quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte IV (Egipto)

IV – Das Revoluções à Actualidade
(Ver Preâmbulo em «A Primavera Árabe. Parte IV (Preâmbulo, Tunísia)».)

Egipto
Em 2010 eram visíveis os sinais de que uma revolução estava eminente; visíveis, pelo menos, para os marxistas (um artigo marxista de finais de Outubro de 2010 demonstra claramente isso: [1]). Para além da mobilização popular, as eleições anunciadas para 2011 tinham aberto fissuras importantes no sistema, com os militares a rejeitarem a ideia de um sucessor na figura do filho de Mubarak, que viam como um representante de yuppies. Um aspecto importante foi a crescente alienação da base social de apoio do regime: o funcionalismo público. Dizia assim o Middle East Report ([2]): «A nova dimensão hoje [da oposição] é a difusão dos protestos entre novas categorias de cidadãos, especialmente os burocratas de baixo escalão, os quais, como representantes da baixa classe média personificada por Gamal Abdel Nasser, constituíram a base social do Estado egípcio desde 1952. A grande maioria dos protestos não tem origem em sindicatos e partidos políticos. Todos os dias os jornais relatam acções de rua auto-organizadas por um qualquer sector da população descontente, quer sejam funcionários públicos empurrados para baixo, quer residentes do norte do Sinai, mecânicos de automóveis, enfermeiras, coptas, operários despedidos, agricultores de arroz em dificuldade, ou jovens conhecedores de tecnologias». Até os colectores de impostos estavam descontentes e tinham formado o seu próprio sindicato!
Em finais de 2010, Mohamed Elbaradei, um democrata burguês conhecido por ter sido presidente da Agência Internacional de Energia Atómica da ONU, tinha surgido como líder da «Associação Nacional para a Mudança». O regime tentou bloquear a a candidatura de Elbaradei para as eleições de 2011. Elbaradei tornou-se, assim, o pólo de convergência do movimento de massas, fazendo campanha pelo fim do estado de emergência, em vigor desde 1981, e por eleições livres, monitorizadas internacionalmente. Deparando com a impossibilidade de alcançar estes objectivos, apelou mais tarde ao boicote das eleições; o movimento de massas apoiou-o nesta campanha.
*    *    *
Na segunda semana de Janeiro algumas pessoas desesperadas fizeram como o mártir tunisino: atearam fogo a si próprias em frente do parlamento e do edifício do primeiro-ministro. Este minimizou o incidente, dizendo que as tentativas de suicídio tinham sido por razões pessoais. Entretanto, jovens desempregados e estudantes começam a convocar uma manifestação; tal como na Tunísia usam o Facebook e o Twitter.
A 25 de Janeiro de 2011, no chamado Dia da Revolta, dezenas de milhares de manifestantes (trabalhadores, desempregados, pobres, estudantes revolucionários) protestam no Cairo e Alexandria contra o governo de Mubarak. Num bairro do Cairo os manifestantes chegam a ocupar um posto da polícia; noutros bairros e na Parca Tahrir a multidão é tão densa que transborda os cordões de polícia. Acontecem cenas de confraternização entre oficiais da polícia e os manifestantes. O regime apressa-se a impedir o acesso à Internet e a bloquear o Facebook ([3]).
A 26 de Janeiro dão-se confrontos com as forças de segurança (3 mortos e 120 feridos). O imperialismo não acredita que se esteja a assistir a uma revolução. Hillary Clinton diz nesse mesmo dia: «A nossa apreciação é de que o governo do Egipto é estável e está a procurar vias de responder às necessidades e interesses legítimos do povo egípcio». Existe a convicção de que as massas «atrasadas» do Egipto são apáticas e não se comportarão como na Tunísia. Diz a BBC num artigo intitulado «Não há sinais de que o Egipto siga o caminho da Tunísia»: «Ao contrário da Tunísia a população tem um muito menor nível de educação. O analfabetismo é elevado, a penetração da Internet é baixa». Contudo, certos porta-vozes do imperialismo parecem ter uma visão mais realista, como o Washington Post que refere: «Os acontecimentos de hoje [25 de Janeiro] mostram que o governo do Cairo não é de forma alguma estável».
Note-se que neste período a Irmandade Islâmica (IM) esteve sempre contra a oposição a Mubarak, não participando e inclusive criticando as manifestações. Sabe-se que tinha negociações com o regime e com os EUA que viam a IM como a segunda linha de defesa do capitalismo.
A 27, continuam as manifestações que atingem um elevado nível a 28 (a 6.ª Feira da Raiva) com grandiosas manifestações em várias cidades e com o governo a fechar os circuitos dos telemóveis (Vodafone, etc.). Tornam-se públicos os apoios de Elbaradei e seus aliados, como Essam Sharaf (Sharaf tinha-se demitido de Ministro dos Transportes de Mubarak em 2005 tornando-se um crítico aberto do regime. Tinha estabelecido com Elbaradei e cientistas egípcios a Egypt Scientific Society). A Praça Tahrir no Cairo torna-se o centro dos protestos. Os imperiais começam a preocupar-se. Diz Hillary Clinton: «Como aliados [do Egipto] acreditamos firmemente que o governo egípcio precisa de se comprometer imediatamente com o povo egípcio na implementação de reformas políticas, sociais e económicas».
A 1 de Fevereiro Mubarak usa a conhecida táctica do pau e da cenoura. Quanto à cenoura (e em resposta a Hillary e contactos com os EUA), aparece na TV a prometer reformas políticas e a dizer que não se candidataria de novo para presidente. Quanto ao pau, usa no dia 2 os seu apoiantes montados em cavalos e camelos para carregarem sobre a multidão na Praça Tahrir. Além disso, no dia 3, franco-atiradores atiram sobre a multidão causando 10 mortos e 830 feridos. (segundo estimativas da ONU, 300 vítimas vieram a morrer).
Um aspecto importante a ter em conta é o papel das mulheres nas manifestações. Segundo estimativas, as mulheres, com véu e sem véu, chegam a constituir 40 a 50% dos manifestantes, lutam corajosamente e são também vítimas da repressão.

