terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte IV (Preâmbulo, Tunísia)

IV – Das Revoluções à Actualidade
Preâmbulo
A revolução tunisina marca o início de uma série de revoluções que alastraram pelo mundo árabe. Como vimos anteriormente, os sofrimentos dos povos de outros países árabes eram (são) semelhantes aos do povo tunisino. A revolução tunisina serviu de catalizador.
As revoluções colocavam como objectivos populares imediatos a conquista de liberdades ¾ liberdade de expressão, de organização de partidos políticos, de organização sindical, de constituição de um sistema parlamentar pluralista, etc. ¾ e de melhorias sociais ¾ fim do desemprego, combate à pobreza, etc. As condições objectivas em que as revoluções se desenvolveram (grande peso do sector agrário, operariado débil e desorganizado), bem como as subjectivas (grande influência dos partidos islâmicos, controlados pela burguesia, entre o campesinato), marcaram o tipo de revolução que era possível ter lugar: democrático-burguesa.
Desde o início o imperialismo procurou, como sempre, intrometer-se no curso da revolução. Entre outros aspectos (geoestratégicos) o controlo do petróleo do Médio Oriente é, seguramente, considerado importante para os EUA. Não tanto devido às necessidades energéticas dos EUA; de todo o petróleo consumido pelos EUA apenas 10% provém do Médio Oriente. Mas a estratégia dos EUA passa também pela contenção do desenvolvimento dos seus competidores: a Europa, de que os consumos em petróleo do Médio Oriente atingem 30% e o Japão cujos consumos provenientes do Médio Oriente atingem 80%. Mas é errado ver no petróleo a justificação exclusiva da intromissão do imperialismo. Na perspectiva imperialista de supremacia mundial qualquer canto do planeta Terra é estratégico; tenha ou não petróleo. (O imperialismo também se intrometeu na nossa Revolução do 25 de Abril pela mão da aliança Carlucci-Mário Soares; base das Lages, posição geoestratégica, efeito de contágio, eram preocupações importantes do imperialismo e não, obviamente, o petróleo.)
É preciso também ter em conta que os capitalismos emergentes e de apetites imperialistas da Rússia e da China também se intrometeram (e intrometem), nomeadamente nos países em que já tinham um «pé» dentro, em particular na Líbia, Egipto e Síria.
A ultrapassagem da fase democrático-burguesa em direcção a uma revolução socialista exigiria o desfazer das ilusões nos partidos islâmicos, uma organização forte do proletariado (em geral, muito desorganizado e disperso) e a atracção do campesinato para esse objectivo. Apenas na Tunísia se assiste, recentemente, ao que poderão ser os primeiros passos nesse sentido. No Egipto parece também estar em erosão a popularidade da Irmandade Islâmica. Na Líbia e na Síria as cliques no poder e seus clientes impuseram guerras civis aos levantamentos populares. Se na Líbia um regime democrático-burguês parece estar em vias de consolidação, a evolução Síria é ainda, presentemente, um enigma. Trata-se do país em que a revolução se desenvolveu em condições mais complexas, com o atiçar propositado de sectarismos violentos de tipo étnico e religioso.
Tunísia
Os protestos populares, iniciados em 17 de Dezembro de 2010 em Sidi Bouzid (imolação pelo fogo do vendedor ambulante Mohamed Bouzizi), rapidamente subiram de tom: grandes manifestações populares desafiando as forças policiais e decididas a não desmobilizar senão quando satisfeitas as reivindicações. Lutam contra o desemprego, exigindo trabalho, condições de vida e dignidade. Em 24 de Dezembro os protestos alastravam a outras cidades e dois civis eram abatidos pela polícia. Nas declarações de Ben Ali e seus homens de confiança os manifestantes eram apodados de «bandidos» e «agitadores». (Apodos também usados  pelas autoridades no Egipto, Líbia e Síria.) Assim eram também classificados por outras figuras políticas da Convergência Democrática Constitucional (CDC), o partido do poder, entrevistadas por cadeias de TV (como a Al-Jazeera).
