos os países e as instituições da zona euro. Foi por isso que, quando a crise financeira rebentou, foram todos a correr salvar os bancos, com consequências muito severas para as finanças públicas e sem resolver os problemas do sector bancário».
    Portanto, PL, economista neoclássico, reconhece que «o sector bancário dominou [etc.]». De facto, é mais do que «dominou»; é «domina». E é mais do que o sector bancário. É o sector financeiro -- que agrupa, para além dos bancos, as companhias de seguros e as empresas de investimento --, que domina os «governos de todos os países e as instituições da zona euro». A afirmação «sem resolver os problemas do sector bancário» não é correcta. Grande parte dos «problemas» do sector bancário foi resolvida. A começar pelo sector bancário alemão e francês que absorveu biliões de euros provenientes de saques à Grécia, a Portugal, etc. Mesmo o sector bancário de Portugal, conforme vimos em artigos anteriores, foi salvo dos buracos abertos pelas malandragens do grande capital à custa de resgates; directos, do governo português, e indirectos, por mediação do BCE mas também à custa dos trabalhadores, reformados e pensionistas portugueses. Aliás, se grande parte dos «problemas do sector bancário» -- isto é, os «problemas» do capitalismo de casino que explicámos em vários artigos, em especial em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/02/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_22.html -- não estivesse resolvida, a troika não sairia oficialmente de Portugal; os «problemas» que ainda subsistem (o remanescente dos buracos) irão ser resolvidos com a troika à distância mas atenta a que os gestores do capital instalados no governo português não esmoreçam no saque aos trabalhadores, reformados e pensionistas para tapar esses remanescentes. Por mais vinte ou trinta anos, pelo menos.
    Noutra parte da entrevista, PL afirma: «Muitos políticos seniores ou trabalharam para bancos antes, ou esperam trabalhar para bancos depois. Há uma relação quase corrupta entre bancos e políticos»; «os Governos puseram os interesses dos bancos à frente dos interesses dos cidadãos».
    É claro que com «uma relação quase corrupta entre bancos e políticos» -- e PL está a referir-se aos políticos dos governos europeus, isto é, aos políticos dos «arcos da governação» -- não admira que, como diz PL, fossem «todos a correr salvar os bancos».

- O capital é quem mais ordena
Que no capitalismo é o capital quem mais ordena é óbvio. É um axioma. PL fornece um bom exemplo deste axioma quando revela o seguinte (esclarecimentos entre parênteses rectos da entrevistadora): «Como o Tratado da União Europeia (UE) tem uma regra de “no bailout” [proibição de assunção da dívida dos países do euro pelos parceiros] -- que é a base sobre a qual o euro foi criado e que deveria ter sido respeitada -- o problema da Grécia deveria ter sido resolvido pelo FMI, que teria colocado o país em incumprimento, (default), reestruturado a dívida e emprestado dinheiro para poder entrar nos carris. É o que se faz com qualquer país em qualquer sítio. Mas não foi o que foi feito [...]».
    Por conseguinte, o capitalismo europeu -- já vamos ver a seguir que PL se refere aos capitalismos alemão e francês -- violou as suas próprias regras quando estas não serviam os seus interesses imperiais. Quantas vezes não ocorreu já isto ao longo da História?

