Mas a «doença» escolástico-inibidora não
afecta só estes exemplares da Direita. De facto, no que a eles se refere não se
trata de uma doença; é o corolário da sua participação assumida dos interesses
económicos do grande capital. Mas que dizer quando os mesmos sintomas estão
presentes em figuras que alguns conotam com a «esquerda», como é o caso de
Daniel Bessa, professor universitário e figura conhecida do PS? Será porque é
também administrador e consultor de várias empresas? Configurando, talvez, um
lambe-capital não-assumido?
Desde já uma chamada de atenção: economistas
desinibidos, que não abdicam de usar o cérebro para colocar perguntas incómodas
e propôr respostas inovadoras, podem encontrar-se em vários quadrantes do
pnsamento económico. Um exemplo é o keynesiano Steve Keen cuja obra analisámos
num conjunto de artigos anteriores. Um outro exemplo é Philippe Legrain,
ex-conselheiro de Durão Barroso e economista convencional, de que analisaremos
uma entrevista num próximo artigo. Como estes muitos outros exemplos podem ser
apresentados, de economistas que usam de forma inteligente os cerca de 20 W de
energia diários gastos pelo cérebro. Infelizmente o artigo que calhou lermos no
Expresso de 15 de Junho de 2013, da autoria de Daniel Bessa, não nos permite
dizer o mesmo do seu autor.
Com o título «As Multinacionais» começa assim
o artigo: «As multinacionais são
um dado das economias modernas. Em si mesmas, não- são boas nem são más; são o que são.» Esta das «economias modernas» não
lembra ao diabo. Na época histórica actual existem essencialmente dois tipos de
economias: capitalista, baseada na propriedade privada dos meios de produção, e
socialista, baseada na propridade social dos meios de produção. Não existe
nenhuma categoria de «economia moderna». Na realidade, o adjectivo «moderno» --
muito na moda, tal como o substantivo «modernidade» -- não diz nada de profundo
sobre a economia (o tipo de propriedade dos meios de produção) e,
consequentemente, sobre o tipo de relações sociais que se formam e o móbil da
sua formação (prossecução do lucro ou satisfação de necessidades sociais?). É
usado muitas vezes com o significado de «avançado». Diz-se, por exemplo,
«economia capitalista moderna» no sentido de «economia capitalista avançada».
Mas «moderno» e «modernidade» escondem um sentido perverso: a ideia de que uma
série de modernidades de espavento são testemunho de um status social e
político elevado. Assim, o Qatar, com as suas torres espantosas, os seus
arranha-céus topo de gama, as suas pistas de desporto de inverno em pleno
deserto, é a quintessência da modernidade; não importa que tenha um regime
brutalmente autoritário e obscurantista, e que explore como escravos centenas
de milhares de emigrantes asiáticos e africanos. (Quando aqui dizemos escravos
não se trata de uma força de expressão.) A Alemanha de Hitler também exibia
espantosas modernidades, como as primeiras auto-estradas do mundo; sabe-se o que
era do ponto de vista político e social. Usando a perspectiva de Daniel Bessa,
Cuba, por exemplo, que nessa perspectiva tem a infelicidade de não ter
multinacionais, não é moderna; o facto de ter saúde e habitação grátis, não ter
desemprego, ter uma enorme participação popular nas decisões políticas, ter um
elevado índice de desenvolvimento humano (ONU, 2012), superior ao de países
como México, Sérvia, Brasil, Turquia, etc., é irrelevante. Para Daniel Bessa só
há uma economia moderna: a capitalista e com multinacionais. Quanto ao «Em si
mesmas, [as multinacionais] não- são boas nem são
más; são o que são» poder-se-ia tomar como uma risível verdade de La Palice,
aceitável como algo óbvio pelo leitor superficial, não fosse a perversa
mensagem subliminar: a ideia de que não há nada a fazer senão aceitar as
multinacionais porque elas são o que são. Inevitáveis. Como as moscas.
