quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte IV (Egipto)

IV – Das Revoluções à Actualidade
(Ver Preâmbulo em «A Primavera Árabe. Parte IV (Preâmbulo, Tunísia)».)

Egipto
Em 2010 eram visíveis os sinais de que uma revolução estava eminente; visíveis, pelo menos, para os marxistas (um artigo marxista de finais de Outubro de 2010 demonstra claramente isso: [1]). Para além da mobilização popular, as eleições anunciadas para 2011 tinham aberto fissuras importantes no sistema, com os militares a rejeitarem a ideia de um sucessor na figura do filho de Mubarak, que viam como um representante de yuppies. Um aspecto importante foi a crescente alienação da base social de apoio do regime: o funcionalismo público. Dizia assim o Middle East Report ([2]): «A nova dimensão hoje [da oposição] é a difusão dos protestos entre novas categorias de cidadãos, especialmente os burocratas de baixo escalão, os quais, como representantes da baixa classe média personificada por Gamal Abdel Nasser, constituíram a base social do Estado egípcio desde 1952. A grande maioria dos protestos não tem origem em sindicatos e partidos políticos. Todos os dias os jornais relatam acções de rua auto-organizadas por um qualquer sector da população descontente, quer sejam funcionários públicos empurrados para baixo, quer residentes do norte do Sinai, mecânicos de automóveis, enfermeiras, coptas, operários despedidos, agricultores de arroz em dificuldade, ou jovens conhecedores de tecnologias». Até os colectores de impostos estavam descontentes e tinham formado o seu próprio sindicato!
Em finais de 2010, Mohamed Elbaradei, um democrata burguês conhecido por ter sido presidente da Agência Internacional de Energia Atómica da ONU, tinha surgido como líder da «Associação Nacional para a Mudança». O regime tentou bloquear a a candidatura de Elbaradei para as eleições de 2011. Elbaradei tornou-se, assim, o pólo de convergência do movimento de massas, fazendo campanha pelo fim do estado de emergência, em vigor desde 1981, e por eleições livres, monitorizadas internacionalmente. Deparando com a impossibilidade de alcançar estes objectivos, apelou mais tarde ao boicote das eleições; o movimento de massas apoiou-o nesta campanha.
*    *    *
Na segunda semana de Janeiro algumas pessoas desesperadas fizeram como o mártir tunisino: atearam fogo a si próprias em frente do parlamento e do edifício do primeiro-ministro. Este minimizou o incidente, dizendo que as tentativas de suicídio tinham sido por razões pessoais. Entretanto, jovens desempregados e estudantes começam a convocar uma manifestação; tal como na Tunísia usam o Facebook e o Twitter.
A 25 de Janeiro de 2011, no chamado Dia da Revolta, dezenas de milhares de manifestantes (trabalhadores, desempregados, pobres, estudantes revolucionários) protestam no Cairo e Alexandria contra o governo de Mubarak. Num bairro do Cairo os manifestantes chegam a ocupar um posto da polícia; noutros bairros e na Parca Tahrir a multidão é tão densa que transborda os cordões de polícia. Acontecem cenas de confraternização entre oficiais da polícia e os manifestantes. O regime apressa-se a impedir o acesso à Internet e a bloquear o Facebook ([3]).
A 26 de Janeiro dão-se confrontos com as forças de segurança (3 mortos e 120 feridos). O imperialismo não acredita que se esteja a assistir a uma revolução. Hillary Clinton diz nesse mesmo dia: «A nossa apreciação é de que o governo do Egipto é estável e está a procurar vias de responder às necessidades e interesses legítimos do povo egípcio». Existe a convicção de que as massas «atrasadas» do Egipto são apáticas e não se comportarão como na Tunísia. Diz a BBC num artigo intitulado «Não há sinais de que o Egipto siga o caminho da Tunísia»: «Ao contrário da Tunísia a população tem um muito menor nível de educação. O analfabetismo é elevado, a penetração da Internet é baixa». Contudo, certos porta-vozes do imperialismo parecem ter uma visão mais realista, como o Washington Post que refere: «Os acontecimentos de hoje [25 de Janeiro] mostram que o governo do Cairo não é de forma alguma estável».
