(Ver Preâmbulo da Parte III no artigo «A Primavera Árabe. Parte III (Preâmbulo, Tunísia))
III – Da Independência até à Primavera Árabe
Líbia
Quando a Líbia se tornou independente a penúria económica e de quadros era imensa. Não havia Universidades e apenas 16 pessoas eram licenciadas. O país não tinha juízes, médicos, engenheiros ou farmacêuticos líbios. Apenas 250.000 líbios sabiam ler e escrever e 5% da população era cega, sendo tracoma doença corrente. Grande parte do funcionalismo público era de origem britânica ([1]).
A população em 1950 era numericamente igual à de 1911 ([2]): 1,5 milhões! Em 1955 começou a exploração do petróleo com concessões às americanas Esso, Mobil e Texas Gulf. Como resultado, as finanças da Líbia melhoraram, mas a melhoria das condições de vida da população foi bem menor; os rendimentos do petróleo ficaram nos bolsos de uma pequena elite. Por outro lado, os italianos que permaneceram na Líbia continuaram a deter os melhores empregos, a explorar as melhores terras e a gerir os melhores negócios. A burguesia e a classe operária autóctones eram extremamente reduzidas. O sistema tribal era dominante (e continuou importante até à actualidade).
O rei Idris as-Senussi era um obediente seguidor do imperialismo britânico e americano, mesmo depois da crise do Suez no Egipto. Mais interessado em questões religiosas deixou os assuntos políticos a uma camarilha enfeudada aos interesses imperialistas. A única inovação digna de nota foi a unificação em 1963 das diversas regiões da Líbia sob um governo centralizado.
Em 1 de Setembro de 1969 rebentou um golpe militar liderado por um grupo de oficiais liderado pelo então coronel Muamar Kadafi que acabou com a monarquia. Era um golpe claramente inspirado pelos golpes dos «oficiais livres» ocorridos no Egipto (Gamal Nasser, em 1952) e na Síria (Hafez Al-Assad, em 1963). Uma razão próxima do movimento dos oficiais era o sentimento de humilhação das nações árabes, em particular na sequência da derrota da guerra dos seis dias imposta pelo exército israelita à então República Árabe Unida (Egipto, Síria e Jordânia) com apoio de outras nações árabes incluindo a Líbia. Outras razões prendiam-se com as desigualdades sociais reinantes na Líbia (o próprio Kadafi era de família beduína pobre da tribo Qadhafa).
O Comando do Conselho Revolucionário liderado por Kadafi declarou a República Árabe da Líbia sob o mote de «liberdade, socialismo e unidade», seguindo as ideias que inspiravam o partido Ba'ath fundado na Síria em 1946, nomeadamente: pan-arabismo, causa palestiniana (anti-sionismo) e mais justa repartição da riqueza ([1, 3]). Constituiu também o partido único «Partido Socialista Árabe» ([4]).
Em 1970 o novo regime da «Revolução Popular» (Al-Fatah) procedeu ao estabelecimento de novos acordos de produção de petróleo com as multinacionais, tendo para tal criado a Corporação Nacional do Petróleo (não se tratava, portanto, de uma nacionalização). Efectuou também uma redistribuição de terrenos agrícolas confiscando as propriedades italianas (cerca de 380 km2, mais de quatro vezes o território de Portugal). Não eliminou, contudo, a propriedade privada da terra.
Em 1972, em consequência de medidas retaliatórias do governo britânico (Kadafi tinha estudado e obtido formação militar na Inglaterra), Kadafi aproximou-se da União Soviética com a qual assinou um acordo para o desenvolvimento da indústria petrolífera. Data dessa época o estabelecimento de boas relações com os países do Leste europeu, com destaque para a Checoslováquia e Bulgária.
Apesar da aproximação à URSS Kadafi permaneceu, porém, um feroz anti-comunista. Em 1971 desviou para o Sudão um avião inglês que transportava dirigentes comunistas, entregando-os ao presidente Nimeiry que os mandou enforcar. Em 1973 um documento oficial do governo Kadafi proclamava a «Guerra Santa contra o Comunismo» no qual se lê que «a maior ameaça que o homem actualmente enfrenta é a teoria comunista». A administração Nixon, apesar de Kadafi ter acabado com a base americana na Líbia, via Kadafi com uma figura benéfica precisamente por causa do seu anti-comunismo. Os EUA não parecem ter-se preocupado muito com as experiências pan-arabistas de Kadafi, que sempre foram algo loucas e de curta duração.