- O imperialismo alemão-francês
Logo a seguir PL revela quem violou as regras do Tratado da União Europeia: «Mas não foi o que foi feito, em parte em resultado de arrogância [...] mas sobretudo por causa do poder político dos bancos franceses e alemães. É preciso lembrar que na altura havia três franceses na liderança do Banco Central Europeu (BCE) – Jean-Claude Trichet – do FMI – Dominique Strauss-Kahn – e de França – Nicolas Sarkozy. Estes três franceses quiseram limitar as perdas dos bancos franceses. [...] Ou seja, o que começou por ser uma crise bancária que deveria ter unido a Europa nos esforços para limitar os bancos, acabou por se transformar numa crise da dívida que dividiu a Europa entre países credores e países devedores. E em que as instituições europeias funcionaram como instrumentos para os credores imporem a sua vontade aos devedores. Podemos vê-lo claramente em Portugal: a troika (de credores da zona euro e FMI) que desempenhou um papel quase colonial, imperial, e sem qualquer controlo democrático, não agiu no interesse europeu mas, de facto, no interesse dos credores de Portugal. E pior que tudo, impondo as políticas erradas. Já é mau demais ter-se um patrão imperial porque não tem base democrática, mas é pior ainda quando este patrão lhe impõe o caminho errado [...]».
    Portanto: os «bancos franceses e alemães» têm o poder político necessário para colocar as «instituições europeias» a funcionar como «instrumentos» que impõem a vontade aos países devedores.
    Vale a pena gastar algum tempo a ler o seguinte texto: «Em França, a dominação da "oligarquia financeira" [...] adoptou uma forma apenas um pouco diferente. Os quatro bancos mais importantes gozam não do monopólio relactivo, mas "do monopólio absoluto" na emissão de valores. De facto, trata-se de um "trust dos grandes bancos". E o monopólio garante lucros monopolistas das emissões. Ao fazerem-se os empréstimos, o país que os negoceia não recebe habitualmente mais de 90 % do total: os restantes 10 % vão parar aos bancos e demais intermediários. O lucro dos bancos no empréstimo russo-chinês de 400 milhões de francos foi de 8%; no russo (1904) de 800 milhões, foi de 10%; no marroquino (1904) de 62,5 milhões, foi de 18,75%. O capitalismo, que iniciou o seu desenvolvimento com o pequeno capital usurário, chega ao fim deste desenvolvimento com um capital usurário gigantesco. "Os franceses são os usurários da Europa" -- diz Lysis».
    Trata-se de um excerto da famosa obra «O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo» de Vladimir Ilitch Lenine. Excerto que exemplifica, precisamente, o domínio imperial da «oligarquia financeira» sobre países devedores. Em geral, devedores à força porque coagidos aos empréstimos (ver o que dissemos sobre os empréstimos que franceseses e ingleses fizeram à Tunísia e Egipto em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/12/a-primavera-arabe-parte-iia.html e http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/01/a-primavera-arabe-parte-ii-egipto.html ). Ontem como hoje, nada de novo à face da Terra; isto é, à face do capitalismo.
    PL também reconhece o domínio imperial, «quase colonial». Pois é. Como já argumentámos várias vezes, trata-se do imperialismo alemão-francês, de exploração neocolonial. Faz parte do neocolonialismo a asociação submissa dos grandes capitalistas do país neocolonizado aos interesses e ditames das oligarquias estrageiras neocolonizadoras.
    É claro que PL revela várias ingenuidades; como, por exemplo, subsumir um poder imperial com «controlo democrático» ou a existência de um «interesse europeu». Mas aquilo que acertadamente caracteriza como domínio imperial e «quase colonial» é louvável. 
    Noutras passagens PL complementa a ideia, como nesta: «o que aconteceu foi que a zona euro passou a ser gerida em função do interesse dos bancos do centro -- ou seja, França e Alemanha -- em vez de ser gerida no interesse dos cidadãos no seu conjunto». Deparamos aqui com o diagnóstico claro da submissão dos cidadãos da UE ao «centro» imperialista alemão-francês.
    PL também concorda com uma afirmação da entrevistadora de que «os resgates a Portugal e Grécia foram sobretudo resgates disfarçados aos bancos alemães e franceses para os salvar dos empréstimos irresponsáveis». Os «empréstimos irresponsáveis» poderão ser empréstimos a especuladores financeiros (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/02/o-sector-financeiro-vi-jogos-com_22.html) ou empréstimos forçados em que o país credor convence o país devedor a assumir um empréstimo, por exemplo na construção de infra-estruturas ou aquisição de equipamento sofisticado (submarinos, por exemplo). O «convencimento» fica a cargo da burguesia do país devedor, a troco de luvas pelo bom convencimento do respectivo povo. Portugal também teve disso. Sobre este tipo de empréstimos recomendamos vivamente a leitura do livro de John Perkins, «Confessions of an Economic Hit Man», Plume, 2005 (de muito baixo custo e descarregável grátis da Internet).