A 8 de Janeiro o regime iniciou o esmagamento sistemático dos protestos. Em Thala e Kasserine a guarda especial de Ben Ali atira a matar e deixa 50 vítimas mortais. A 12 de Janeiro os protestos alcançam Tunes. A 14 de Janeiro na sequência de uma enorme manifestação que protestou em frente ao ministério do interior, Ben Ali declarou o estado de emergência, dissolveu o governo a 14 de Janeiro de 2011 e prometeu novas eleições.
Estalam greves espontâneas de apoio aos manifestantes, até aí jovens, desempregados, vendedores de rua, etc. O papel da UGTT, contaminada por anos e anos de colaboracionismo com o regime, foi deplorável. (É um quadro que se repete na Síria.) Os dirigentes (um deles apoiante de Ben Ali) procuraram inicialmente travar as greves! Só a 8 de Janeiro o porta-voz da UGTT declara apoio incondicional aos manifestantes. Mesmo assim, os dirigentes da UGTT continuaram indecisos e, por vezes, abertamente hostis às greves e mobilizações dos trabalhadores ([1]). Alguns sindicatos sectoriais e distritais não seguiram, todavia, a linha oficial da UGTT.
Ben Ali não conseguiu travar a mobilização popular que se tornou ainda mais veemente, com grande participação de trabalhadores e juventude e uso de meios tecnológicos para manter uma pressão constante sobre as autoridades (Facebook, YouTube, twitter, telemóvel, etc.). O uso de Facebook e Twitter impossibilitam o regime de prender os organizadores de manifestações. Ben Ali acabou por fugir a 14 de Janeiro para a Arábia Saudita.
A 17 de Janeiro o primeiro-ministro Ghannouchi anunciava a formação de um Governo de Unidade Nacional (GUN) com 8 ministros do anterior governo e algumas, poucas, figuras de «esquerda», do partido colaboracionista Ettajdid (descendente do PCT) e da UGTT. Se esperava enganar a população, enganou-se ele próprio. As manifestações tornaram-se mais furiosas. A 18, Ghannouchi e outras figuras proeminentes declaram demitir-se do CDC. O comité central do CDC também se demite. Mas a questão principal não era a etiqueta das figuras no poder, mas sim as próprias figuras e a natureza do poder. As massas populares não desmobilizam. O GUN vê-se forçado a aceitar a actividade de partidos políticos e a libertar todos os presos políticos.
O exército recusou entrar em confronto com os manifestantes ([2]). Usado como força de protecção de instalações, chegou a haver confronto entre forças do exército e da polícia devido à atitude repressiva desta última. No confronto em Riqab, a 9 de Janeiro, o exército ameaçou mesmo disparar contra a polícia. Ben Ali absteve-se de usar o exército com medo de que se passasse para o lado dos manifestantes.
Os imperialistas ficam preocupados, nomeadamente com a possível propagação da revolução a outros países. Os mesmos que dantes gabavam Ben Ali diziam agora que «só o diálogo pode trazer uma solução democrática duradoira à crise corrente». Obama também disse condenar a violência do regime contra cidadãos «que pacificamente emitiam a sua opinião na Tunísia», mas sabe-se, através do WikiLeaks, que Obama estava de posse dos factos sobre a opressão e corrupção do regime e nada disse sobre isso. (Sabe-se, pelo Wiki Leaks, que a corrupção da clique Ben Ali era de tal ordem que até o embaixador dos EUA se viu obrigado a manifestar a Obama a sua indignação.) Entretanto, todos eles, Sarkozy, Obama, e outros, não deixaram de emitir doutoralmente as suas lições ao povo Tunisino sobre como deveriam democraticamente parar com a revolução!
Um apontamento interessante: no dia 17 de Janeiro de 2011 a CDC deixou também de ser membro da Internacional Socialista (IS, aquela a que pertence o nosso «socialista» PS). Clarificando: só em 17 de Janeiro a IS «reparou» que a CDC não era um partido socialista, isto já para não falar em democrático.
