sexta-feira, 16 de maio de 2014

Marxismo e Ciência. I – Introdução

Atentemos no seguinte texto:
   
«O motivo do lucro, acrescentado à competição entre capitalistas, é o responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização de capital que conduzem a depressões cada vez mais severas. A competição ilimitada conduz a um enorme desperdício de mão-de-obra e à mutilação da consciência social dos indivíduos [...]
Estou convencido que só há UMA maneira de eliminar estes graves males, nomeadamente o estabelecimento duma economia socialista acompanhada dum sistema educacional orientado para fins sociais. Numa economia desta espécie, os meios de produção são propriedade da própria sociedade e utilizados dum modo planificado. Uma economia planificada, que ajustasse a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a fazer-se entre os que pudessem trabalhar e garantiria meios de vida a todos os homens, mulheres e crianças.»

    Este texto não é de Marx, nem de Engels nem de qualquer outro marxista notório. É de Albert Einstein, cientista bem conhecido.
   Trata-se de um excerto do artigo que Einstein escreveu em 1949 com o título de «Mas Socialismo Porquê?» ([1]). E escreveu-o não para qualquer publicação professoral ou de «gente fina» mas para uma revista do movimento operário americano ([2]). Em 1949 vivia-se nos EUA em plena histeria anti-comunista do início da guerra fria, incendiada pelo senador Joseph McCarthy, criador do Comité de Actividades Anti-Americanas de combate à «subversão comunista». Einstein, porém, não teve dúvidas em defender o socialismo no citado artigo, terminando o artigo do seguinte modo:
   
«Nesta época de transição que é a nossa é do mais alto significado que sejam bem claros os objectivos e os problemas do socialismo. Como nas circunstâncias actuais a discussão livre e sem obstáculos destes problemas está sujeita a um tremendo tabu, considero a fundação desta revista um serviço público da maior importância.»
   
    Einstein, além de cientista, era cidadão de corpo inteiro, sem palas nos olhos limitadoras de atenção exclusiva à sua área de especialização. São dele as seguintes palavras dirigidas aos que trabalham em ciência ([3]):
   
«A preocupação com o homem e o seu destino deve ser sempre o principal interesse de todos os avanços da técnica. Nunca se esqueçam disto quando estiverem às voltas com os vossos diagramas e equações.»
   