Cairo 4 de Fevereiro de 2011
Os manifestantes não desmobilizam, o que leva as autoridades a encetar negociações com representantes de certa oposição dócil e o vice-presidente Suleiman ([4]) a oferecer reformas. No dia 9 de Fevereiro Suleiman enceta negociações com a Irmandade Muçulmana. A IM, que tinha primeiro recusado negociar, acaba por aceitar dialogar com o Comando Supremo das Forças Armadas (CSFA). Tudo a bem do capitalismo. Os EUA começam nessa altura a ver a IM com outros olhos. No dia 10 de Fevereiro Mubarak aparece na TV a dizer que não resigna mas que delega alguns poderes em Suleiman. As reacções à declaração de Mubarak são de raiva, frustração e desapontamento. As manifestações tornam-se mais grandiosas. No dia 11 Suleiman anuncia a resignação de Mubarak e a assunção do poder por um Conselho Militar (CM) nomeado pelo CSFA ([5]) mantendo o primeiro-ministro (PM) Shafik.
O CSFA dissolve o parlamento e suspende a constituição e anuncia que irá entregar o poder a um governo civil. A 13 de Fevereiro o CSFA declara que se manterá no poder até às eleições ou num período máximo de seis meses. Para apaziguar as massas, procede à prisão de Mubarak e familiares bem como de outras figuras altamente corruptas e detestadas. Os manifestantes desmobilizam. Com o CSFA no poder o imperialismos mostra-se mais confiante. David Cameron visita o Cairo. Obama apela a uma «transição ordeira (orderly transition)».
A 3 de Março as massas populares convocam uma manifestação para obter a demissão do PM Shafiq. Este demite-se sendo substituído por Sharaf, na altura mais do agrado das massas. A 23 de Março o gabinete burguês sente-se já com força suficiente para emitir uma lei criminalizando protestos e greves (a pena iria de multa de 500.000 LE a prisão)! A lei não amedronta as massas que voltam a protestar na Praça Tahrir a 1 de Abril pedindo ao CM para avançar com as medidas exigidas. A única coisa substancial que avançou foi a prisão de Suleiman a 5 de Abril.
A 8 de Abri, novas manifestações: O CSFA é criticado por não cumprir as exigências populares, sendo exigida também a demissão do Procurador Público dada a lentidão em julgar as figuras corruptas do regime. A 9 de Abril o CSFA mostra a sua face: usa os militares para «limpar» a praça Tahrir. A 13 de Abril tem lugar a prisão de Mubarak e familiares. A 16, o Supremo Tribunal Administrativo dissolve o PND (o parido único de Mubarak) e entrega os respectivos activos ao governo. A 24 de Maio é anunciado que Mubarak e filhos serão julgados pelas mortes de manifestantes.
O CSFA vai, entretanto, fazendo tudo que pode para atrasar as reformas exigidas pelos populares. Estes voltam a manifestar-se a 9 de Setembro e depois a 9 de Outubro, desta vez para exigir a dissolução do CSFA e do seu presidente o marechal Tantawi, bem como a demissão do governador de Assuão. O CSFA não está agora com meias medidas: ataca os manifestantes com a polícia militar: 25 mortos e 200 feridos. Todavia, o CSFA veio a demitir o governo e Tantawi aparece a prometer dentro em breve eleições e uma nova constituição.
A 30 de Novembro de 2011 a primeira volta das eleições revelou a vitória da IM e do partido Nur, fundamentalista islâmico, numa clara manifestação do atraso e susceptibilidade à manipulação demagógica de grande parte da sociedade egípcia. Tal como noutros países árabes, o número de partidos, coligações e listas independentes era enorme. As eleições decorreram por várias fases. Os resultados finais são publicados a 22 de Janeiro de 2012. A tabela abaixo mostra os partidos mais votados, correspondendo a 91% dos votos.

Nome de partido/aliança
Posição política
Apoiou a revolução?
Nº de lugares no Parlamento
% de votos
Liberdade e Justiça (a)
Islâmico conservador
Na última fase
235
47%
Nur
Islâmico fundamentalista
Não
114
23%
Novo Wafd
Secular liberal conservador
?
39
8%
Bloco Egípcio (b)
Secular liberal
Sim
34
7%
Wasat
Islâmico moderado
Sim
8
2%
Reforma e Desenvolvimento
Secular liberal
?
11
2%
A Revolução Continua (c)
Secular liberal
Sim
8
2%
(a) Irmandade Muçulmana
(b) P. social-democrata egípcio, P. Egípicios livres, P. Nacional progressivo-Unionista
(c) P. Aliança Egípcia, P. Igualdade e Desenvolvimento, P. Liberdade e Egipto