Note-se que neste período a Irmandade Islâmica (IM) esteve sempre contra a oposição a Mubarak, não participando e inclusive criticando as manifestações. Sabe-se que tinha negociações com o regime e com os EUA que viam a IM como a segunda linha de defesa do capitalismo.
A 27, continuam as manifestações que atingem um elevado nível a 28 (a 6.ª Feira da Raiva) com grandiosas manifestações em várias cidades e com o governo a fechar os circuitos dos telemóveis (Vodafone, etc.). Tornam-se públicos os apoios de Elbaradei e seus aliados, como Essam Sharaf (Sharaf tinha-se demitido de Ministro dos Transportes de Mubarak em 2005 tornando-se um crítico aberto do regime. Tinha estabelecido com Elbaradei e cientistas egípcios a Egypt Scientific Society). A Praça Tahrir no Cairo torna-se o centro dos protestos. Os imperiais começam a preocupar-se. Diz Hillary Clinton: «Como aliados [do Egipto] acreditamos firmemente que o governo egípcio precisa de se comprometer imediatamente com o povo egípcio na implementação de reformas políticas, sociais e económicas».
A 1 de Fevereiro Mubarak usa a conhecida táctica do pau e da cenoura. Quanto à cenoura (e em resposta a Hillary e contactos com os EUA), aparece na TV a prometer reformas políticas e a dizer que não se candidataria de novo para presidente. Quanto ao pau, usa no dia 2 os seu apoiantes montados em cavalos e camelos para carregarem sobre a multidão na Praça Tahrir. Além disso, no dia 3, franco-atiradores atiram sobre a multidão causando 10 mortos e 830 feridos. (segundo estimativas da ONU, 300 vítimas vieram a morrer).
Um aspecto importante a ter em conta é o papel das mulheres nas manifestações. Segundo estimativas, as mulheres, com véu e sem véu, chegam a constituir 40 a 50% dos manifestantes, lutam corajosamente e são também vítimas da repressão.

Cairo 4 de Fevereiro de 2011
Os manifestantes não desmobilizam, o que leva as autoridades a encetar negociações com representantes de certa oposição dócil e o vice-presidente Suleiman ([4]) a oferecer reformas. No dia 9 de Fevereiro Suleiman enceta negociações com a Irmandade Muçulmana. A IM, que tinha primeiro recusado negociar, acaba por aceitar dialogar com o Comando Supremo das Forças Armadas (CSFA). Tudo a bem do capitalismo. Os EUA começam nessa altura a ver a IM com outros olhos. No dia 10 de Fevereiro Mubarak aparece na TV a dizer que não resigna mas que delega alguns poderes em Suleiman. As reacções à declaração de Mubarak são de raiva, frustração e desapontamento. As manifestações tornam-se mais grandiosas. No dia 11 Suleiman anuncia a resignação de Mubarak e a assunção do poder por um Conselho Militar (CM) nomeado pelo CSFA ([5]) mantendo o primeiro-ministro (PM) Shafik.
O CSFA dissolve o parlamento e suspende a constituição e anuncia que irá entregar o poder a um governo civil. A 13 de Fevereiro o CSFA declara que se manterá no poder até às eleições ou num período máximo de seis meses. Para apaziguar as massas, procede à prisão de Mubarak e familiares bem como de outras figuras altamente corruptas e detestadas. Os manifestantes desmobilizam. Com o CSFA no poder o imperialismos mostra-se mais confiante. David Cameron visita o Cairo. Obama apela a uma «transição ordeira (orderly transition)».
A 3 de Março as massas populares convocam uma manifestação para obter a demissão do PM Shafiq. Este demite-se sendo substituído por Sharaf, na altura mais do agrado das massas. A 23 de Março o gabinete burguês sente-se já com força suficiente para emitir uma lei criminalizando protestos e greves (a pena iria de multa de 500.000 LE a prisão)! A lei não amedronta as massas que voltam a protestar na Praça Tahrir a 1 de Abril pedindo ao CM para avançar com as medidas exigidas. A única coisa substancial que avançou foi a prisão de Suleiman a 5 de Abril.
