quarta-feira, 21 de maio de 2014

Daniel Bessa, o amante das multinacionais

Portugal dispõe de uma riqueza considerável de economistas lamentáveis. Formados e conformados na escolástica da economia convencional, em particular da última versão neoliberal, a sua submissão aos interesses do grande capital é maiúscula. Além disso, o escolasticismo anquilosante que os caracteriza é claramente inibidor de qualquer sentido crítico. Seguem cegamente o que há de mais ultrapassado na escolástica neoliberal com um soberano desprezo e ignorância por qualquer «dissidência» da sua «ciência». Quando o grande capital diz «mata!» logo aparecem vários destes economistas lamentáveis a dizer «esfola!». Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque são epígonos recentes desta classe. Um outro exemplar da mesma classe é João César das Neves, comentador querido dos media. Numa entrevista na TSF teve a lata de dizer que «a maior parte dos pensionistas estão a fingir que são pobres» e que «subir o salário mínimo é estragar a vida aos pobres». (Uma «carta aberta a um mentecapto» analisando este exemplar correu na web.)
    Mas a «doença» escolástico-inibidora não afecta só estes exemplares da Direita. De facto, no que a eles se refere não se trata de uma doença; é o corolário da sua participação assumida dos interesses económicos do grande capital. Mas que dizer quando os mesmos sintomas estão presentes em figuras que alguns conotam com a «esquerda», como é o caso de Daniel Bessa, professor universitário e figura conhecida do PS? Será porque é também administrador e consultor de várias empresas? Configurando, talvez, um lambe-capital não-assumido?
    Desde já uma chamada de atenção: economistas desinibidos, que não abdicam de usar o cérebro para colocar perguntas incómodas e propôr respostas inovadoras, podem encontrar-se em vários quadrantes do pnsamento económico. Um exemplo é o keynesiano Steve Keen cuja obra analisámos num conjunto de artigos anteriores. Um outro exemplo é Philippe Legrain, ex-conselheiro de Durão Barroso e economista convencional, de que analisaremos uma entrevista num próximo artigo. Como estes muitos outros exemplos podem ser apresentados, de economistas que usam de forma inteligente os cerca de 20 W de energia diários gastos pelo cérebro. Infelizmente o artigo que calhou lermos no Expresso de 15 de Junho de 2013, da autoria de Daniel Bessa, não nos permite dizer o mesmo do seu autor.
    Com o título «As Multinacionais» começa assim o artigo: «As multinacionais são um dado das economias modernas. Em si mesmas, não- são boas nem são más; são o que são.» Esta das «economias modernas» não lembra ao diabo. Na época histórica actual existem essencialmente dois tipos de economias: capitalista, baseada na propriedade privada dos meios de produção, e socialista, baseada na propridade social dos meios de produção. Não existe nenhuma categoria de «economia moderna». Na realidade, o adjectivo «moderno» -- muito na moda, tal como o substantivo «modernidade» -- não diz nada de profundo sobre a economia (o tipo de propriedade dos meios de produção) e, consequentemente, sobre o tipo de relações sociais que se formam e o móbil da sua formação (prossecução do lucro ou satisfação de necessidades sociais?). É usado muitas vezes com o significado de «avançado». Diz-se, por exemplo, «economia capitalista moderna» no sentido de «economia capitalista avançada». Mas «moderno» e «modernidade» escondem um sentido perverso: a ideia de que uma série de modernidades de espavento são testemunho de um status social e político elevado. Assim, o Qatar, com as suas torres espantosas, os seus arranha-céus topo de gama, as suas pistas de desporto de inverno em pleno deserto, é a quintessência da modernidade; não importa que tenha um regime brutalmente autoritário e obscurantista, e que explore como escravos centenas de milhares de emigrantes asiáticos e africanos. (Quando aqui dizemos escravos não se trata de uma força de expressão.) A Alemanha de Hitler também exibia espantosas modernidades, como as primeiras auto-estradas do mundo; sabe-se o que era do ponto de vista político e social. Usando a perspectiva de Daniel Bessa, Cuba, por exemplo, que nessa perspectiva tem a infelicidade de não ter multinacionais, não é moderna; o facto de ter saúde e habitação grátis, não ter desemprego, ter uma enorme participação popular nas decisões políticas, ter um elevado índice de desenvolvimento humano (ONU, 2012), superior ao de países como México, Sérvia, Brasil, Turquia, etc., é irrelevante. Para Daniel Bessa só há uma economia moderna: a capitalista e com multinacionais. Quanto ao «Em si mesmas, [as multinacionais] não- são boas nem são más; são o que são» poder-se-ia tomar como uma risível verdade de La Palice, aceitável como algo óbvio pelo leitor superficial, não fosse a perversa mensagem subliminar: a ideia de que não há nada a fazer senão aceitar as multinacionais porque elas são o que são. Inevitáveis. Como as moscas.