Dos restantes nove partidos sete são liberais, um é social-democrata e um é de extrema-direita. Não há, portanto, um único partido no Parlamento que represente a classe operária ou, pelo menos, posições de esquerda consequentes. Mostra bem o carácter democrático- burguês da revolução egípcia. Um estudo detalhado ([6])) mostra que foram os mais pobres que escolheram os partidos islâmicos reaccionários, enquanto os mais ricos e, em particular a «classe média», votaram pelos secularistas.
A 23 de Janeiro de 2012 o CSFA transmitiu formalmente os poderes e a autoridade legislativa ao Parlamento. Os militares, porém, permaneceram no poder (!) o que gerou novas manifestações violentas nos finais de Abril. Manobravam também para conservar os seus interesses intactos ([7]): o império económico, as suas relações estreitas com os EUA que lhes fornecem armamento, e o tratado com Israel, porque, embora não gostem de Israel, também não estão interessados em entrar em políticas radicais pan-árabes ou islamitas.
Entretanto, no Parlamento, os islamitas da IM e do Nur afastavam os seculares da redacção da Constituição. A 13 de Junho o novo regime, representando uma aliança entre o CSFA e a IM, sente-se já suficientemente forte para que o ministro da Justiça emita um decreto dando às forças militares o poder de prender civis e levá-los a tribunais militares! Por outro lado, os militares acabaram por ultrapassar o Parlamento escolhendo um painel de 100 membros para elaborar a Constituição! Isto levantou novos protestos violentos na Praça Tahrir de 19 a 24 de Junho. Entretanto, a 24 de Junho, são conhecidos os resultados das eleições presidenciais (a segunda volta tinha sido em 16 e 17 de Junho). Mohamed Morsi da IM é declarado vencedor tendo ganho a maioria em 13 de 27 governorados ([8]). Seguem-se-lhe Shafik, um homem do CSFA (6 em 27), Sabbahi (5 em 27), um nasserista apoiante da revolução e que venceu precisamente nos governorados urbanos e industriais (Cairo, Alexandria, Port Said, etc.) e um dissidente da IM (2 em 27).
*    *    *
Cada vez mais as reivindicações das massas populares são postas de lado, enquanto a IM cerra fileiras com os salafistas do Nur, usando os jovens estudantes fanáticos do Nur como tropa de choque contra os revolucionários. O Nur além de não participar na revolução sempre atribuiu os protestos e insurreições populares a «agentes estrangeiros».
Os militares e burocratas do antigo regime, antes do anúncio dos resultados das eleições, dissolveram o Parlamento e emitiram uma série de decretos anti-democráticos: o do direito de julgar civis por tribunais militares, já referido acima; a auto-atribuição de poderes legislativos  e a intromissão na redacção da Constituição; o re-estabelecimento do Conselho de Defesa Nacional encabeçado pelo marechal Tantawi, colocando os generais no controlo da polícia política.
Morsi, no primeiro discurso público, exibe-se como presidente de todos os egípcios, prestando homenagem aos que tombaram na revolução e apelando à estabilidade ([5]). Os imperialistas estão satisfeitos. A Casa Branca declara que os resultados das eleições foram um «marco no movimento para a democracia». Não lhes interessa minimamente que, quando Morsi quando estava na Universidade da Califórnia, se tenha destacado pelas suas afirmações de que o colapso do World Trade Center não tinha sido causado pelos aviões nos ataques do 11 de Setembro. Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, também está satisfeito: «esperamos trabalhar conjuntamente com a nova administração com base no nosso acordo de paz».
A 22 de Novembro de 2012 Morsi anuncia um decreto em que se auto-confere largos poderes. Perante os vastos protestos populares (Elbaradei chamou-lhe «novo faraó»), secundados por algumas forças institucionais (juízes), colocou a lei a referendo em 15 de Dezembro de 2012. Ganhou-o com 57% dos votos! Durante todo o ano de 2012 têm-se repetido os protestos e as greves, reprimidos com brutalidade pelos militares. Elbaradei e Sabahi declararam que querem criar uma frente nacional contra o decreto de Morsi. O actual governo de Morsi é constituído por uma mistura de islamitas com burocratas de Mubarak. Morsi, entretanto, recebeu o FMI e em consequência disso implementou medidas de austeridade com aumentos de impostos. Contra as camadas mais pobres é claro. Tudo isto com declarações de optimismo para 2013! (Com quem se parece, com quem?)
A evolução política do Egipto só avançará quando os pobres e os trabalhadores despertarem das suas ilusões sobre os partidos islâmicos.

[1] Hamid Alizadeh, Frederik Ohsten (2010) Egypt: The Gathering Storm. Int. Marxist Tendency.
[2] Mona El-Ghobashy. The Dynamics of Egypt's Elections. Middle East Report, September 29, 2010.
[3] wikipedia: Timeline of the 2011-2012 Egyptian Revolution. Um trabalho de grande interesse para consulta.
[4] Omar Suleiman foi durante 18 anos chefe dos Serviços Secretos e responsável pela repressão política, tortura e crimes contra a humanidade. Era um grande amigo de George Bush.
[5] Parece que entre a velha guarda militar já havia, desde há algum tempo, concertado entre si a vontade de apear Mubarak e sua clique do pedestal.
[6] Erle J, Wichmann JM, Kjaerum A. Egypt Electroral Constituencies. Danish-Egyptian Dialogue Report, 2012.
[7] Ahmed Hashim(2011) The Egyptian Military – Part II. Middle East Policy, vol.18, 4:106-128. This study, the first of two parts, is a short version of a book-length manuscript –Guardians of the State: The Political Roles of the Egyptian Military from Revolution to Revolution– that is due for publication at the end of 2011.
[8] Região administrativa do Egipto.
[9] Hamid Alizadeh . Egypt: Morsi humiliated as revolution raises its head again Novembro 2012. IMT.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte IV (Preâmbulo, Tunísia)

