Tem vindo regularmente nos media a ideia de que a culpa da crise é dos cidadãos comuns, consumidores não capitalistas, que consumiram de mais.
Uma nova repetição desta ideia é a afirmação recente desse apêndice do FMI e do grande capital financeiro, desse prepotente, ignorante e ludibriante que dá pelo nome de António Borges: «As pessoas caíram em si. Perceberam que não podiam viver daquela maneira». Quer ele dizer que as pessoas perceberam que estavam a ganhar e a consumir demais. E há outros a afinar pelo mesmo: então o Ulrich presidente do BPI não teve a distinta lata de dizer que se os sem-abrigo aguentam a crise então também os outros [trabalhadores] podem aguentar. De modo que se por todos (Ulrich e quejandos não, credo!) termos consumido demais chegarmos à situação de sem-abrigo, paciência!
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Infelizmente, grande parte da intelectualidade portuguesa, mesmo a que se diz de «esquerda», é contagiada por esta ideia de que a culpa da crise foi por se ter consumido em demasia e retransmite esta ideia directa ou indirectamente.
O que há a dizer sobre o assunto?
Primeiro: sem indução ao consumo não há capitalismo.
O capitalismo não tem como objectivo prioritário a satisfação de necessidades sociais, mas sim o lucro. Os capitalistas investem fortunas para que os consumidores consumam; caso contrário, não realizariam os investimentos. O que o capitalismo quer, precisamente, é que se consuma e quanto mais melhor; mesmo que para isso se tenha de recorrer ao crédito. Por isso mesmo, antes da crise, os bancos estimularam o crédito fácil para estimular o consumo.
Logo, quando o ludibriante Borges diz que «as pessoas caíram em si» a única conclusão válida que se pode tirar de tal afirmação é a de que «caíram em si» no sentido de que foram ludibriadas pelos capitalistas.
Logo, a culpa é dos capitalistas, não dos consumidores.
Segundo: no capitalismo nunca se consome tudo que se produz.
Pela própria natureza do capitalismo, os consumidores, quer os que auferem rendimentos do trabalho, quer os que vivem de pensões (que não são mais do que «salários pagos atrasadamente» provenientes de descontos para a Segurança Social), nunca poderão consumir tudo que se produz. O lucro do capitalista provém precisamente da mais-valia criada pelo trabalho, de que ele se apropria. Não há capitalismo sem sobreprodução; sem stocks que nunca serão vendidos.
Logo, a culpar os consumidores seria sim pelo facto de, na totalidade, consumirem de menos e não de mais.
Terceiro: As bolhas de crédito são obra dos capitalistas, não dos consumidores.
No capitalismo financeirizado da UE, EUA, Japão, os grandes lucros dos capitalistas provêm não do sector produtivo, mas sim do sector financeiro. Eles propositadamente concedem crédito fácil através de instituições financeiras (como os bancos), nomeadamente na compra de habitação. Na fase de boom que precede a crise, pouco lhes importa a solvabilidade do adquirente. E pouco lhes importa porque eles fazem grandes pacotes em que misturam dívidas de baixo risco com as de alto risco que usam em actividades especulativas e fraudulentas.
Os consumidores que caíram no logro do crédito fácil são apenas vítimas dos capitalistas (algo parecido com os passadores de droga que oferecem as primeiras doses grátis). Na fase de crise os grandes capitalistas e seus apaniguados também nada sofrem. Não são punidos pelas especulações e fraudes. Pelo contrário, são recompensados pelas especulações e fraudes que levaram a cabo, através de «resgates» que os consumidores têm de pagar por imposição do governo ao serviço dos capitalistas.
Logo, os consumidores são apenas vítimas das dos capitalistas e dos seus parceiros governamentais.
Quarto: No caso português imperaram (e imperam) os arranjinhos entre o sector público e o privado.
Os capitalistas procuram construir infra-estruturas e vender produtos que amarrem os Estados, logo os consumidores, ao pagamento de dívidas por muitos anos, servindo-se dos seus homens de mão no governo. Foi o que aconteceu em Portugal com as PPPs, submarinos, etc. Mesmo que as infra-estruturas não sirvam para nada, como muitas auto-estradas que estão às moscas. Idem para os submarinos. Aqui os consumidores são apenas vítimas de terem escolhido governantes venais ou que deixam subsistir quadros venais.
Mais uma vez, a culpa é dos capitalistas e seus instrumentos governamentais, não dos consumidores.
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Os que verdadeiramente são culpados de «excesso de consumo» são os capitalistas gestores de bancos e empresas públicas, homens como o Dias Loureiro que participou na fraude do BPN, energúmenos que têm ao longo de todos estes anos chupado o sangue do povo e que rapidamente enriqueceram e têm contas de milhões e biliões na Suíça, Luxemburgo, ilhas Caimão, etc.
A culpa é total e inteiramente dos grandes capitalistas, nomeadamente os do sector financeiro da Economia.
Bem se percebe que Borges, Ulrichs e quejandos estejam vitalmente interessados em esconder a verdade e deitar poeira aos olhos do povo. Para eles, os capitalistas nunca têm culpa de nada.
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Já é tempo de acabar com a balela de que a crise foi por culpa dos consumidores ou por excesso de consumo dos cidadãos anónimos, trabalhadores. Apelamos a todos os cidadãos de boa vontade, aos trabalhadores, aos intelectuais honestos para que contribuam activamente para repor a verdade, desmascarando esta monumental balela.