A megalomania de Kadafi também cedo se manifesta. Em 1973 publica o «Livro Verde» onde expõe as suas elucubrações políticas sob o pomposo título de «Terceira Teoria Universal» afirmando logo no início de que «Este 'Livro Verde' apresenta a solução teórica definitiva do problema da 'máquina de governar'». Assim mesmo: teórica e definitiva! As «teorias» do «Livro Verde» (de ensino obrigatório na Líbia) são uma mistura exótica de verdades de La Palisse com ideias reaccionárias pequeno-burguesas, como, por exemplo, a concepção de que as classes sociais são algo de exógeno ao desenvolvimento das forças produtivas, sendo apenas algo que se constitui para a luta pelo poder. Kadafi considera não haver diferenças entre os conceitos de classe, partido, tribo ou seita: «A classe, como o partido, a tribo ou a seita, é um grupo de pessoas que partilham os mesmos interesses». Para Kadadi a classe não tem determinação económica; de facto, em vão procuraríamos no «Livro Verde» uma fundamentação materialista das afirmações. Defende a colaboração entre patrões e operários numa visão islâmica do «socialismo». Defende também uma visão tribalista (dizendo que é uma «grande família» e gabando as suas vantagens) e de «socialismo» pequeno burguês que não ultrapassa a concepção da mais justa repartição da propriedade da terra. No plano político, e também na linha do «socialismo» utópico pequeno burguês, defende o «poder popular» organizado através de comités populares ([5]). Na prática, como é óbvio, o «poder popular» não funcionou nem poderia funcionar; Kadafi rapidamente se tornou num autocrata (intitulava-se «Rei dos Reis», «Líder dos Líderes Árabes», «Imã dos Muçulmanos»), objecto de culto, à frente de um Estado totalitário governado por uma pequena clique. Os comités populares constituíram apenas um espaço de diálogo entre Kadafi e as tribos. A fraca expressão da burguesia e da classe operária, que acima referimos, constituíram as condições materiais explicativas do fenómeno Kadafi. De notar que, desde a «revolução» de 1969, o regime proibiu as greves e foram banidos os poucos sindicatos existentes, sendo substituídos por «sindicatos» estatais corporativos (ideia que Kadafi foi buscar aos fascistas italianos).
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O pan-arabismo de Kadafi combinado com a sua megalomania levou-o a procurar inúmeras alianças e fusões com outros países árabes. Por vezes a aliança (mesmo com ditadores abertamente reaccionários como Nimeiry no Sudão, que começou como «socialista» para rapidamente se tornar aliado dos EUA) envolveu mesmo o envio ou intervenção armada através da sua «Legião Islâmica». A retórica anti-imperialista de Kadafi nunca o impediu de ter conluios e providenciar apoios a forças e partidos abertamente reaccionários. Lembremo-nos, também, que em 1975 Kadafi defendeu que os Açores e a Madeira se deviam tornar independentes. Por esta altura, Kadafi monta uma escola de treino de acções terroristas, com ligações a agentes da CIA. São treinados, nomeadamente, os mujahedin que combatem os soviéticos no Afeganistão em 1980.
A crise mundial de 1974 levou Kadafi a desconfiar da capacidade de débil burguesia líbia em desenvolver a economia e a enveredar por um desenvolvimento baseado em empresas estatais. Um golpe de antigos camaradas de Kadafi, apoiantes da via capitalista foi levado a cabo em 1975 e prontamente reprimido (300 presos, quatro executados). Um dos golpistas, Omar El-Hariri de quem ouviremos falar mais tarde, permaneceu 15 anos na prisão. O período «socialista» das empresas estatais (sem qualquer participação e controlo democrático dos trabalhadores) subsistiu até cerca de 1994.
Entretanto, a partir de 1973, a repressão brutal e os desparecimentos inexplicados de opositores tornaram-se uma prática corrente; muitas vezes simplesmente por suspeição de pertencer a um partido político ([6]). Amputação, flagelamentos e torturas foram aprovados pelas «leis de purificação» no Congresso do Povo, uma estrutura de fachada. Muitos suspeitos foram enforcados com a obrigação de a família assistir. Os dois eventos repressivos mais mediáticos foram o massacre da prisão Abu Salim em 1996 (1.270 vítimas segundo a Amnistia Internacional) e a condenação à morte em 1998 de enfermeiras búlgaras e de um médico palestiniano por alegadamente terem, propositadamente, infectado crianças com o HIV (mais tarde, por intervenção internacional, entregues aos países respectivos) ([7]). Os comités revolucionários de Kadafi enviam também grupos terroristas para assasinar dissidentes líbios no estrangeiro.
Um aspecto pouco divulgado da brutalidade do regime é o da repressão das minorias. Kadafi encetou uma luta aberta contra a cultura berbere, mudou os nomes berberes de localidades e proibiu mesmo o uso da língua. Disse ele em 1985: «se a tua mãe te transmite essa linguagem, ela está a alimentar-te com o leite do colonialista, ela alimenta-te com esse veneno». Não admira, portanto, que na guerra civil de 2011 os berberes tenham combatido activamente contra Kadafi.