Mas depois de ter afirmado que as
multinacionais «não- são boas nem são más», logo a
seguir Daniel Bessa contradiz-se ao dizer: «Caso a caso, dependendo do tema em
discussão, cada uma delas poderá apresentar-se mais como activo ou como passivo,
como oportunidade ou como ameaça, do lado da solução ou do lado do problema.»
Ora, algo que se pode apresentar como oportunidade ou como ameaça, como solução
ou como problema (Bessa não diz de quê), e não é bom nem é mau, é, no mínimo,
confuso. Mais à frente Daniel Bessa aprofunda (e resolve) a contradição ao
dizer: «Não ignoro o quanto Portugal deve a muitas multinacionais. A Volkswagen
Autoeuropa constituirá um ícone desta dívida, tendo contribuído em muito [...]
para alterar a indústria portuguesa, nos últimos vinte anos. [...] a ninguém podendo
escapar os contributos que nos estão a ser dados por empresas como a Siemens e
a Nokia-Siemens, ou o mérito de uma iniciativa como a tomada, semanas atrás,
por uma empresa como a Cimpor [...]» Agora, sim, Daniel Bessa começa a
confessar-se. As multinacionais são boas já que Portugal lhes deve muito e
estão a dar muitos contributos. Também já se percebeu que Daniel Bessa não está
a pensar em quaisquer multinacionais, mas sim em grandes conglomerados de perfil monopolista: o grupo Volkswagen (marcas
Volkswagen, Audi, Seat, Škoda, Bentley, Bugatti, Lamborghini, Porsche, Ducati,
Scania e MAN) é um dos maiores fabricantes de carros a nível mundial e o maior
da Europa; a Siemens é o maior (gigantesco!) conglomerado a nível mundial em
dispositivos eléctricos e electrónicos em muitas áreas de aplicação
(electrodomésticos, saúde, energia, infraestruturas, automação, máquinas
industriais, etc.); a CIMPOR é actualmente um conglomerado de dimensão mundial
da área dos cimentos, com grande parte de capitais estrangeiros.
Portanto, Daniel Bessa acha que as
multinacionais são boas. Não apresenta um
único exemplo de uma má multinacional. Para Daniel Bessa, Portugal
deve-lhes muito e estão a dar muitos contributos ao país. Até parece que as
multinacionais são entidades altruístas que decidiram dar muitos contributos a
«Portugal», ao «país». Sendo Daniel Bessa um professor de economia
esperar-se-ia, pelo menos, uma curta frase dizendo quanto dos lucros destas
multinacionais foram para o estrangeiro e quanto foi pago ao Estado português e
aos trabalhadores; e, já agora, alguma comparação da prática das multinacionais
em Portugal e em outras paragens. Uma comparação salarial, por exemplo, mesmo
que muito sucinta, seria certamente de interesse. (Embora colher estes dados dê
trabalho.) Nada disso. É como se Daniel Bessa desconhecesse a existência de
lucros, salários, capitalistas, investidores e trabalhadores. Surpreendente
para um professor de economia!
Logo a seguir diz esta coisa espantosa: «Não
se ouvirá da minha boca uma palavra contra nenhuma das multinacionais que
operam no nosso país.» Agora a confissão é clara. O amor de Daniel Bessa por todas as multinacionais que operam em
Portugal é afirmado com todas as letras. À sua confissão de amor acrescenta
depois umas boas intenções de que o «Governo e [...] opinião pública» devem
estar informados «sobre o modo como cada multinacional se posiciona, de múltiplos
pontos de vista, para a resolução dos nossos problemas.» Esta de cada
multinacional informar o Governo e a opinião
pública (!) de como, segundo «múltiplos pontos de vista» (!), as
multinacionais irão contribuir «para a resolução dos nossos problemas» é de ir
às lágrimas! O amor de Daniel Bessa pelas multinacionais afirma-se aqui como
mais do que amor. É um amor cego.