    Einstein opôs-se à bomba atómica. Opôs-se também à sentença de Julius e Ethel Rosenberg, acusados de serem espiões ao serviço da URSS e como tal executados em Junho de 1953, sem qualquer evidência no caso de Ethel; como medida puramente aterrorizante pelo facto de serem comunistas; outros espiões posteriores de maior gabarito não foram executados. Na altura Einstein escreveu a favor do casal Rosenberg ao presidente Truman. Ainda na Alemanha, em 1919, Einstein teve a coragem de assinar um telegrama pedindo o indulto do dirigente comunista Eugen Leviné, líder da República Soviética Bávara, preso e mais tarde executado pelas tropas encabeçadas pelos futuros dirigentes nazis Rudolf Hess, Ernst Röhm e Heinrich Himmler enviadas pelos sociais-democratas alemães para massacrar as milícias operárias.
    Era Eintein marxista e comunista? É impossível dizer. Algumas frases do citado artigo (e de outros trabalhos) deixam supor que conhecia algo das teses marxistas, embora outras passagens evidenciem afastamento do marxismo ([5]). Na monografia [3] lê-se o seguinte: «O FBI tinha um ficheiro desde 1940 com cerca de 1.500 páginas sobre Einstein, considerado “elemento subversivo”, onde constava nomeadamente que “Einstein foi membro, patrocinador e simpatizante de 34 frentes comunistas entre 1937 e 1954”. O infame senador McCarthy considerava Einstein “inimigo da América”. Outros diziam simplesmente que Einstein era ingénuo em política. Não é essa a opinião de John Stachel, que editou uma colectânea com artigos de Einstein, onde, discordando da ideia de “ingenuidade”, elogia, pelo contrário, a habilidade de Einstein para meter a direito por entre “complicações inextricáveis até ao que considerava ser o cerne da questão”.»
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    Depois de um período de expansão do socialismo, a implosão em 1989 da URSS e da «Europa de Leste», e a evidente deriva da China para o capitalismo, voltaram a colocar na ordem do dia, como no tempo de Einstein, «a discussão livre e sem obstáculos» do marxismo e do socialismo sujeita «a um tremendo tabu». Com esta diferença, porém: enquanto do pós-guerra até meados dos anos setenta o «tabu» era agressivamente imposto por um capitalismo em recuo, face a um socialismo triunfante, actualmente um capitalismo triunfante tem procurado inculcar a ideia de que o marxismo e o socialismo são ideias «ultrapassadas», moribundas ou mortas.
    Deu brado, em 1992, o livro do «cientista e economista político» Francis Fukuyama, intitulado «O Fim da História e o Último Homem» onde defende que o capitalismo seria o apogeu da evolução humana, o «Fim da História», indo perdurar eternamente, enquanto o marxismo estaria morto. Fukuyama foi contribuidor da «Doutrina Reagan» e é figura de proa do chamado «neoconservadorismo»... Designação, entre outras, de velhas doutrinas bolorentas, destinadas a justificar a exploração do homem pelo homem, servidas em novas embalagens com o lacinho de enfeite dado pelos prefixos «neo» ou «pós». Para voltar a enganar o incauto.
    A ideia de perenidade do capitalismo é, hoje em dia, sustentada sem contestação por praticamente todos os meios de comunicação social. Também é constantemente martelada a ideia de que o socialismo é uma utopia. Veja-se, por exemplo, o artigo do «filósofo político» da nossa praça, Pulido Valente, cheio de prosápia, que comentámos em [6].
    Perenidade do capitalismo, morte ou irrelevância do marxismo, são ideias que granjeiam, por enquanto, apoio em grande parte da população, incluindo trabalhadores, e que se alimentam em doses maciças nos erros e aberrações -- reais e imaginários -- cometidos em países socialistas. Apoiam-se, também, nas políticas de embuste da social-democracia, que tem conseguido ocultar de grandes massas de trabalhadores, em particular os de «colarinhos brancos», a consciência da natureza exploradora do capitalismo, difundindo a ideia de que já não existe proletariado e burguesia -- apenas uma homogénea classe média  que partilha interesses comuns e reivindicações comuns --, e de que é possível reformar o capitalismo neo-liberal e restabelecer, senão um «Estado Social», pelo menos um paradisíaco «Estado de Participação» ([7]). Causas e ideias que também têm alimentado desconcertos de muitos partidos de esquerda incluindo os comunistas.
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    Está o marxismo morto? Se o marxismo fosse apenas uma mera doutrina, um mero conjunto de ideias brotadas dos cérebros de alguns «iluminados», provavelmente já estaria morto e enterrado. Como muitas outras doutrinas do passado. Mas o marxismo não é nada disso. O marxismo é uma metodologia científica de análise da realidade social, com vista à sua transformação progressista. O marxismo está para os estudos sociais como o darwinismo está para a biologia. Na realidade, a metodologia de análise marxista tem, como veremos, muitos pontos em comum com a metodologia darwinista.
    Sobre o marxismo pronunciou-se assim o médico e revolucionário Ernesto «Che» Guevara ([6]):
   
«[...] é preciso introduzir aqui um posicionamento geral diante de um dos elementos mais controvertidos do mundo moderno: o marxismo. Nossa posição quando nos perguntam se somos ou não marxistas é a mesma que teria um físico a quem perguntassem se é “newtoniano”, ou um biólogo indagado se é “pasteuriano”.
Existem verdades tão evidentes, tão incorporadas ao conhecimento dos povos, que já se tomou inútil discuti-las. Deve-se ser “marxista” com a mesma naturalidade com que se é “newtoniano” em física ou “pasteuriano” em biologia, considerando que, se novos factos determinam novos conceitos, nunca perderão sua parte de verdade os que já aconteceram. É o caso, por exemplo, da relatividade einsteiniana ou da teoria dos quanta de Max Planck com relação às descobertas de Newton; isso, contudo, absolutamente nada tira da grandeza do sábio inglês. Foi graças a Newton que a física pôde avançar até atingir os novos conceitos de espaço. O sábio inglês foi o degrau necessário para isso.
    Podem-se apontar em Marx, pensador e pesquisador das doutrinas sociais e do sistema capitalista que lhe coube viver, determinadas incorrecções. Nós, os latino-americanos, podemos, por exemplo, não concordar com sua interpretação de Bolívar ou com a análise que ele e Engels fizeram dos mexicanos, inclusive admitindo determinadas teorias das raças e nacionalidades hoje inadmissíveis. Mas os grandes homens, descobridores de verdades luminosas, vivem apesar de suas pequenas faltas, e estas servem apenas para nos demonstrar que são humanos, isto é, seres que podem incorrer em erros, mesmo com a clara consciência da grandeza atingida por esses gigantes do pensamento. É por isso que reconhecemos as verdades essenciais do marxismo como incorporadas ao acervo cultural e científico dos povos e o tomamos com a naturalidade que nos dá algo que já dispensa discussões.
     Os avanços na ciência social e política, como em outros campos, pertencem a um longo processo histórico cujos elos se encadeiam, somam-se e se aperfeiçoam constantemente. Inicialmente havia uma matemática chinesa, árabe ou hindu; hoje a matemática não tem fronteiras. Em sua história, cabe um Pitágoras grego, um Galileu italiano, um Newton inglês, um Gauss alemão, um Lobatchevski russo, um Einstein, etc. Da mesma forma, no campo das ciências sociais, desde Demócrito até Marx, uma longa série de pensadores acrescentaram suas pesquisas originais e acumularam um corpo de experiências e de doutrinas.
    O mérito de Marx é que produz imediatamente na história do pensamento humano uma mudança qualitativa; interpreta a história, compreende sua dinâmica, prevê o futuro, mas, além de prevê-lo, e aí cessaria sua obrigação científica, expressa um conceito revolucionário: não basta interpretar a natureza, é preciso transformá-la. O homem deixa de ser escravo e se converte em arquitecto de seu próprio destino. Nesse momento, Marx converte-se em alvo obrigatório de todos aqueles que têm interesse especial em manter o velho, da mesma forma que ocorrera antes a Demócrito, cuja obra foi queimada pelo próprio Platão e seus discípulos, ideólogos da aristocracia esclavagista ateniense.»
   