IV – Das Revoluções à Actualidade
Preâmbulo
A revolução tunisina marca o início de uma série de revoluções que alastraram pelo mundo árabe. Como vimos anteriormente, os sofrimentos dos povos de outros países árabes eram (são) semelhantes aos do povo tunisino. A revolução tunisina serviu de catalizador.
As revoluções colocavam como objectivos populares imediatos a conquista de liberdades ¾ liberdade de expressão, de organização de partidos políticos, de organização sindical, de constituição de um sistema parlamentar pluralista, etc. ¾ e de melhorias sociais ¾ fim do desemprego, combate à pobreza, etc. As condições objectivas em que as revoluções se desenvolveram (grande peso do sector agrário, operariado débil e desorganizado), bem como as subjectivas (grande influência dos partidos islâmicos, controlados pela burguesia, entre o campesinato), marcaram o tipo de revolução que era possível ter lugar: democrático-burguesa.
Desde o início o imperialismo procurou, como sempre, intrometer-se no curso da revolução. Entre outros aspectos (geoestratégicos) o controlo do petróleo do Médio Oriente é, seguramente, considerado importante para os EUA. Não tanto devido às necessidades energéticas dos EUA; de todo o petróleo consumido pelos EUA apenas 10% provém do Médio Oriente. Mas a estratégia dos EUA passa também pela contenção do desenvolvimento dos seus competidores: a Europa, de que os consumos em petróleo do Médio Oriente atingem 30% e o Japão cujos consumos provenientes do Médio Oriente atingem 80%. Mas é errado ver no petróleo a justificação exclusiva da intromissão do imperialismo. Na perspectiva imperialista de supremacia mundial qualquer canto do planeta Terra é estratégico; tenha ou não petróleo. (O imperialismo também se intrometeu na nossa Revolução do 25 de Abril pela mão da aliança Carlucci-Mário Soares; base das Lages, posição geoestratégica, efeito de contágio, eram preocupações importantes do imperialismo e não, obviamente, o petróleo.)
É preciso também ter em conta que os capitalismos emergentes e de apetites imperialistas da Rússia e da China também se intrometeram (e intrometem), nomeadamente nos países em que já tinham um «pé» dentro, em particular na Líbia, Egipto e Síria.
A ultrapassagem da fase democrático-burguesa em direcção a uma revolução socialista exigiria o desfazer das ilusões nos partidos islâmicos, uma organização forte do proletariado (em geral, muito desorganizado e disperso) e a atracção do campesinato para esse objectivo. Apenas na Tunísia se assiste, recentemente, ao que poderão ser os primeiros passos nesse sentido. No Egipto parece também estar em erosão a popularidade da Irmandade Islâmica. Na Líbia e na Síria as cliques no poder e seus clientes impuseram guerras civis aos levantamentos populares. Se na Líbia um regime democrático-burguês parece estar em vias de consolidação, a evolução Síria é ainda, presentemente, um enigma. Trata-se do país em que a revolução se desenvolveu em condições mais complexas, com o atiçar propositado de sectarismos violentos de tipo étnico e religioso.
Tunísia
Os protestos populares, iniciados em 17 de Dezembro de 2010 em Sidi Bouzid (imolação pelo fogo do vendedor ambulante Mohamed Bouzizi), rapidamente subiram de tom: grandes manifestações populares desafiando as forças policiais e decididas a não desmobilizar senão quando satisfeitas as reivindicações. Lutam contra o desemprego, exigindo trabalho, condições de vida e dignidade. Em 24 de Dezembro os protestos alastravam a outras cidades e dois civis eram abatidos pela polícia. Nas declarações de Ben Ali e seus homens de confiança os manifestantes eram apodados de «bandidos» e «agitadores». (Apodos também usados  pelas autoridades no Egipto, Líbia e Síria.) Assim eram também classificados por outras figuras políticas da Convergência Democrática Constitucional (CDC), o partido do poder, entrevistadas por cadeias de TV (como a Al-Jazeera).
A 8 de Janeiro o regime iniciou o esmagamento sistemático dos protestos. Em Thala e Kasserine a guarda especial de Ben Ali atira a matar e deixa 50 vítimas mortais. A 12 de Janeiro os protestos alcançam Tunes. A 14 de Janeiro na sequência de uma enorme manifestação que protestou em frente ao ministério do interior, Ben Ali declarou o estado de emergência, dissolveu o governo a 14 de Janeiro de 2011 e prometeu novas eleições.
Estalam greves espontâneas de apoio aos manifestantes, até aí jovens, desempregados, vendedores de rua, etc. O papel da UGTT, contaminada por anos e anos de colaboracionismo com o regime, foi deplorável. (É um quadro que se repete na Síria.) Os dirigentes (um deles apoiante de Ben Ali) procuraram inicialmente travar as greves! Só a 8 de Janeiro o porta-voz da UGTT declara apoio incondicional aos manifestantes. Mesmo assim, os dirigentes da UGTT continuaram indecisos e, por vezes, abertamente hostis às greves e mobilizações dos trabalhadores ([1]). Alguns sindicatos sectoriais e distritais não seguiram, todavia, a linha oficial da UGTT.
Ben Ali não conseguiu travar a mobilização popular que se tornou ainda mais veemente, com grande participação de trabalhadores e juventude e uso de meios tecnológicos para manter uma pressão constante sobre as autoridades (Facebook, YouTube, twitter, telemóvel, etc.). O uso de Facebook e Twitter impossibilitam o regime de prender os organizadores de manifestações. Ben Ali acabou por fugir a 14 de Janeiro para a Arábia Saudita.
A 17 de Janeiro o primeiro-ministro Ghannouchi anunciava a formação de um Governo de Unidade Nacional (GUN) com 8 ministros do anterior governo e algumas, poucas, figuras de «esquerda», do partido colaboracionista Ettajdid (descendente do PCT) e da UGTT. Se esperava enganar a população, enganou-se ele próprio. As manifestações tornaram-se mais furiosas. A 18, Ghannouchi e outras figuras proeminentes declaram demitir-se do CDC. O comité central do CDC também se demite. Mas a questão principal não era a etiqueta das figuras no poder, mas sim as próprias figuras e a natureza do poder. As massas populares não desmobilizam. O GUN vê-se forçado a aceitar a actividade de partidos políticos e a libertar todos os presos políticos.
O exército recusou entrar em confronto com os manifestantes ([2]). Usado como força de protecção de instalações, chegou a haver confronto entre forças do exército e da polícia devido à atitude repressiva desta última. No confronto em Riqab, a 9 de Janeiro, o exército ameaçou mesmo disparar contra a polícia. Ben Ali absteve-se de usar o exército com medo de que se passasse para o lado dos manifestantes.
Os imperialistas ficam preocupados, nomeadamente com a possível propagação da revolução a outros países. Os mesmos que dantes gabavam Ben Ali diziam agora que «só o diálogo pode trazer uma solução democrática duradoira à crise corrente». Obama também disse condenar a violência do regime contra cidadãos «que pacificamente emitiam a sua opinião na Tunísia», mas sabe-se, através do WikiLeaks, que Obama estava de posse dos factos sobre a opressão e corrupção do regime e nada disse sobre isso. (Sabe-se, pelo Wiki Leaks, que a corrupção da clique Ben Ali era de tal ordem que até o embaixador dos EUA se viu obrigado a manifestar a Obama a sua indignação.) Entretanto, todos eles, Sarkozy, Obama, e outros, não deixaram de emitir doutoralmente as suas lições ao povo Tunisino sobre como deveriam democraticamente parar com a revolução!
