Se há «coisa» que muito tem contribuído para o descrédito do marxismo é a atitude ideológica de muitos daqueles que se reclamam do marxismo, incluindo partidos políticos.
É uma atitude que se pode caracterizar assim: 1 – o marxismo, tal como exposto nos trabalhos de Karl Marx e Friedrich Engels, e continuado pelos trabalhos de Lenine e/ou Trotsky e/ou outros é uma verdade final, definitiva; 2 – nesta forma de última verdade o marxismo é uma teoria de tudo, uma meta-ciência que permite verificar se qualquer afirmação, inclusive de outras ciências, é válida ou não.
*
Fundamentalmente o marxismo acabou com a abordagem idealista da análise das formações sócio-económicas (em particular, do capitalismo) e da sua evolução histórica. Em vez do uso que até então faziam filósofos e outros pensadores de ideias abstractas e subjectivas, tais como a do «direito natural», de «o Homem», e de uma evolução caótica da História ao sabor de vontades individuais, Marx e Engels, pela primeira vez, analisaram as relações humanas na sua materialidade, assentes na necessidade de produção de bens; das relações que homens concretos estabelecem entre si para produzir esses bens. Isto é, partiram de algo que parece óbvio: não é só a natureza externa ao homem, que todos reconhecem como natureza material, que pode ser objecto da Ciência. O homem, na sua interacção com outros homens e com a natureza, realiza transformações materiais; logo, tais interacções, o modo como se realizam, são também «objectos» materiais, objectos válidos da Ciência.
*
Infelizmente, o que falta a muitos que se reclamam do marxismo é precisamente uma compreensão científica e mais: a compreensão da absoluta necessidade, em qualquer abordagem científica, do desenvolvimento da capacidade de análise crítica e do confronto de ideias. Em Ciência não há teorias de tudo nem últimas verdades. A Ciência é uma construção constante, seguindo variadas metodologias, em que novas verdades se vão construindo e substituem ou complementam antigas verdades. Novas verdades que os antigos mestres desconheciam ou era-lhes materialmente impossível conhecer.
Por isso mesmo, qualquer abordagem científica, seja nas chamadas ciências da natureza seja nas chamadas ciências humanas, rejeita liminarmente qualquer princípio de autoridade, do género magister dixit, tão usado por alguns que se reclamam do marxismo.
Ora, certos «marxistas» usam o marxismo quase como os padres usam a Bíblia para justificar uma qualquer afirmação. Comportam-se como alguém que olhando para uma pedra a cair diz que ela cai porque Newton afirmou que ela há-de cair, e têm logo o cuidado de citar uma passagem dos Principia de Newton para «justificar» a queda da pedra. Assim, também, muitos desses «marxistas» ao analisar uma dada situação histórica concreta, puxam do breviário e tratam de encontrar uma passagem de um qualquer «mestre» que tenha uma solução já prontinha a servir que se adapte à situação histórica concreta. O que há de científico no método marxista, a aplicação do método num trabalho rigoroso de análise da realidade, pouco lhes interessa. O que lhes interessa é simplesmente o que «certos» mestres disseram. O que «esses» mestres» disseram aceita-se e não se discute: é um dogma.
Por isso mesmo, há tantos partidos que se reclamam do marxismo. Distinguem-se em grande parte pela fé nos mestres que seguem. E mais: tal como as seitas religiosas, tratam de se digladiar ferozmente porque uns acham que é o S. Marcos que tem razão e o outro que é S. Mateus.
Assim, para o PCP (e partidos comunistas ditos estalinistas, que seguem os cânones traçados pela Internacional Comunista, durante os anos em que o déspota Estaline esteve no poder) só o(s) ideólogo(s) da Comissão Política dizem a última verdade e são depositários da teoria de tudo. Para eles só Lenine ¾ um Lenine devidamente interpretado pelas instituições estalinistas que vigoraram na URSS ¾ é o breviário de referência e que nunca se enganou. Em relação a Marx, embora não o digam abertamente, torcem o nariz. Idem, quanto a Rosa Luxemburgo. Quanto a Trotsky, tudo que ele disse está errado, sem qualquer apelo: Estaline dixit e encarregou-se de mandar assassinar Trotsky por causa das coisas.