Apesar da brutalidade opressiva do regime, deve-se ter em conta, todavia, que Kadafi usou parte dos grandes recursos do petróleo, e das empresas estatais no período «socialista», para desenvolver a Líbia e criar algum bem-estar social (nomeadamente no funcionalismo público), o que lhe granjeou o apoio de largas camadas da população, como se verificou no apoio, durante a insurreição, de uma parte da população de Tripoli e de outras áreas do país. A figura 1 mostra a evolução do PIB per capita (PIBpc) entre 1950 e 2006 ([8]). A enorme subida no período de regime capitalista entre 1954 e 1970, deve-se aos rendimentos do petróleo. A partir de 1970 o PIBpc começa a baixar ainda antes da crise do petróleo em 1973-74; logo, as causas da crise não podem ser atribuídas apenas à crise do petróleo. A partir de 1974 inicia-se a nacionalização de empresas, processo consumado em 1979; O PIBpc volta, porém, a baixar a partir desta data; o breve período de subida entre 1974 e 1979 reflecte, portanto, o simples efeito da recuperação mundial da crise do petróleo.
Note-se que durante 1964 e 1980 (período para o qual há dados objectivos) a desigualdade social, medida pelo índice de Gini (entre 0 e 100% e tanto mais baixo quanto menor a desigualdade) pouco variou ([9]): depois de uma melhoria considerável até 1975 (baixou de 50% para 38%) voltou depois a aumentar até 49,6% em 1980. Os benefícios do petróleo caíam nos bolsos da clique no poder. A família de Kadafi e a sua entourage embolsaram vastas fortunas [10], enquanto uma larga percentagem da população vivia na pobreza (principalmente na Cirenaica).
Durante o período «socialista» de Kadafi sucederam-se vários atentados terroristas de que os mais mediáticos foram a bomba que explodiu na discoteca de Berlim, em 1986 e a queda de um avião de passageiros na Escócia em 1988. As razões destes atentados ainda hoje não são inteiramente claras. Se Kadafi queria mostrar-se, assim, como um grande combatente anti-imperialista, falhou em toda a linha. Neste período de contactos estreitos com a URSS, até esta se viu obrigada a demarcar-se de tão imprevisível e incómodo «aliado», sempre volúvel em política: por exemplo, em 1980 Kadafi gabou os Mujahedin que apoiados pela CIA combateram o exército soviético no Afeganistão.
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Em 1993, depois da implosão soviética, Kadafi apressou-se a abandonar o «socialismo». Um decreto desse mesmo ano anunciava a liberalização do comércio seguido em 1994 de medidas legais de garantia de investimentos estrangeiros e de privatizações. Estas últimas só não se consumaram totalmente no início porque os gestores estatais, os tecnocratas da indústria do petróleo e os burocratas estatais já agiam como proprietários. Todavia, em 2003, um defensor do «mercado livre» é nomeado primeiro-ministro. Em Janeiro de 2007 400 mil funcionários públicos foram despedidos. Em 2009 todas as empresas tinham sido nacionalizadas.
Entretanto, e conjuntamente com a entrada de empresas estrangeiras (AGIP, BP, Shell, Repsol, Exxon, etc.) o regime passava abertamente ao apoio do imperialismo. Em 2003 Kadafi anuncia o fim do seu programa de armas de destruição maciça. Blair, Berlusconi e Sarkozy passaram a figuras bem recebidas por Kadafi. Condoleeza Rice visitou-o em 2004. Kadafi passou a fornecer informação à CIA e ao MI6 sobre suspeitos de fundamentalismo islâmico. Mas, ao mesmo tempo, Kadafi inicia contactos com a Irmandade Muçulmana ([11]). Oferece também ajuda a Chirac para esmagar revoltosos africanos em França. Oferece prisões aos EUA para detenção extrajudicial (extraordinary rendition) de suspeitos de terrorismo islâmico. Um telegrama dado a conhecer pelo WikiLeaks, emanado da embaixada americana na Líbia, dizia assim: «A Líbia tem actuado como um aliado importante nos esforços anti-terroristas dos EUA, e é considerada como um dos nossos principais parceiros no combate ao fluxo de combatentes estrangeiros». Kadafi passou a ser apontado pelos imperialistas como um «exemplo de realismo político».
