sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Uma vitória da Ministra das Finanças?

A ministra das Finanças assegurou ontem (23/1/2014) que o défice do Orçamento de Estado (OE) em 2013 ficaria abaixo de 5,5%, mas que só em final de Março saberia dizer o valor exacto. Motivo de enorme júbilo do governo PSD-CDS que aproveitou para desancar a oposição, de não quererem ver a «realidade».
   O principal motivo avançado para o brilharete da ministra, por todos os meios de comunicação social, foi o grande aumento na cobrança do IRS: um aumento de 35,5% (!) correspondente a um total cobrado de 12.307,7 M€ (milhões de euros). Por comparação, a cobrança do IRC apenas aumentou de 18,8% (perto de metade) com um total de 5.083,8 M€. Estes valores são as melhores estimativas actuais. Por outras palavras, o brilharete da ministra foi conseguido através do acréscimo da enorme carga de austeridade sobre as famílias; menos do que sobre as empresas.
   
Mas será que os aumentos do IRS e IRC contam toda a história? Vamos ver que não.
   
   Comecemos por lembrar que, no nosso artigo sobre a situação económica do passado Novembro (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/11/austeridade-em-portugal-ponto-da.html), onde analisámos previsões de vários indicadores, referimos que a ministra das Finanças, o BdP e o FMI estimavam em 5,5% o défice de 2013 [1]), embora a previsão da Comissão Europeia fosse de 5,9%. Referíamos também que em Setembro o Conselho das Finanças Públicas, tendo em conta o «buraco» de 700 milhões de euros do Banif, apontava para 6,4% ([2]). 
  Ora, precisamente o que a ministra e os meios de comunicação não contam, são os seguintes dois aspectos:
   
1) O «buraco» do Banif -- resultado do programa de «recapitalização», eufemismo para designar o empréstimo-"roubo aos contribuintes" de 1100 M€ para «ajudar» os banqueiros do Banif ([3]). O «buraco» de 700 M€ parece ter entrado nas contas de 2013, depois do Eurostat ter rejeitado a proposta da ministra que queria transferir o «buraco» do OE para a dívida pública ([4]). Dizemos «parece» porque não encontrámos nada que confirme tal transferência. Vamos dar o benefício da dúvida à ministra; assumamos que sim, que foram contabilizados no défice deste ano. Mas, dos restantes 450 M€ em dívida, o Banif ainda só devolveu 150 M€ ao Estado ([5]). Restam 300 M€ que deveriam ser contabilizados como défice do OE de 2013.
  
2) Os perdões de dívidas fiscais e à Segurança Social não foram contabilizados no défice do OE de 2013. O perdão destas dívidas foi bem comentado por Arménio Carlos da CGTP: «Continua-se a perdoar a quem não paga impostos e não se investe em quem quer trabalhar. Para onde é que vamos?». O Estado, com o perdão, apenas arrecadou 16,1% do valor total em dívida, continuando 6,5 mil milhões de euros por cobrar ([6]; a dívida seria, portanto, de 6,5/0,839 = 7,747 B€). De qualquer forma, o que o Estado perdeu em juros compensatórios e de mora devia entrar como défice do OE. Ao entrar apenas com o que cobrou esquece-se assumidamente o que não se cobrou; a parcela negativa cujos efeitos são (foram) sentidos por todos os contribuintes, principalmente pelos mais dependentes das obrigações sociais do Estado. A nossa estimativa (que pensamos ser por defeito) do que o OE de 2013 perdeu com o perdão é de 828 milhões de euros (para detalhes, ver [7]).
   
   A estimativa actual do défice do OE feita com os números do governo é de 5,33% do PIB, estimado por sua vez em 165.830 M€.
  A tabela abaixo mostra esta estimativa e o resultado de tomar em conta os dois aspectos acima mencionados.
   

% do PIB
M€
PIB estimado em 2013

165.380
Défice do OE sem benesses ao Capital (*)
5,33
8.815
Buraco por cobrar do BANIF
0,18
300
Juros não cobrados dos «perdões»
0,50
828
TOTAL
6,01
9.943
(*) Contas segundo dados do governo de Paulo Trigo Oliveira; "Público" 24/1/2014.
   