A TV Tunisina é obrigada a mostrar a fuga de Ban Ali e dos seus odiados familiares. As autoridades suíças anunciam, entretanto, que congelaram os bens de Ben Ali e família. O GUN vê-se obrigado a declarar a prisão de 33 membros da família Ben Ali e outras figuras particularmente odiadas como o comandante da guarda policial do presidente.
A 22 de Janeiro dá-se uma nova escalada na movimentação popular: as forças policiais bem como oficiais vestidos à civil juntam-se aos manifestantes. O GUN emite um mandato de captura de Ben Ali e família. As massas revoltadas apoderam-se das propriedades dos fugitivos. Formam-se comités revolucionários de trabalhadores, desempregados e das camadas pobres.
A 27 de Janeiro estalam greves regionais que obrigam Gannouchi a retirar do governo a maioria dos elementos da CDC e a anunciar a dissolução do CDC ([3]). Embora a direcção da UGTT aceite o novo governo de Gannouchi, as massas populares e os trabalhadores sentem-se traídos e continuam a lutar. A situação arrasta-se até 20 de Fevereiro quando Gannouchi anuncia a proibição de novas manifestações. Os líderes corruptos da UGTT, juntamente com figuras dos partidos colaboracionistas constituem um «Conselho de Protecção da Revolução» (como acontece em todas as revoluções, num dado momento muitos reaccionários sentem uma súbita vocação de «protecção» da revolução!). A ideia era dominarem o curso dos acontecimentos, consolidar uma plataforma de apoio à recuperação capitalista, enganando as massas populares com belas frases sob a bandeira da Protecção da Revolução. Não existe, porém, um partido de esquerda, não comprometido com o regime, capaz de esclarecer as massas populares e orientar a revolução. O partido comunista não colaboracionista (PCOT) esteve sempre na clandestinidade e emerge muito debilitado. A «Frente 14 de Janeiro» de partidos e movimentos de esquerda, incluindo o PCOT, perde tempo em discussões inúteis e revela-se incapaz de dar uma orientação á revolução.
Em 25, 26 e 27 de Fevereiro grandiosas manifestações estalam por toda a parte contra o governo Gannouchi e pedindo uma Assembleia Constituinte. Na manifestação frente ao odiado Ministério do Interior geram-se confrontos e perdem a vida cinco manifestantes. Gannouchi resigna; forma-se um novo governo liderado pelo Primeiro-Ministro Caid el Sebsi, menos conotado com o anterior regime. É um governo tecnocrático, com representantes da classe capitalista e personalidades ligadas a interesses imperialistas. Sebsi toma posse a 3 de Março: anuncia medidas de apaziguamento: dissolução da polícia política e da directoria da segurança do Estado; marcação de eleições para a Assembleia Constituinte para 23 de Outubro de 2011. As massas populares sentem que alcançaram uma vitória. Iniciam saneamentos: substituem autoridades distritais e governadores de províncias corruptos e comprometidos com o regime de Ben Ali. Os trabalhadores despedem directores de empresas e de instituições estatais; os estudantes saneiam docentes comprometidos com o antigo regime.
O governo Sebsi, porém, tem uma agenda muito diferente daquela que interessa às massas populares, conforme bem o expressou o presidente da associação de empresários: «temos [agora] a impressão de que a Tunísia regressará à vida normal e as medidas tomadas [pelo governo Sebsi] apoiam esse sentimento» ([4]).
Em qualquer processo revolucionário a direita gosta sempre de eleições o mais rapidamente possível. Usa as eleições como travão da revolução e plataforma de lançamento da contra-revolução. Conta para isso com o atraso de consciência de grande parte das massas populares (mesmo os que desejam a revolução têm dificuldade em expressar politicamente esse desejo), o atavismo, a superior capacidade logística da direita na mobilização caciqueira e dos representantes do clero (seja islâmico, cristão ou de qualquer outra confissão, o clero é sempre, no seu conjunto, uma força de conservantismo social).