Um apontamento interessante: no dia 17 de Janeiro de 2011 a CDC deixou também de ser membro da Internacional Socialista (IS, aquela a que pertence o nosso «socialista» PS). Clarificando: só em 17 de Janeiro a IS «reparou» que a CDC não era um partido socialista, isto já para não falar em democrático.
A TV Tunisina é obrigada a mostrar a fuga de Ban Ali e dos seus odiados familiares. As autoridades suíças anunciam, entretanto, que congelaram os bens de Ben Ali e família. O GUN vê-se obrigado a declarar a prisão de 33 membros da família Ben Ali e outras figuras particularmente odiadas como o comandante da guarda policial do presidente.
A 22 de Janeiro dá-se uma nova escalada na movimentação popular: as forças policiais bem como oficiais vestidos à civil juntam-se aos manifestantes. O GUN emite um mandato de captura de Ben Ali e família. As massas revoltadas apoderam-se das propriedades dos fugitivos. Formam-se comités revolucionários de trabalhadores, desempregados e das camadas pobres.
A 27 de Janeiro estalam greves regionais que obrigam Gannouchi a retirar do governo a maioria dos elementos da CDC e a anunciar a dissolução do CDC ([3]). Embora a direcção da UGTT aceite o novo governo de Gannouchi, as massas populares e os trabalhadores sentem-se traídos e continuam a lutar. A situação arrasta-se até 20 de Fevereiro quando Gannouchi anuncia a proibição de novas manifestações. Os líderes corruptos da UGTT, juntamente com figuras dos partidos colaboracionistas constituem um «Conselho de Protecção da Revolução» (como acontece em todas as revoluções, num dado momento muitos reaccionários sentem uma súbita vocação de «protecção» da revolução!). A ideia era dominarem o curso dos acontecimentos, consolidar uma plataforma de apoio à recuperação capitalista, enganando as massas populares com belas frases sob a bandeira da Protecção da Revolução. Não existe, porém, um partido de esquerda, não comprometido com o regime, capaz de esclarecer as massas populares e orientar a revolução. O partido comunista não colaboracionista (PCOT) esteve sempre na clandestinidade e emerge muito debilitado. A «Frente 14 de Janeiro» de partidos e movimentos de esquerda, incluindo o PCOT, perde tempo em discussões inúteis e revela-se incapaz de dar uma orientação á revolução.
Em 25, 26 e 27 de Fevereiro grandiosas manifestações estalam por toda a parte contra o governo Gannouchi e pedindo uma Assembleia Constituinte. Na manifestação frente ao odiado Ministério do Interior geram-se confrontos e perdem a vida cinco manifestantes. Gannouchi resigna; forma-se um novo governo liderado pelo Primeiro-Ministro Caid el Sebsi, menos conotado com o anterior regime. É um governo tecnocrático, com representantes da classe capitalista e personalidades ligadas a interesses imperialistas. Sebsi toma posse a 3 de Março: anuncia medidas de apaziguamento: dissolução da polícia política e da directoria da segurança do Estado; marcação de eleições para a Assembleia Constituinte para 23 de Outubro de 2011. As massas populares sentem que alcançaram uma vitória. Iniciam saneamentos: substituem autoridades distritais e governadores de províncias corruptos e comprometidos com o regime de Ben Ali. Os trabalhadores despedem directores de empresas e de instituições estatais; os estudantes saneiam docentes comprometidos com o antigo regime.
O governo Sebsi, porém, tem uma agenda muito diferente daquela que interessa às massas populares, conforme bem o expressou o presidente da associação de empresários: «temos [agora] a impressão de que a Tunísia regressará à vida normal e as medidas tomadas [pelo governo Sebsi] apoiam esse sentimento» ([4]).
Em qualquer processo revolucionário a direita gosta sempre de eleições o mais rapidamente possível. Usa as eleições como travão da revolução e plataforma de lançamento da contra-revolução. Conta para isso com o atraso de consciência de grande parte das massas populares (mesmo os que desejam a revolução têm dificuldade em expressar politicamente esse desejo), o atavismo, a superior capacidade logística da direita na mobilização caciqueira e dos representantes do clero (seja islâmico, cristão ou de qualquer outra confissão, o clero é sempre, no seu conjunto, uma força de conservantismo social).
Os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte foram um desaire para as forças populares. O partido islamita moderado Enahda (liderado por Gannouchi) foi o grande vencedor, com 37% dos votos. Deveu a vitória ao facto de não estar comprometido com o antigo regime, antes pelo contrário, ter sido vítima de perseguições constantes, bem como ser o partido que representava os pobres das zonas rurais que conotam a opressão de que são vítimas com o secularismo dos exploradores franceses e o «modernismo» de Ben Ali. Beneficiou também da utilização das mesquitas na propaganda política e de fundos fornecidos pela burguesia que rapidamente viu no Enahda o futuro ([5, 6]). Em segundo e terceiro lugar ficaram partidos que nada tiveram a ver com o regime de Ben Ali; um deles, o Congresso para a República (CPR) tinha sido banido por Ben Ali.
Os grandes derrotados nas eleições foram os partidos colaboracionistas, mesmo os de «esquerda» (o Ettajdid, descendente de um partido comunista, e outro, descendente de um partido maoísta). Os partidos de esquerda consequentes (como o PCOT) tiveram também muito fraca votação. A abstenção foi elevada (muito maior do que se esperava): 48%. Para além da desconfiança nos partidos e nas eleições como meio de resolver os problemas (ao fim de nove meses de revolução as condições das camadas mais desfavorecidas não melhoraram e não se viam perspectivas de melhorar) pode ter tido influência a extrema confusão e fragmentação das eleições: 830 partidos, 655 listas independentes, 34 coligações!!!
A burguesia não escondeu a satisfação com os resultados eleitorais. O Enahda apressou-se a expressar o seu apoio à Bolsa e a encontrar-se com a confederação empresarial, dizendo Gannouchi na altura: «O mercado é central na filosofia económica do Nahda como se pode ver no seu programa». O secretário-geral do Enahda apressou-se também a ir aos EUA encontrar-se com o senador McCain, sem dúvida para expressar a adesão à democracia ocidental e à economia de mercado. Emissários do Eliseu passaram meses antes e depois das eleições a reunir-se com os islamitas; dizia o l'Humanité: «a França vota Enahda».
Logo a seguir às eleições começaram os ataques às forças progressistas e aos comités revolucionários. Em Janeiro de 2012 desencadeou-se uma onda de greves e de movimentos insurreccionais em toda a Tunísia, em especial na zona mártir de Gafsa, das minas de fosfatos. Em 30 de Abril de 2012 os salafistas (ultra-reaccionários islâmicos) assaltaram e destruíram a sede do PCOT em Al Kabaria, perto de Tunes. Nos últimos dias de Novembro de 2012  voltaram os protestos, com confrontos das forças militares contra trabalhadores em greve e estudantes na cidade de Siliana. O Enadha prossegue as mesmas políticas económicas que levaram ao desemprego e desespero dos trabalhadores e jovens tunisinos.
Terá a revolução Tunisina terminado? A julgar pelos acontecimentos mais recentes (colapso da coligação governante liderada pelo Enahda, na sequência do assassinato pela direita de um dirigente destacado da esquerda e de possantes manifestações populares), talvez não.