Para os partidos trotskistas, algo de semelhante acontece (pese embora uma maior abertura para a discussão democrática). A diferença é que para eles tudo que Trotsky disse está certo; nunca se enganou. Lenine e Trostky para eles contêm a teoria de tudo e disseram as últimas verdades. Um dos actuais ideólogos trotskistas (o proeminente Alan Woods, presidente da International Marxist Tendency, com um portal que, na nossa opinião, a par de muito bons artigos contém outros muito maus) teve até o desplante de escrever um livro sobre ciências da natureza (sem ter qualquer preparação científica) onde, entre outros espantosos disparates, desmente a Teoria do Big-Bang porque acha que não é marxista. Cá temos o marxismo como meta-ciência (e, portanto, também como teoria de tudo) que soberanamente determina se as afirmações/determinações de outras ciências estão certas ou erradas (o físico e marxista Peter Mason escreveu um belo livro sobre isto: Science, Marxism and the Big Bang).
Não vale a pena estarmo-nos a preocupar com os maoístas porque estes nunca entenderam o que era o marxismo. É por isso que o «socialismo» deles é uma coisa só mesmo deles: «socialismo» à chinesa. Mas também andaram anos e anos a exibir fanaticamente o livro vermelho de Mao Tsé-Tung, antes de passarem a exibir o livro de Milton Friedman. Enfim, mudança de mestres.
Esta situação é sumamente tragi-cómica. Muitos daqueles que se reclamam do marxismo, isto é, de uma visão científica da realidade humana, falham logo redondamente no que concerne os requisitos de uma visão científica, qualquer que seja o seu objecto.
É como se alguém dissesse que Einstein nunca se enganou e disse a última verdade. Coisa que, como qualquer físico sabe, não é verdade, e o próprio Einstein foi o primeiro a admitir vários dos seus erros.
Mas não foi só Einstein (que, por sinal, defendeu muito do que os marxistas afirmavam). Marx declarou textualmente, numa carta a um amigo, que não era marxista! Tinha a noção clara de que apenas tinha traçado o início de um caminho. E, quer ele quer Engels, não se metiam a emitir apreciações cautelosas sobre outras áreas do conhecimento sem primeiro as terem estudado cuidadosamente.
Engels, em particular, dizia que uma teoria de tudo, que fornecesse um sistema explicativo e organizativo de toda a natureza (e os seres humanos e suas relações fazem parte da natureza) é uma quimera e um contra-senso. A partir do momento em que a humanidade se organizasse segundo tal sistema, cessaria a evolução humana e a evolução do conhecimento. Cessaria a História! Dizia também o seguinte a propósito das teorias de Eugen Dühring que se gabava de possuir a «verdade definitiva» ("O Anti-Dühring"): «Pelo contrário [isto é, ao invés de outros pensadores], Dühring oferece-nos teses que declara como verdades definitivas e sem apelo, a respeito das quais qualquer opinião contrária se considera previamente falsa; e como verdade definitiva possui em exclusivo um rigoroso método científico, carecendo qualquer outra verdade de valor científico. […] Quando se está na posse da verdade definitiva e sem apelo, como do único método científico e rigoroso, é fácil estar-se cheio de desprezo pela humanidade, extraviada no erro».
Quanto a Lenine, é também conhecido pela sua capacidade de trabalho e honestidade intelectual (deu-se ao trabalho de estudar durante muito tempo, cuidadosa e penosamente, certas teorias idealistas de alguns físicos alemães, antes de expor a sua opinião sobre o assunto no trabalho "Materialism and Empirio-Criticism"). É dele a bela frase «a matéria é inesgotável». Pois é. Tal como a matéria, as verdades também são e serão inesgotáveis.