Os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte foram um desaire para as forças populares. O partido islamita moderado Enahda (liderado por Gannouchi) foi o grande vencedor, com 37% dos votos. Deveu a vitória ao facto de não estar comprometido com o antigo regime, antes pelo contrário, ter sido vítima de perseguições constantes, bem como ser o partido que representava os pobres das zonas rurais que conotam a opressão de que são vítimas com o secularismo dos exploradores franceses e o «modernismo» de Ben Ali. Beneficiou também da utilização das mesquitas na propaganda política e de fundos fornecidos pela burguesia que rapidamente viu no Enahda o futuro ([5, 6]). Em segundo e terceiro lugar ficaram partidos que nada tiveram a ver com o regime de Ben Ali; um deles, o Congresso para a República (CPR) tinha sido banido por Ben Ali.
Os grandes derrotados nas eleições foram os partidos colaboracionistas, mesmo os de «esquerda» (o Ettajdid, descendente de um partido comunista, e outro, descendente de um partido maoísta). Os partidos de esquerda consequentes (como o PCOT) tiveram também muito fraca votação. A abstenção foi elevada (muito maior do que se esperava): 48%. Para além da desconfiança nos partidos e nas eleições como meio de resolver os problemas (ao fim de nove meses de revolução as condições das camadas mais desfavorecidas não melhoraram e não se viam perspectivas de melhorar) pode ter tido influência a extrema confusão e fragmentação das eleições: 830 partidos, 655 listas independentes, 34 coligações!!!
A burguesia não escondeu a satisfação com os resultados eleitorais. O Enahda apressou-se a expressar o seu apoio à Bolsa e a encontrar-se com a confederação empresarial, dizendo Gannouchi na altura: «O mercado é central na filosofia económica do Nahda como se pode ver no seu programa». O secretário-geral do Enahda apressou-se também a ir aos EUA encontrar-se com o senador McCain, sem dúvida para expressar a adesão à democracia ocidental e à economia de mercado. Emissários do Eliseu passaram meses antes e depois das eleições a reunir-se com os islamitas; dizia o l'Humanité: «a França vota Enahda».
Logo a seguir às eleições começaram os ataques às forças progressistas e aos comités revolucionários. Em Janeiro de 2012 desencadeou-se uma onda de greves e de movimentos insurreccionais em toda a Tunísia, em especial na zona mártir de Gafsa, das minas de fosfatos. Em 30 de Abril de 2012 os salafistas (ultra-reaccionários islâmicos) assaltaram e destruíram a sede do PCOT em Al Kabaria, perto de Tunes. Nos últimos dias de Novembro de 2012  voltaram os protestos, com confrontos das forças militares contra trabalhadores em greve e estudantes na cidade de Siliana. O Enadha prossegue as mesmas políticas económicas que levaram ao desemprego e desespero dos trabalhadores e jovens tunisinos.
Terá a revolução Tunisina terminado? A julgar pelos acontecimentos mais recentes (colapso da coligação governante liderada pelo Enahda, na sequência do assassinato pela direita de um dirigente destacado da esquerda e de possantes manifestações populares), talvez não.

[1] Há vários trabalhos de diversas fonts sobre o comportamento da UGTT. Para além de fontes já citadas em artigos anteriores ver também: Chamseddine Mnasri. Tunisia: the people's revolution. International Socialism, 4 de Abril de 2011.

[2] Nuredine Jebnun (2011). The army's conduct towards the revolution. In: Revolutions, Reform and Democratic Transition in the Arab Homeland: Fom the Perspective of the Tunisian Revoltuion. Arab Center for Research & Policy Studies.
[3] Jorge Martin. The second wave of the Tuinisian revolution. Int. Marxist Tendency, 25/2/2011.
[4] Jorge Martin. The new government of El Sebsi forced to make concessions. Int. Marxist Tendency, 9/3/2011.
[5] Tunisia's Islamist Ennahda party wins historic poll. BBC News Africa
[6] Jorge Martin. Tunisian Constituent Assembly Elections. Int. Marxist Tendency, 7/11/2011. A ler com cautela.