[1] Há vários trabalhos de diversas fonts sobre o comportamento da UGTT. Para além de fontes já citadas em artigos anteriores ver também: Chamseddine Mnasri. Tunisia: the people's revolution. International Socialism, 4 de Abril de 2011.

[2] Nuredine Jebnun (2011). The army's conduct towards the revolution. In: Revolutions, Reform and Democratic Transition in the Arab Homeland: Fom the Perspective of the Tunisian Revoltuion. Arab Center for Research & Policy Studies.
[3] Jorge Martin. The second wave of the Tuinisian revolution. Int. Marxist Tendency, 25/2/2011.
[4] Jorge Martin. The new government of El Sebsi forced to make concessions. Int. Marxist Tendency, 9/3/2011.
[5] Tunisia's Islamist Ennahda party wins historic poll. BBC News Africa
[6] Jorge Martin. Tunisian Constituent Assembly Elections. Int. Marxist Tendency, 7/11/2011. A ler com cautela.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

«O Inverno do Nosso Descontentamento»

Cerca de 1/3 (29%) das crianças vive na pobreza.

Desde que a Troika manda em Portugal já temos, pelo menos, mais de 300 mil desempregados.

Cerca de 3 milhões de portugueses (1/3 da população) vive abaixo do limiar oficial de pobreza.

150 mil portugueses (1,4% da população) têm salários abaixo de 310€/mês, ou seja, 10€/dia.

339 mil portugueses (3,2% da população) recebem o RSI de 89€/mês, ou seja 2,9€/dia, perto do limiar de pobreza absoluta do Banco Mundial (2,5 dólares/dia).

O corte nos subsídios sociais (desemprego, RSI, etc.) afecta 750 mil portugueses (7,1% da população).

Mas Jardim Gonçalves (BCP) vai manter a reforma mensal de 167.000 €, isto é, 5.567 € por dia!

E Fernando Ulrich do BPI acha que os portugueses devem aguentar com a austeridade porque os sem-abrigo também aguentam.

Os desempregados já são mais de um milhão! (1 milhão e 300.000 segundo a CGTP).

50% dos desempregados têm ensino superior. 40% são jovens.

Os despedimentos colectivos nunca foram tão elevados.

A produção da Renault em Cacia pode ir para França (viva a solidariedade europeia!).

E os Estaleiros de Viana vão para o charco; já não têm dinheiro para o aço dos navios (viva a liquidação do sector produtivo!).

O PIB caiu 3,8% no 4.º trimestre de 2012 (não parou de cair durante 2012).

Mas as fraudes dos bancos são recompensadas (pagam-se biliões ao BNP, BANIF, BCP, CGD, etc.) e até os envolvidos (Franquelim Alves) merecem ir para o governo.

Devido ao remédio da Troika, o dinheiro roubado ao povo português tem servido para aguentar as economias da Alemanha, França, etc. E a dívida não pára de aumentar! Estranho remédio que agrava a doença!

Os juízes deixam os processos acumular-se, mas continuam impávidos e serenos.

E um homicida, pai de juíza, goza de regalias especiais na prisão.

A justiça não funciona! A corrupção campeia!

Das 13 recomendações do Grupo de Estados contra a Corrupção, Portugal só cumpriu uma. A Troika serve de desculpa ao governo para não combater a corrupção.

Vão ser criados cursos de ensino superior com menos de 3 anos. Superiores em quê?

Somos um país cada vez mais velho. Os jovens emigram cada vez mais.

O Estado condena ao fecho o serviço de ortopedia do Centro Hospitalar Póvoa/Vila do Conde, que tinha anteriormente premiado!

O currículo de Passos Coelho omite que foi durante dois anos administrador da empresa de Miguel Relvas.

E o Conselho das Finanças Públicas acha que Portugal vai precisar de mais austeridade

A «grande» manif da CGTP de Sábado passado no Porto foi pequena. Por ditos e dísticos, percebia-se que grande parte dos manifestantes era do PCP. Um terço, de  pensionistas. Jovens, quase nenhuns. A CGTP não está a traduzir as inúmeras lutas dos trabalhadores que irrompem espontaneamente por todo o lado.

Bernardino continua a gostar da Coreia do Norte. E agora com bomba atómica. E o PCP passou a admirar a China. China essa que afirmou que a austeridade fazia bem a Portugal; para já abriu uma agência do Banco da China em Lisboa. Enfim, contradições do «socialismo real».

O 31 de Janeiro aproximou BE do PS e João Semedo acha que as últimas palavras de Seguro na sua visita à Alemanha apontam no bom sentido. Dizíamos no último artigo: «Está-nos cá a parecer que o BE vai brevemente passar uma certidão de bom comportamento ao PS […]». Pois é, o certificado de bom comportamento do PS deve estar quase pronto.

A esquerda, parlamentar e não só, confecciona receituários salvadores do capitalismo e arranjinhos políticos com o PS.

Estão convencidíssimos (e procuram convencer os outros) que os males do país se resolvem com mezinhas: BCE passar a emprestar aos Estados, sobretaxas sobre dividendos, combate à evasão fiscal, etc. Mas, espera: não são estas também receitas da direita?

Uma esquerda desacreditada, dócil, conformada, submissa, acocorada. À Esquerda Nada de Novo. Um reformismo fossilizado. Será, assim, de admirar que a população não os ouça?

Em vários países europeus os estudantes manifestam-se nas ruas. Em Portugal entretêm-se em praxes, festinhas e tunas, com cavaquinhos e batuques, alheados do mundo real.

E nos cafés ouvem-se animadas e preocupadas conversas sobre se o Moreirense terá plantel para subir à 1.ª divisão.

*    *    *

Escrever sobre Portugal é um exercício cada vez mais deprimente.

Um povo que não se levanta em luta pela sua dignidade, é um povo sem futuro.

*    *    *

Há quem diga que é preciso um novo 25 de Abril.
Sim. Novo. Inteiramente novo.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