A 8 de Abri, novas manifestações: O CSFA é criticado por não cumprir as exigências populares, sendo exigida também a demissão do Procurador Público dada a lentidão em julgar as figuras corruptas do regime. A 9 de Abril o CSFA mostra a sua face: usa os militares para «limpar» a praça Tahrir. A 13 de Abril tem lugar a prisão de Mubarak e familiares. A 16, o Supremo Tribunal Administrativo dissolve o PND (o parido único de Mubarak) e entrega os respectivos activos ao governo. A 24 de Maio é anunciado que Mubarak e filhos serão julgados pelas mortes de manifestantes.
O CSFA vai, entretanto, fazendo tudo que pode para atrasar as reformas exigidas pelos populares. Estes voltam a manifestar-se a 9 de Setembro e depois a 9 de Outubro, desta vez para exigir a dissolução do CSFA e do seu presidente o marechal Tantawi, bem como a demissão do governador de Assuão. O CSFA não está agora com meias medidas: ataca os manifestantes com a polícia militar: 25 mortos e 200 feridos. Todavia, o CSFA veio a demitir o governo e Tantawi aparece a prometer dentro em breve eleições e uma nova constituição.
A 30 de Novembro de 2011 a primeira volta das eleições revelou a vitória da IM e do partido Nur, fundamentalista islâmico, numa clara manifestação do atraso e susceptibilidade à manipulação demagógica de grande parte da sociedade egípcia. Tal como noutros países árabes, o número de partidos, coligações e listas independentes era enorme. As eleições decorreram por várias fases. Os resultados finais são publicados a 22 de Janeiro de 2012. A tabela abaixo mostra os partidos mais votados, correspondendo a 91% dos votos.

Nome de partido/aliança
Posição política
Apoiou a revolução?
Nº de lugares no Parlamento
% de votos
Liberdade e Justiça (a)
Islâmico conservador
Na última fase
235
47%
Nur
Islâmico fundamentalista
Não
114
23%
Novo Wafd
Secular liberal conservador
?
39
8%
Bloco Egípcio (b)
Secular liberal
Sim
34
7%
Wasat
Islâmico moderado
Sim
8
2%
Reforma e Desenvolvimento
Secular liberal
?
11
2%
A Revolução Continua (c)
Secular liberal
Sim
8
2%
(a) Irmandade Muçulmana
(b) P. social-democrata egípcio, P. Egípicios livres, P. Nacional progressivo-Unionista
(c) P. Aliança Egípcia, P. Igualdade e Desenvolvimento, P. Liberdade e Egipto

Dos restantes nove partidos sete são liberais, um é social-democrata e um é de extrema-direita. Não há, portanto, um único partido no Parlamento que represente a classe operária ou, pelo menos, posições de esquerda consequentes. Mostra bem o carácter democrático- burguês da revolução egípcia. Um estudo detalhado ([6])) mostra que foram os mais pobres que escolheram os partidos islâmicos reaccionários, enquanto os mais ricos e, em particular a «classe média», votaram pelos secularistas.
A 23 de Janeiro de 2012 o CSFA transmitiu formalmente os poderes e a autoridade legislativa ao Parlamento. Os militares, porém, permaneceram no poder (!) o que gerou novas manifestações violentas nos finais de Abril. Manobravam também para conservar os seus interesses intactos ([7]): o império económico, as suas relações estreitas com os EUA que lhes fornecem armamento, e o tratado com Israel, porque, embora não gostem de Israel, também não estão interessados em entrar em políticas radicais pan-árabes ou islamitas.
Entretanto, no Parlamento, os islamitas da IM e do Nur afastavam os seculares da redacção da Constituição. A 13 de Junho o novo regime, representando uma aliança entre o CSFA e a IM, sente-se já suficientemente forte para que o ministro da Justiça emita um decreto dando às forças militares o poder de prender civis e levá-los a tribunais militares! Por outro lado, os militares acabaram por ultrapassar o Parlamento escolhendo um painel de 100 membros para elaborar a Constituição! Isto levantou novos protestos violentos na Praça Tahrir de 19 a 24 de Junho. Entretanto, a 24 de Junho, são conhecidos os resultados das eleições presidenciais (a segunda volta tinha sido em 16 e 17 de Junho). Mohamed Morsi da IM é declarado vencedor tendo ganho a maioria em 13 de 27 governorados ([8]). Seguem-se-lhe Shafik, um homem do CSFA (6 em 27), Sabbahi (5 em 27), um nasserista apoiante da revolução e que venceu precisamente nos governorados urbanos e industriais (Cairo, Alexandria, Port Said, etc.) e um dissidente da IM (2 em 27).