Daniel Bessa prossegue com o seguinte texto: «Não
me peçam que fique grato quando os centros de decisão são mudados para Madrid.
Não me peçam que fique grato quando os representantes de nível mais elevado em
Portugal são desqualificados (com tudo o que isso implica). Não me peçam que
fique grato quando o país é visto sobretudo como um centro de custos (que se
pretendem os mais baixos possível) ou como um mero mercado (onde se procura
vender o máximo, ao preço mais elevado possível). Não me peçam que fique grato
quando a força de trabalho usada internamente é desqualificada e pior remunerada.
Não me peçam que fique grato quando as compras são feitas cada vez mais a
fornecedores estrangeiros, com progressivo afastamento dos fornecedores
nacionais. Não me peçam que fique grato quando a resposta é sistematicamente
não, ao pedido de envolvimento em qualquer das nossas causas, pública ou da sociedade
organizada.»
Daniel Bessa vê-se aqui a si próprio como um
avaliador das decisões das multinacionais; vê-se como um Daniel Bessa a quem
pedem que se pronuncie sobre decisões das multinacionais. E a única pronúncia
que produz é de que não está «grato». Não sabemos quem pede a avaliação de
Daniel Bessa: o Governo, a opinião pública, as próprias multinacionais? Mas uma
coisa sabemos: é que para as multinacionais e seus associados no Governo a
decisão puramente moral de Bessa, a sua ausência de sentimento «gratificante»,
é totalmente irrelevante.
Note-se que aqui Daniel Bessa reconhece -- mas
não é isto trivialmente reconhecido por muitos trabalhadores que não são professores
de economia? -- que as multinacionais, os grandes conglomerados monopolistas,
mudam-se para outras paragens mais prometedoras (menor custos de mão-de-obra,
menos direitos e obrigações fiscais) sempre que querem, desqualificam pessoal
de salários elevados sempre que as razões do lucro impõem, bem como vendem ao
preço mais elevado possível, pagam aos piores salários possíveis, substituem
fornecedores nacionais por outros que lhes são mais vantajosos e, finalmente --
surpresa das surpresas -- estão-se a marimbar para «qualquer das nossas causas,
pública ou da sociedade organizada.»
Daniel Bessa reconhece isso. Reconhece a
existência daquelas características que são próprias do capitalismo, mesmo que
não «moderno». Mas também reconhece que as multinacionais são boas. Reconhece
nelas enormes virtudes para Portugal, para o país. Que «país» é esse que colhe
sempre benefícios das multinacionais, enquanto «pessoal de salários elevados»,
«trabalhadores» e «fornecedores nacionais» podem não colher? Bessa pudicamente
não diz. Dizemo-lo nós. É a pequeníssima parte da população constituída pelos
grandes capitalistas associados às multinacionais. É essa a parte de que Daniel
Bessa gosta, embora pudicamente o esconda. Quanto aos outros, Bessa não tem
nada a oferecer, do alto da sua sapiência económica, senão mostrar-se não grato
(«não me peçam que fique grato»!) por as multinacionais fazerem certas
malfeitorias que ele bem conhece. As do costume. Ele não está contra as
multinacionais, contra os grandes conglomerados monopolistas que controlam
Portugal -- de facto, ama-os -- mas fica pesaroso por eles, em busca do lucro,
se poderem mudar para outras paragens, desqualificarem pessoal, venderem ao
preço mais elevado possível, pagarem aos piores salários possíveis, substituirem
fornecedores, etc. Isto é, fica pesaroso por as multinacionais serem o que são: que bom seria se
houvesse capitalismo moderno sem os males do capitalismo moderno! O pesar de
Bessa, talvez muito comovente para os seus pares, é totalmente hipócrita -- Bessa
sabe perfeitamente que multinacionais sem as malfeitorias que aponta não
existem -- e só pode ser entendido como uma manifestação de má consciência. De
qualquer forma, também para os trabalhadores portugueses o pesar de Bessa é
totalmente irrelevante.