A Teoria de Tudo e a Última Verdade

Se há «coisa» que muito tem contribuído para o descrédito do marxismo é a atitude ideológica de muitos daqueles que se reclamam do marxismo, incluindo partidos políticos.
É uma atitude que se pode caracterizar assim: 1 – o marxismo, tal como exposto nos trabalhos de Karl Marx e Friedrich Engels, e continuado pelos trabalhos de Lenine e/ou Trotsky e/ou outros é uma verdade final, definitiva; 2 – nesta forma de última verdade o marxismo é uma teoria de tudo, uma meta-ciência que permite verificar se qualquer afirmação, inclusive de outras ciências, é válida ou não.
*
Fundamentalmente o marxismo acabou com a abordagem idealista da análise das formações sócio-económicas (em particular, do capitalismo) e da sua evolução histórica. Em vez do uso que até então faziam filósofos e outros pensadores de ideias abstractas e subjectivas, tais como a do «direito natural», de «o Homem», e de uma evolução caótica da História ao sabor de vontades individuais, Marx e Engels, pela primeira vez, analisaram as relações humanas na sua materialidade, assentes na necessidade de produção de bens; das relações que homens concretos estabelecem entre si para produzir esses bens. Isto é, partiram de algo que parece óbvio: não é só a natureza externa ao homem, que todos reconhecem como natureza material, que pode ser objecto da Ciência. O homem, na sua interacção com outros homens e com a natureza, realiza transformações materiais; logo, tais interacções, o modo como se realizam, são também «objectos» materiais, objectos válidos da Ciência.
*
Infelizmente, o que falta a muitos que se reclamam do marxismo é precisamente uma compreensão científica e mais: a compreensão da absoluta necessidade, em qualquer abordagem científica, do desenvolvimento da capacidade de análise crítica e do confronto de ideias. Em Ciência não há teorias de tudo nem últimas verdades. A Ciência é uma construção constante, seguindo variadas metodologias, em que novas verdades se vão construindo e substituem ou complementam antigas verdades. Novas verdades que os antigos mestres desconheciam ou era-lhes materialmente impossível conhecer.
Por isso mesmo, qualquer abordagem científica, seja nas chamadas ciências da natureza seja nas chamadas ciências humanas, rejeita liminarmente qualquer princípio de autoridade, do género magister dixit, tão usado por alguns que se reclamam do marxismo.
Ora, certos «marxistas» usam o marxismo quase como os padres usam a Bíblia para justificar uma qualquer afirmação. Comportam-se como alguém que olhando para uma pedra a cair diz que ela cai porque Newton afirmou que ela há-de cair, e têm logo o cuidado de citar uma passagem dos Principia de Newton para «justificar» a queda da pedra. Assim, também, muitos desses «marxistas» ao analisar uma dada situação histórica concreta, puxam do breviário e tratam de encontrar uma passagem de um qualquer «mestre» que tenha uma solução já prontinha a servir que se adapte à situação histórica concreta. O que há de científico no método marxista, a aplicação do método num trabalho rigoroso de análise da realidade, pouco lhes interessa. O que lhes interessa é simplesmente o que «certos» mestres disseram. O que «esses» mestres» disseram aceita-se e não se discute: é um dogma.
Por isso mesmo, há tantos partidos que se reclamam do marxismo. Distinguem-se em grande parte pela fé nos mestres que seguem. E mais: tal como as seitas religiosas, tratam de se digladiar ferozmente porque uns acham que é o S. Marcos que tem razão e o outro que é S. Mateus.
Assim, para o PCP (e partidos comunistas ditos estalinistas, que seguem os cânones traçados pela Internacional Comunista, durante os anos em que o déspota Estaline esteve no poder) só o(s) ideólogo(s) da Comissão Política dizem a última verdade e são depositários da teoria de tudo. Para eles só Lenine ¾ um Lenine devidamente interpretado pelas instituições estalinistas que vigoraram na URSS ¾ é o breviário de referência e que nunca se enganou. Em relação a Marx, embora não o digam abertamente, torcem o nariz. Idem, quanto a Rosa Luxemburgo. Quanto a Trotsky, tudo que ele disse está errado, sem qualquer apelo: Estaline dixit e encarregou-se de mandar assassinar Trotsky por causa das coisas.
Para os partidos trotskistas, algo de semelhante acontece (pese embora uma maior abertura para a discussão democrática). A diferença é que para eles tudo que Trotsky disse está certo; nunca se enganou. Lenine e Trostky para eles contêm a teoria de tudo e disseram as últimas verdades. Um dos actuais ideólogos trotskistas (o proeminente Alan Woods, presidente da International Marxist Tendency, com um portal que, na nossa opinião, a par de muito bons artigos contém outros muito maus) teve até o desplante de escrever um livro sobre ciências da natureza (sem ter qualquer preparação científica) onde, entre outros espantosos disparates, desmente a Teoria do Big-Bang porque acha que não é marxista. Cá temos o marxismo como meta-ciência (e, portanto, também como teoria de tudo) que soberanamente determina se as afirmações/determinações de outras ciências estão certas ou erradas (o físico e marxista Peter Mason escreveu um belo livro sobre isto: Science, Marxism and the Big Bang).
Não vale a pena estarmo-nos a preocupar com os maoístas porque estes nunca entenderam o que era o marxismo. É por isso que o «socialismo» deles é uma coisa só mesmo deles: «socialismo» à chinesa. Mas também andaram anos e anos a exibir fanaticamente o livro vermelho de Mao Tsé-Tung, antes de passarem a exibir o livro de Milton Friedman. Enfim, mudança de mestres.
Esta situação é sumamente tragi-cómica. Muitos daqueles que se reclamam do marxismo, isto é, de uma visão científica da realidade humana, falham logo redondamente no que concerne os requisitos de uma visão científica, qualquer que seja o seu objecto.
É como se alguém dissesse que Einstein nunca se enganou e disse a última verdade. Coisa que, como qualquer físico sabe, não é verdade, e o próprio Einstein foi o primeiro a admitir vários dos seus erros.
Mas não foi só Einstein (que, por sinal, defendeu muito do que os marxistas afirmavam). Marx declarou textualmente, numa carta a um amigo, que não era marxista! Tinha a noção clara de que apenas tinha traçado o início de um caminho. E, quer ele quer Engels, não se metiam a emitir apreciações cautelosas sobre outras áreas do conhecimento sem primeiro as terem estudado cuidadosamente.
Engels, em particular, dizia que uma teoria de tudo, que fornecesse um sistema explicativo e organizativo de toda a natureza (e os seres humanos e suas relações fazem parte da natureza) é uma quimera e um contra-senso. A partir do momento em que a humanidade se organizasse segundo tal sistema, cessaria a evolução humana e a evolução do conhecimento. Cessaria a História! Dizia também o seguinte a propósito das teorias de Eugen Dühring que se gabava de possuir a «verdade definitiva» ("O Anti-Dühring"): «Pelo contrário [isto é, ao invés de outros pensadores], Dühring oferece-nos teses que declara como verdades definitivas e sem apelo, a respeito das quais qualquer opinião contrária se considera previamente falsa; e como verdade definitiva possui em exclusivo um rigoroso método científico, carecendo qualquer outra verdade de valor científico. […] Quando se está na posse da verdade definitiva e sem apelo, como do único método científico e rigoroso, é fácil estar-se cheio de desprezo pela humanidade, extraviada no erro».
Quanto a Lenine, é também conhecido pela sua capacidade de trabalho e honestidade intelectual (deu-se ao trabalho de estudar durante muito tempo, cuidadosa e penosamente, certas teorias idealistas de alguns físicos alemães, antes de expor a sua opinião sobre o assunto no trabalho "Materialism and Empirio-Criticism"). É dele a bela frase «a matéria é inesgotável». Pois é. Tal como a matéria, as verdades também são e serão inesgotáveis.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte III (Síria)