*    *    *
Cada vez mais as reivindicações das massas populares são postas de lado, enquanto a IM cerra fileiras com os salafistas do Nur, usando os jovens estudantes fanáticos do Nur como tropa de choque contra os revolucionários. O Nur além de não participar na revolução sempre atribuiu os protestos e insurreições populares a «agentes estrangeiros».
Os militares e burocratas do antigo regime, antes do anúncio dos resultados das eleições, dissolveram o Parlamento e emitiram uma série de decretos anti-democráticos: o do direito de julgar civis por tribunais militares, já referido acima; a auto-atribuição de poderes legislativos  e a intromissão na redacção da Constituição; o re-estabelecimento do Conselho de Defesa Nacional encabeçado pelo marechal Tantawi, colocando os generais no controlo da polícia política.
Morsi, no primeiro discurso público, exibe-se como presidente de todos os egípcios, prestando homenagem aos que tombaram na revolução e apelando à estabilidade ([5]). Os imperialistas estão satisfeitos. A Casa Branca declara que os resultados das eleições foram um «marco no movimento para a democracia». Não lhes interessa minimamente que, quando Morsi quando estava na Universidade da Califórnia, se tenha destacado pelas suas afirmações de que o colapso do World Trade Center não tinha sido causado pelos aviões nos ataques do 11 de Setembro. Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, também está satisfeito: «esperamos trabalhar conjuntamente com a nova administração com base no nosso acordo de paz».
A 22 de Novembro de 2012 Morsi anuncia um decreto em que se auto-confere largos poderes. Perante os vastos protestos populares (Elbaradei chamou-lhe «novo faraó»), secundados por algumas forças institucionais (juízes), colocou a lei a referendo em 15 de Dezembro de 2012. Ganhou-o com 57% dos votos! Durante todo o ano de 2012 têm-se repetido os protestos e as greves, reprimidos com brutalidade pelos militares. Elbaradei e Sabahi declararam que querem criar uma frente nacional contra o decreto de Morsi. O actual governo de Morsi é constituído por uma mistura de islamitas com burocratas de Mubarak. Morsi, entretanto, recebeu o FMI e em consequência disso implementou medidas de austeridade com aumentos de impostos. Contra as camadas mais pobres é claro. Tudo isto com declarações de optimismo para 2013! (Com quem se parece, com quem?)
A evolução política do Egipto só avançará quando os pobres e os trabalhadores despertarem das suas ilusões sobre os partidos islâmicos.

[1] Hamid Alizadeh, Frederik Ohsten (2010) Egypt: The Gathering Storm. Int. Marxist Tendency.
[2] Mona El-Ghobashy. The Dynamics of Egypt's Elections. Middle East Report, September 29, 2010.
[3] wikipedia: Timeline of the 2011-2012 Egyptian Revolution. Um trabalho de grande interesse para consulta.
[4] Omar Suleiman foi durante 18 anos chefe dos Serviços Secretos e responsável pela repressão política, tortura e crimes contra a humanidade. Era um grande amigo de George Bush.
[5] Parece que entre a velha guarda militar já havia, desde há algum tempo, concertado entre si a vontade de apear Mubarak e sua clique do pedestal.
[6] Erle J, Wichmann JM, Kjaerum A. Egypt Electroral Constituencies. Danish-Egyptian Dialogue Report, 2012.
[7] Ahmed Hashim(2011) The Egyptian Military – Part II. Middle East Policy, vol.18, 4:106-128. This study, the first of two parts, is a short version of a book-length manuscript –Guardians of the State: The Political Roles of the Egyptian Military from Revolution to Revolution– that is due for publication at the end of 2011.
[8] Região administrativa do Egipto.
[9] Hamid Alizadeh . Egypt: Morsi humiliated as revolution raises its head again Novembro 2012. IMT.