   Conclusão: entrando em conta com as duas parcelas não contabilizadas, as nossas contas levam-nos a um défice de 6%; próximo dos tais 5,9% já previstos pelo Conselho das Finanças Públicas no passado Outubro.
   Os «abaixo de 5,5%» só se obtêm torcendo as regras. Tal como a ministra já queria fazer quando se preparava para retirar do défice do OE o «buraco» dos 700 M€ do Banif.
   
   Para as sumidades da economia convencional ao serviço do capitalismo, quando as regras incomodam e não dão os resultados desejados, o remédio é simples: mudam-se as regras!
   
*    *    *
   Não é só a ministra das Finanças que muda as regras. Os abencerragens da UE começam a sentir-se preocupados com os protestos populares e «mortinhos» por mostrar números beatíficos do crescimento do PIB nos países da UE. Vai daí, mudaram as regras de contabilidade! Agora, as despesas de cada país com investigação e desenvolvimento (I&D), em vez de serem contabilizadas como consumo (o que de facto são), são contabilizadas como «formação bruta de capital fixo»; entram na mesma rubrica que as maquinarias e edifícios (e outros activos tangíveis) usados no processo produtivo. Por esta óptica a investigação em astronomia, por exemplo, devia ser cancelada; não produz nenhum «capital fixo», quer bruto quer líquido.
   Qual o motivo de tão disparatada resolução? Bom, é que entrando as despesas de I&D no «capital fixo», «produzido», o PIB (a riqueza produzida num ano) aumenta. Espera-se, por exemplo, que com esta artimanha o PIB de Portugal aumente 2% em 2014 ([8]). Aos que têm falta de pão a UE se calhar recomendará que se dirijam, por exemplo, aos astrónomos, para que estes lhes dêem a comer uma nova estrela descoberta; perdão, produzida.

Notas

[1] JN 8/10/2013.
[2] JN 3/10/2013.
[3] O valor do «buraco» do Banif foi noticiado em vários jornais. Ver também: "Banif falha devolução do empréstimo ao Estado" http://www.esquerda.net/artigo/banif-falha-devolu%C3%A7%C3%A3o-do-empr%C3%A9stimo-ao-estado/28101.
[4] "Governo assume défice de 5,9% para este ano, acima da meta da troika", 15/10/2013,  http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/governo_assume_defice_de_59_acima_da_meta_da_troika.html .
[6] Valores noticiados, por exemplo, em "Há 6,5 mil milhões em dívidas ao Fisco e à Segurança Social", DN, 5/1/2014.
[7] Os 16,1% de dívida perdoada correspondem a 0,161x7.747 = 1.247 M€. Estas dívidas já se arrastam há muito tempo. Por exemplo, o documento em http://www.rmtjconsultores.com/pt/articles/arquivo/dividas-ao-fisco-e-seguranca-social-valem-28-mil-milhoes, mencionava que "Desde 2011, ano em que a troika entrou em Portugal, as dívidas à Segurança Social e às Finanças aumentaram mais de quatro mil milhões de euros e já ascendem a 28 mil milhões". Vamos ser modestos e assumir que metade da dívida cobrada se referia a um período de 1 ano e a outra metade a 2 anos; a primeira, vencendo juros compensatórios que, de acordo com https://sites.google.com/a/pttax.net/iva/iva/6---fiscalizacao/iva-artigo-89 , são à taxa básica de desconto do BdP [3,25%], acrescida de cinco pontos percentuais [8,25%] sendo os juros contados dia a dia; a segunda, vencendo, para além dos juros compensatórios, juro de mora à taxa de 6,112% (http://www.pwc.pt/pt/guia-fiscal/2013/coimas.jhtml ). Note-se que não distinguimos entre o regime de cobrança de dívidas ao fisco e à Segurança Social. Aplicando as fórmulas de juro composto às duas parcelas obtém-se 2.047 M€. Logo, o perdão de dívida corresponde à falta de cobrança de 2.047 – 1247 = 828 M€.
[8] JN 22/1/2014