- No imperialismo alemão-francês o comparsa dominante é o alemão. E a CE o seu tentáculo.
Diz PL: «E o maior credor, a Alemanha, assumiu um ponto de vista particular. Claro que isto não absolve a Comissão, porque antes de mais, muitos responsáveis da Comissão, como Olli Rehn [responsável pelos assuntos económicos e financeiros], partilham a visão alemã. Depois, porque o papel da Comissão é representar o interesse europeu, e o interesse europeu deveria ter sido tentar gerar um consenso de tipo diferente, ou pelo menos suscitar algum tipo de debate. Ou seja, a Comissão poderia ter desempenhado um papel muito mais construtivo enquanto alternativa à linha única alemã»
    Para além do reconhecimento do domínio imperialista alemão, voltamos a deparar com a visão idealista de um abstracto «interesse europeu» que a CE poderia consubstanciar em oposição ao interesse e poder imperial alemão!
    Noutra parte da entrevista diz assim PL: «Houve orientação política, só que vinha da Alemanha. E a Alemanha aconselhou mal, em parte por causa da forma particular como os alemães olham para a economia, por causa da ideologia conservadora, e porque agiu no seu próprio interesse egoísta de credor em vez de no interesse europeu alargado. A UE sempre funcionou com a Alemanha integrada nas instituições europeias, mas aqui, a Alemanha tentou redesenhar a Europa no seu próprio interesse. É por isso que temos uma Alemanha quase-hegemónica, o que é muito destrutivo».
    Quando PL diz «Alemanha» devemos ler «o grande capital alemão». E o «Alemanha aconselhou mal» depende da perspectiva. Do ponto de vista de «o grande capital alemão» a «Alemanha» aconselhou bem. Quanto ao «Alemanha tentou redesenhar a Europa no seu próprio interesse» é evidente que o imperialismo alemão não só tentou mas tem vindo efectiva e obviamente a neocolonizar os países mais fracos da Europa no seu interesse. Com o apoio da França. E, como tem vindo a ser plenamente demonstrado, não só da França de Sarkozy como da França de Hollande. Uma França que, pelo domínio da extrema-direita e aliança submissa à Alemanha, evoca os tempos da França de Vichy. Na França como em Portugal e noutros países os partidos da Internacional dita Socialista sempre estiveram e estão ao serviço do grande capital.

- A falsa ideia de uma UE como comunidade voluntária entre iguais
Em dada parte da entrevista PL faz a seguinte afirmação (chavetas nossas): «{A política imposta pelos alemães} Transformou a natureza da UE, que passou de uma comunidade voluntária entre iguais para esta relação hierárquica entre credores exercendo o seu controlo sobre os devedores. Uma coisa é Portugal e outros, numa altura de desespero, aceitarem termos injustos, outra completamente diferente é aceitar numa base duradoura este sistema anti-democrático. Se nas próximas eleições for eleito um Governo diferente do actual e o sucessor de Olli Rehn for à televisão dizer que é preciso manter exactamente as mesmas políticas do governo anterior, naturalmente que os portugueses vão ficar escandalizados porque acabaram de eleger um novo Governo, pessoas diferentes e quem diabo é este comissário europeu não eleito que me diz que decisões sobre despesas e receitas é que tenho de tomar? Isto não é politicamente sustentável».
    Passemos por alto a formulação idealista de «Portugal» aceitar «termos injustos». É sempre o grande capital português que aceita termos injustos e usa as máquinas de controlo das consciências atrasadas para as convencer que os termos são justos. E um novo governo português do «arco da governação» pode impunemente (ou quase) continuar a fazer isso. Apesar de PL assumir e bem que muitos portugueses poderão interrogar-se «quem diabo é este comissário europeu não eleito que me diz que decisões sobre despesas e receitas é que tenho de tomar?». Concentremo-nos na primeira parte, sublinhada, da declaração.
    A UE nunca foi nem uma comunidade voluntária nem uma comunidade entre iguais. Que os países que fazem parte da UE não são iguais -- e o que importa aqui é avaliar a capacidade económica e as relações de dependência económica -- é de uma evidência gritante. Quanto ao voluntariado, assinale-se que, no caso de Portugal, não houve qualquer referendo sobre a entrada na CEE-UE e que, como muito bem analisou Álvaro Cunhal no seu livro «A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril», a entrada de Portugal na CEE foi feita por Mário Soares e PS, com apoio de toda a direita; para consolidar e aprofundar a contra-revolução, contra «Abril», de restauro dos monopólios e latifúndios, que nos conduziu onde estamos.
    Já vimos, por outro lado, que não se trata de uma simples «relação hierárquica entre credores exercendo o seu controlo sobre os devedores», decorrente de regras democraticamente determinadas, regulando o funcionamento hierárquico. Trata-se de um domínio imperial, em que o diktat dos imperiais credores é imposto aos devedores à força da forma que o próprio PL noutra parte da entrevista qualifica de «quase colonial».