    Mas depois de ter afirmado que as multinacionais «não- são boas nem são más», logo a seguir Daniel Bessa contradiz-se ao dizer: «Caso a caso, dependendo do tema em discussão, cada uma delas poderá apresentar-se mais como activo ou como passivo, como oportunidade ou como ameaça, do lado da solução ou do lado do problema.» Ora, algo que se pode apresentar como oportunidade ou como ameaça, como solução ou como problema (Bessa não diz de quê), e não é bom nem é mau, é, no mínimo, confuso. Mais à frente Daniel Bessa aprofunda (e resolve) a contradição ao dizer: «Não ignoro o quanto Portugal deve a muitas multinacionais. A Volkswagen Autoeuropa constituirá um ícone desta dívida, tendo contribuído em muito [...] para alterar a indústria portuguesa, nos últimos vinte anos. [...] a ninguém podendo escapar os contributos que nos estão a ser dados por empresas como a Siemens e a Nokia-Siemens, ou o mérito de uma iniciativa como a tomada, semanas atrás, por uma empresa como a Cimpor [...]» Agora, sim, Daniel Bessa começa a confessar-se. As multinacionais são boas já que Portugal lhes deve muito e estão a dar muitos contributos. Também já se percebeu que Daniel Bessa não está a pensar em quaisquer multinacionais, mas sim em grandes conglomerados de perfil monopolista: o grupo Volkswagen (marcas Volkswagen, Audi, Seat, Škoda, Bentley, Bugatti, Lamborghini, Porsche, Ducati, Scania e MAN) é um dos maiores fabricantes de carros a nível mundial e o maior da Europa; a Siemens é o maior (gigantesco!) conglomerado a nível mundial em dispositivos eléctricos e electrónicos em muitas áreas de aplicação (electrodomésticos, saúde, energia, infraestruturas, automação, máquinas industriais, etc.); a CIMPOR é actualmente um conglomerado de dimensão mundial da área dos cimentos, com grande parte de capitais estrangeiros.
    Portanto, Daniel Bessa acha que as multinacionais são boas. Não apresenta um único exemplo de uma má multinacional. Para Daniel Bessa, Portugal deve-lhes muito e estão a dar muitos contributos ao país. Até parece que as multinacionais são entidades altruístas que decidiram dar muitos contributos a «Portugal», ao «país». Sendo Daniel Bessa um professor de economia esperar-se-ia, pelo menos, uma curta frase dizendo quanto dos lucros destas multinacionais foram para o estrangeiro e quanto foi pago ao Estado português e aos trabalhadores; e, já agora, alguma comparação da prática das multinacionais em Portugal e em outras paragens. Uma comparação salarial, por exemplo, mesmo que muito sucinta, seria certamente de interesse. (Embora colher estes dados dê trabalho.) Nada disso. É como se Daniel Bessa desconhecesse a existência de lucros, salários, capitalistas, investidores e trabalhadores. Surpreendente para um professor de economia!
    Logo a seguir diz esta coisa espantosa: «Não se ouvirá da minha boca uma palavra contra nenhuma das multinacionais que operam no nosso país.» Agora a confissão é clara. O amor de Daniel Bessa por todas as multinacionais que operam em Portugal é afirmado com todas as letras. À sua confissão de amor acrescenta depois umas boas intenções de que o «Governo e [...] opinião pública» devem estar informados «sobre o modo como cada multinacional se posiciona, de múltiplos pontos de vista, para a resolução dos nossos problemas.» Esta de cada multinacional informar o Governo e a opinião pública (!) de como, segundo «múltiplos pontos de vista» (!), as multinacionais irão contribuir «para a resolução dos nossos problemas» é de ir às lágrimas! O amor de Daniel Bessa pelas multinacionais afirma-se aqui como mais do que amor. É um amor cego.