    Marx e Engels, pela primeira vez, propuseram, aplicaram e testaram uma metodologia científica de análise dos fenómenos históricos e sociais: o materialismo dialéctico. Os que trabalham nas ciências naturais são, na sua área de trabalho, espontaneamente materialistas -- admitem a existência de uma realidade concreta fora do cérebro humano -- e dialécticos -- sabem que na natureza não há categorias fixas, imutáveis, mas, pelo contrário, tudo está em permanente modificação. Mas esta metodologia que é «instintiva» e passa despercebida nas ciências da natureza, de tal forma está enraizada na prática experimental -- os cientistas da natureza praticam o materialismo dialéctico geralmente sem o saberem e por vezes até negando que são materialistas --, está longe de ser evidente na análise dos fenómenos sociais. Ainda hoje em dia abundam os historiadores que encaram a história como um conjunto de decisões individuais, subjectivas, de personalidades eminentes. É a mesma atitude dos meios de comunicação que se limitam a apresentar notícias políticas como factos avulsos, sem qualquer determinação concreta e conexão objectiva. A história e a política são apresentadas como meros folhetins, como lutas constantes entre «bons» e «maus», sendo os «bons» sempre os mesmos, imutáveis e predestinados.
    Mas, para além da metodologia científica, as contribuições de Marx e Engels são muito mais vastas e imorredoiras, em particular na investigação e esclarecimento de como funciona o capitalismo. «O Capital» de Marx, baseado na metodologia do materialismo dialéctico, inclui uma série de resultados ainda hoje válidos: a teoria do valor; os ciclos de negócios e a tendência da queda da taxa de lucro; a concentração do capital (conforme se assinala em [9], no tempo de Marx as grandes firmas eram uma excepção, o que realça a previsão de Marx que na época parecia improvável); o crescimento do proletariado (conforme se exemplifica em [9] -- um de muitos exemplos possíveis --, em 1820 a percentagem daqueles que nos EUA eram trabalhadores independentes em quintas ou pequenos negócios era de 75%; em 1940 esta percentagem tinha caído para 21,6% e actualmente é menos de 10%); a conversão, no capitalismo, de tudo em mercadorias -- trabalho, natureza, saúde, ciência, arte, etc. -- na busca de lucro. O marxismo ensina a colocar as perguntas certas e a procurar as respostas certas, materialmente determinadas. Concordamos inteiramente com as seguintes afirmações de Michael Parenti em [9]: «Repetidamente descartada como uma “doutrina” obsoleta [10], o marxismo retém uma qualidade contemporânea, já que é menos um corpo de afirmações fixas e mais um método de olhar para além das aparências imediatas, de ver as qualidades internas e as forças que actuam na conformação das relações sociais e de muito da própria história. Conforme notou Marx: “Toda a ciência seria supérflua se as aparências externas e a essência das coisas coincidissem directamente”. De facto, talvez a razão pela qual muita da moderna ciência social parece supérflua é devida ao facto de que se limita a descrever as aparências externas.»
    Quer isto dizer que tudo que os marxistas dizem ou disseram está ou estava correcto? Claro que não. Marx e Engels, juntamente com Lénine, enganaram-se redondamente, por exemplo, quando supuseram que a construção do socialismo começaria pelos países desenvolvidos (Alemanha, França, Inglaterra, etc.). De facto, começou em países bem menos desenvolvidos (Rússia, China, Cuba, Vietname). Para além dos erros -- e nenhum progresso científico é isento de erros --, mesmo os resultados certos têm de ser vistos como verdades relativas, sempre em vias de ser complementadas à luz de novas observações e análises; tal como apontado acima no texto de Che Guevara, a propósito das contribuições de Newton e Max Planck, etc. Marx e Engels não podiam, obviamente, prever os desenvolvimentos posteriores do capitalismo. Coube a Lénine complementar os resultados de Marx e Engels por observações e análises do capitalismo na sua fase superior do imperialismo; a fase do tempo de Lénine. Lenine por sua vez já não assistiu à fase neocolonialista do actual imperialismo. A qualidade relativa da verdade científica, elo de uma cadeia de verdades relativas e provisórias em progressão para uma verdade mais abrangente, também se verifica nas ciências naturais. Einstein também não deixou de cometer alguns erros (por exemplo, quando defendeu a natureza determinística dos fenómenos quânticos) e algumas das suas verdades sabemos agora com segurança que eram relativas e sabemos caracterizar em que medida o eram (por exemplo, a questão da constante cosmológica).
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    É a ciência de Marx ainda relevante? Sem qualquer dúvida. Segundo um estudo recente da prestigiada revista Nature ([11]) Karl Marx é o investigador mais influente de sempre, de acordo com um sistema de classificação de citações científicas desenvolvido recentemente por uma equipa de investigadores da Universidade  Bloomington de Indiana, EUA. O sistema dispõe actualmente de classificações de 35.000 investigadores. Marx aparece no topo da área de história, com uma classificação 22 vezes superior à média da área; surge também nos lugares cimeiros na área de economia, com uma classificação 11 vezes superior à média da área. Em comparação, na área de física surge Edward Witten (considerado um dos maiores físicos actuais) com uma classificação 13 vezes maior que a média da sua área. A posição de destaque de Karl Marx foi também divulgada pelo Smithsonian Institute ([12]).
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    Em próximos artigos propomo-nos analisar o tema «Marxismo e Ciência». Note-se que, num sentido estrito, o título do tema é inapropriado. É como se disséssemos «Einsteinismo e Ciência». Usamo-lo por facilidade de referência e como concessão àqueles que ainda não sabem ou têm dúvidas de que marxismo «é» ciência.
   