- Depois do programa da troika, Portugal está agora pior do que estava
Diz PL: «As pessoas elogiam muito o sucesso do programa português, mas basta olhar para as previsões iniciais para a dívida pública e ver a situação da dívida agora para se perceber que não é, de modo algum, um programa bem sucedido. Portugal está mais endividado que antes por causa do programa, e a dívida privada não caiu. Portugal está mesmo em pior estado do que estava no início do programa. [...] Há quem pense que o que eu digo é uma loucura, alegando que os mercados estão a emprestar a Portugal a taxas muito baixas e que por isso a crise acabou, blá, blá, blá, mas isso simplesmente não é verdade. [...] Neste momento tem havido entrada de liquidez, que está a tapar os problemas subjacentes, mas essa liquidez pode inverter-se se o BCE, como penso que vai acontecer, nos desiludir da ideia de que poderá haver um Quantitative Easing (injecção de liquidez). Mas a situação vai mudar na mesma, porque as taxas de juro americanas vão subir, o que afectará todas as taxas de juro no mundo inteiro, incluindo em Portugal»
    É esta realidade, que PSD-CDS têm sistematicamente deturpado, que temos vindo constantemente a esclarecer com base em dados sólidos.

- Soluções reformistas
Na entrevista PL não deixa de propor algumas soluções reformistas para evitar futuras «crises do euro», algumas também propostas pelos nossos políticos: «BCE [como] credor de último recurso dos governos [...] em vez do actual mecanismo temporário e condicional [OMT]»; «restaurar a regra do “no bailout”»; «Comissão Europeia [...] muito mais controlada no plano democrático»; «ligar o debate em Bruxelas com o que está a acontecer nos Estados membros». Algum benefício poderia talvez decorrer de tais medidas... até à próxima crise. A questão relevante é que nenhuma destas medidas toca no essencial: o poder imperial do capitalismo alemão-francês. PL também propõe «A longo prazo, será preciso criar um tesouro da zona euro, com algum poder de tributação fiscal e de contrair crédito, que responda democraticamente perante o Parlamento Europeu e os parlamentos nacionais»; uma proposta do tipo «fuga p’rá frente» que só iria consolidar ainda mais o imperialismo alemão-francês e, provavelmente, afastar a Inglaterra da UE. 

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    PL termina a entrevista da seguinte forma: «É preciso ligar o debate em Bruxelas com o que está a acontecer nos Estados membros. Porque este tipo de sistema quase imperial sem controlo democrático não é sustentável. Isto não vai mudar com as próximas eleições. Mas vai ser preciso, nos próximos cinco anos, construir uma democracia europeia a sério, mudar a natureza da Europa. Ou seja, precisamos de uma Primavera Europeia.»
    Não acreditamos que a construção de «uma democracia europeia a sério» vá acontecer. E muito menos por eleições. Quanto a isto, parece que o próprio PL não tem dúvidas (pelo menos quanto às próximas eleições). Não existe um único exemplo na História de um domínio imperial reformado por eleições. E, se por «Primavera Europeia» PL entende apenas protestos e sublevações por direitos democráticos em alguns países, deixando intocável o sistema capitalista e a ligação à UE -- e deve ser isso que PL como economista neoclássico entende --, então, uma vez digeridos em curto tempo os novos «direitos» pelos políticos e burocratas ao serviço do «centro», voltaremos a ter mais do mesmo.

[1] Isabel Arriaga e Cunha, «Ajudas a Portugal e Grécia foram resgates aos bancos alemães», Público, 11/5/2014. Aparentemente, Philippe Legrain divulga na entrevista opiniões que expressa em maior detalhe no seu livro “European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess”.