    Daniel Bessa prossegue com o seguinte texto: «Não me peçam que fique grato quando os centros de decisão são mudados para Madrid. Não me peçam que fique grato quando os representantes de nível mais elevado em Portugal são desqualificados (com tudo o que isso implica). Não me peçam que fique grato quando o país é visto sobretudo como um centro de custos (que se pretendem os mais baixos possível) ou como um mero mercado (onde se procura vender o máximo, ao preço mais elevado possível). Não me peçam que fique grato quando a força de trabalho usada internamente é desqualificada e pior remunerada. Não me peçam que fique grato quando as compras são feitas cada vez mais a fornecedores estrangeiros, com progressivo afastamento dos fornecedores nacionais. Não me peçam que fique grato quando a resposta é sistematicamente não, ao pedido de envolvimento em qualquer das nossas causas, pública ou da sociedade organizada.»
    Daniel Bessa vê-se aqui a si próprio como um avaliador das decisões das multinacionais; vê-se como um Daniel Bessa a quem pedem que se pronuncie sobre decisões das multinacionais. E a única pronúncia que produz é de que não está «grato». Não sabemos quem pede a avaliação de Daniel Bessa: o Governo, a opinião pública, as próprias multinacionais? Mas uma coisa sabemos: é que para as multinacionais e seus associados no Governo a decisão puramente moral de Bessa, a sua ausência de sentimento «gratificante», é totalmente irrelevante.
    Note-se que aqui Daniel Bessa reconhece -- mas não é isto trivialmente reconhecido por muitos trabalhadores que não são professores de economia? -- que as multinacionais, os grandes conglomerados monopolistas, mudam-se para outras paragens mais prometedoras (menor custos de mão-de-obra, menos direitos e obrigações fiscais) sempre que querem, desqualificam pessoal de salários elevados sempre que as razões do lucro impõem, bem como vendem ao preço mais elevado possível, pagam aos piores salários possíveis, substituem fornecedores nacionais por outros que lhes são mais vantajosos e, finalmente -- surpresa das surpresas -- estão-se a marimbar para «qualquer das nossas causas, pública ou da sociedade organizada.»
    Daniel Bessa reconhece isso. Reconhece a existência daquelas características que são próprias do capitalismo, mesmo que não «moderno». Mas também reconhece que as multinacionais são boas. Reconhece nelas enormes virtudes para Portugal, para o país. Que «país» é esse que colhe sempre benefícios das multinacionais, enquanto «pessoal de salários elevados», «trabalhadores» e «fornecedores nacionais» podem não colher? Bessa pudicamente não diz. Dizemo-lo nós. É a pequeníssima parte da população constituída pelos grandes capitalistas associados às multinacionais. É essa a parte de que Daniel Bessa gosta, embora pudicamente o esconda. Quanto aos outros, Bessa não tem nada a oferecer, do alto da sua sapiência económica, senão mostrar-se não grato («não me peçam que fique grato»!) por as multinacionais fazerem certas malfeitorias que ele bem conhece. As do costume. Ele não está contra as multinacionais, contra os grandes conglomerados monopolistas que controlam Portugal -- de facto, ama-os -- mas fica pesaroso por eles, em busca do lucro, se poderem mudar para outras paragens, desqualificarem pessoal, venderem ao preço mais elevado possível, pagarem aos piores salários possíveis, substituirem fornecedores, etc. Isto é, fica pesaroso por as multinacionais serem o que são: que bom seria se houvesse capitalismo moderno sem os males do capitalismo moderno! O pesar de Bessa, talvez muito comovente para os seus pares, é totalmente hipócrita -- Bessa sabe perfeitamente que multinacionais sem as malfeitorias que aponta não existem -- e só pode ser entendido como uma manifestação de má consciência. De qualquer forma, também para os trabalhadores portugueses o pesar de Bessa é totalmente irrelevante.
    Que miséria de pensamento económico de um professor universitário de economia e ainda por cima socialista!