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Na véspera da revolução, as estatísticas sócio-económicas disponíveis mostravam o seguinte: a Líbia experimentava uma queda acentuada da taxa de crescimento do PIB (ver figura 2), maior do que a média dos países do Médio Oriente e Norte de África (dados do FMI). Mais de metade do PIB era contribuição do sector do petróleo. O PIBpc era 1/5 do Português em 2006. O sector de serviços e administrativo (governo) ocupava em 2004 59% dos trabalhadores. A força de trabalho era de 1,64 milhões mas mais de um terço (10,4% da população) era de trabalhadores estrangeiros (imigrantes)! A taxa oficial de desemprego em 2009 era de 10% atingindo 25% nas camadas jovens. Segundo uma estimativa de 2006, 7,6% da população vivia com menos de 1 dólar por dia.
Fig. 2. Taxa de crescimento do PIB da Líbia
Entre 1969 e 2010 a população da Líbia tinha aumentado de 1,923 milhões para 6,355 milhões; mais do triplo. Isto não surpreende grandemente, visto que desde a independência em 1952 até 1969 o PIB praticamente se manteve constante; a situação económica era a da herdada da guerra, de extrema penúria. Entre 1997 e 2010 a força de trabalho tinha subido de 1,18 milhões para 1,73 milhões; extrapolando para 1969, rapidamente se conclui que a força de trabalho em 1969 era extremamente reduzida. A economia Líbia continuou a depender principalmente do petróleo que contribuía em 2010 para 65% do PIB, 95% das exportações e 80% de receitas do Estado. Outros sectores de actividade que, entretanto, se foram desenvolvendo foram as minas de ferro e sal, alimentação, têxteis, cimentos e turismo.
O regime de Kadafi correspondeu, portanto, a um período de crescimento económico em que se passou de uma situação de burguesia e classe trabalhadora quase inexistentes, para outra em que a classe trabalhadora representava 27% da população. Tendo em conta que os trabalhadores imigrantes representam cerca de 1/3 da força de trabalho (trabalham fundamentalmente nos campos de petróleo), teremos então uma estimativa de 18% da população (cerca de 1 milhão) para o total de trabalhadores autóctones. (Em Portugal, em 2011, a população activa era cerca de metade da população total.) A classe trabalhadora líbia, além de pequena, não tinha quaisquer direitos, nem sindicatos, nem partidos que defendessem os seus interesses. Neste quadro, a luta dos trabalhadores inseriu-se na luta mais vasta da pequena burguesia, dos estudantes, dos quadros técnicos, dos desempregados, e de parte do campesinato, pelo derrube do sistema opressivo, pela conquista de direitos democráticos, pelo desenvolvimento económico independente e diversificado, livre do domínio das multinacionais do petróleo, e pela resolução de problemas sociais como o desemprego. Estes os objectivos da revolução iniciada em Fevereiro de 2011, objectivos esses que caracterizam a revolução em termos marxistas como uma revolução democrático-burguesa.
[1] A wikipedia na versão inglesa contém muita informação essencialmente correcta.
[2] Otman W, Karlberg, E (2007) The Libyan Economy: Economic diversification and International Reposition. Springer-Verlag.
[3] Fred Weston. The nature of the Gaddafi regime – historical background notes. In Defense of Marxism, 6/4/2011.
[4] B. Khader (2011) Libya: History of a failed revolution (1969-2011). MEDEA.
[5] Muammar Al Qathafi, O Livro Verde. Empresa Pública de Edição, Publicidade e Distribuição, Tripoli (Renascença Gráfica, SARL). Entre as inúmeras trivialidades do «Livro Verde» é sumamente cómico o capítulo «A Mulher» com frases deste calibre: «Por que razão existe então o homem e a mulher?», «Na verdade, a sociedade humana não é composta só por homens nem só por mulheres. É naturalmente composta por homens e mulheres. Por que razão não foram criados apenas homens? Por que razão não foram criadas apenas mulheres? […]». E a diatribe continua desembocando na visão burguesa da divisão de tarefas entre homem e mulher que «justifica» a existência de ambos.
[6] Ver: http://morganleafy.files.wordpress.com/2011/10/gaddafi-crimes-since-1969.pdf.
[7] As alegações governamentais, segundo peritagens independentes, destinaram-se simplesmente a encobrir as más práticas de higiene do hospital líbio.
[8] Historical Statistics, Centro de Desenvolvimento da OCDE (dados actualizados do trabalho de Angus Maddison, The World Economy: Historical Statistics , 2004.
[9] University of Texas Inequality Project (http://utip.gov.utexas.edu/data.html).
[10] A fortuna de Kadafi era tão elevada que ele se dava ao luxo de possuir 7,5% do capital social do clube italiano Juventus. Associou-se também ao fabricante da Fiat.
[11] http://www.al-monitor.com/pulse/originals/2012/al-monitor/four-reasons-the-islamists-lost.html#ixzz2FKTedZRR