Referências
[1] Albert Einstein, «Mas Socialismo Porquê?», Ed. Afrontamento (1974?).
[2] O artigo "Why Socialism?” foi artigo de abertura da “Monthly Review, an Independent Social Magazine” publicada em Nova Iorque.
[3] Peter D Smith, «Einstein». Editora Texto, 2011.
[4] Citado no livro: Isabel Loureiro, «A Revolução Alemã [1919-1923]», Editora da Universidade Estadual de São Paulo, 2005.
[5] Por exemplo, no trabalho [1] Einstein explica as formações socio-económicas em termos de lutas entre conquistadores e conquistados e não em termos de classes sociais caracterizadas pela sua posição face aos meios de produção. Mas não desconhece totalmente o papel das classes sociais. Noutras partes de [1] Einstein revela também concepções idealistas.
[8] Ernesto Che Guevara «Notas para o estudo da ideologia da Revolução Cubana», Outubro de 1960. In: Che Cuevara «Textos Revolucionários» (4.ª ed.), Global Editora, São Paulo, 2009.
[9] Michael Parenti, “Blackshirts & Reds”, City Light Books, 1997.
[10] O trabalho de Joel Ang, Karl Marx is the "Best Scientist of Them All" (http://www.marxist.com/karl-marx-bes-scientist-of-all.htm, 24/1/2014), expõe de forma pertinente o seguinte: «Há mesmo um portal web dedicado a pulverizar o cadáver do bárbaro barbudo: www.marxisdead.com. Este libelo incessante e implacável contra um homem que morreu há mais de um século é bastante peculiar, e suscita uma importante questão: se o indivíduo está morto e é irrelevante porque razão estão sempre a recordar-nos isso? Não nos recordam incessantemente a irrelevância de Franz Joseph Gall [criador da frenologia do século XVIII, que dizia que a forma do cérebro determinava o carácter, personalidade, etc.], Mikhail Bakunin [destacado anarquista], Martin Fleischmann [defensor da fusão nuclear a frio], e Stanley Pons [idem], pois não? Com escassas excepções as teorias deles desapareceram do discurso público e da pesquisa científica -- sem serem acompanhadas de uma torrente de ataques. A razão deste facto é evidente: as ideias deles foram sistematicamente destruídas pela marcha da ciência e da história».
[11] Richard van Noorden “Who is the best scientist of them all?”, Nature, 6 November 2013, http://www.nature.com/news/who-is-the-best-scientist-of-them-all-1.14108.
[12] Colin Schultz  Karl Marx Is the World’s Most Influential Scholar. When compared on equal footing, Marx stands out above the crowd”, November 6, 2013http://www.smithsonianmag.com/smart-news/karl-marx-is-the-worlds-most-influential-scholar-180947581/#ixzz2sH6xRxoU