III – Da Independência até à Primavera Árabe
(Ver Preâmbulo da Parte III no artigo «A Primavera Árabe. Parte III (Preâmbulo, Tunísia)

Síria
Para compreender a evolução política e social da Síria, depois da independência, é necessário compreender o papel do partido Ba'ath. O Ba'ath foi criado em meados dos anos quarenta por dois amigos sírios, Michel Aflaq (cristão ortodoxo) e Salah al-Din Bitar (muçulmano sunita). Os dois estudaram na Sorbonne em Paris e foram muito influenciados pelas doutrinas positivistas de Auguste Comte ([1]). O desconhecimento do marxismo parece ter sido total. Os slogans do Ba'ath eram (são) «unidade, liberdade, socialismo». Quanto à «unidade» é a velha ideia pan-árabe que está presente, com a união de todos os árabes, independentemente das classes, em torno da grande nação árabe. A ideia, portanto, de que a nação (e o nacionalismo) estão acima dos interesses de classe. Quanto à «liberdade», é a defesa de soberania, livre de interferências estrangeiras. Quanto ao «socialismo», trata-se, conforme os ba'athistas esclarecem, da defesa de um «socialismo árabe», diferente do socialismo europeu e marxista. De facto, o slogan «socialismo» só foi adoptado pelo Ba'ath no princípio dos anos 50, por influência de um médico, Wahib al-Ghanim ([2]), que advogava várias medidas que os marxistas também advogam. Inicialmente o Ba'ath era contra as ideias socialistas. Depois de adoptar a ideia do socialismo e de se amalgamar com o Partido Socialista Árabe (PSA) de al-Hawrani, o Ba'ath veio a dar ao «socialismo» uma interpretação muito limitada, entendendo-o apenas como uma mais justa repartição da propriedade fundiária e a adopção de medidas de diminuição da pobreza. O papel interventivo dos trabalhadores não consta deste «socialismo árabe», traduzindo, de facto, o peso reduzidíssimo da classe operária aquando da independência da Síria (e noutros países árabes influenciados pelo Ba'ath, como o Iraque); peso reduzido da classe operária que se manteve ainda durante muito tempo para além da independência. De forma consonante com o positivismo e a ideia de «unidade» o «socialismo árabe» sempre advogou a colaboração de classes e sempre teve uma atitude persecutória dos partidos marxistas. No fundo, o ba'athismo, tal como o nasserismo e o kadafismo, foi mais uma das muitas traduções políticas das posições ideológicas centristas, pequeno-burguesas, que influenciou a grande burguesia e os trabalhadores (principalmente os trabalhadores rurais), atraentes para os quadros médios do oficialato e, como tal, inspiradoras do «bonapartismo» dos regimes que surgiram na Síria, no Egipto e na Líbia ([3]).
O Ba'ath não se limitou a exercer a sua influência na Síria. Criou ramos e agências no Iraque, Líbano, Líbia, Jordânia e Iémen.
Os primeiros anos de independência da Síria foram conturbados ([4]). Os presidentes, todos oriundos dos militares e representando as mais diversas ideologias, sucederam-se no poder. Alguns, como Shukri al-Quwatli (foi presidente entre 1943 e 1949), apoiavam-se no «Bloco Nacional» uma aliança de partidos nacionalistas que lutavam por um desenvolvimento livre das dependências otomana e francesa ([5]). Quwatli foi deposto por um golpe da CIA em Março de 1949 e substituído por um fantoche da CIA, Husni al-Zaim, que tinha estado na prisão por corrupção. O golpe foi apoiado pelo Partido Social Nacionalista Sírio (PSNS), um partido de extrema direita, de inspiração fascista e nazista, que defendia (defende) uma suposta ancestralidade e superioridade da raça síria e advogava (advoga) uma política expansionista com vista à criação da «Grande Nação Síria», englobando a Palestina, o Líbano, a Jordânia, o Iraque, o Kuwait, o noroeste do Suez e do mar Vermelho, a península do Sinai e a ilha de Chipre ([6]). Zaim foi derrubado ao fim de 4 meses e meio e veio a ser sucedido por políticos e militares de tendência nacionalista (Hashim al-Atassi, Fawzi Selu, Adib al-Shishakli).
Em 1954 al-Shishakli foi deposto e foram realizadas eleições parlamentares em que pela primeira vez o Ba'ath ganhou representação bem como o PSNS e o Partido Comunista Sírio (PCS) ([7]). Entretanto, em 1952, Nasser tinha emergido como o líder carismático do Egipto e do renascimento árabe. O seu prestígio era enorme. Este facto teve três consequências:
1 - A fusão em 1958 da Síria com o Egipto, seguindo a ideia da grande nação pan-árabe, na chamada República Árabe Unida (RAU). Essa fusão foi solicitada pelo Ba'ath a Nasser. Este hesitou muito antes de aceitar a ideia e só a veio a aceitar depois da Síria concordar com a seguinte condição: dissolução de todos os partidos em favor de um único, modelado segundo a União Nacional Egípcia de 1956. Como consequência, o PCS entrou na clandestinidade. A breve trecho, porém, os sírios vieram a reconhecer que a RAU tinha sido para eles um mau negócio: na RAU era o Egipto que nomeava os dirigentes políticos e administrativos, com a antiga elite síria arredada do poder e sofrendo as consequências de um programa de reforma agrária teleguiado pelo Egipto. Em 1959 a Síria era mesmo governada por um colega de Nasser. A 29 de Setembro de 1961 o exército sírio revoltou-se e a Síria saiu da RAU. Era o fim do sonho pequeno-burguês do pan-arabismo.
2 – A criação de um comité militar secreto. Vários oficiais sírios ba'athistas tinham estadiado no Egipto e, à semelhança do movimento dos «oficiais livres», procederam à criação desse comité secreto. Um dos seus elementos era o major Hafez al-Assad de origem alauíta ([8]).
3 - O voltar de atenções do Ba'ath para a URSS, que fornecia o armamento do Egipto, além de ajudar com técnicos e equipamento na construção de infra-estruturas.

O fim da RAU em 1961 levou a cisões na Ba'ath e à saída dos elementos socialistas que reconstruíram o antigo PSA. A debilidade do Ba'ath foi colmatada através da sua militarização. Em vez de métodos electivos assistiu-se à instalação de militares do topo à base do Ba'ath, obedecendo a uma cadeia de comando de controlo autoritário. Em 8 de Março de 1963 o comité militar do Ba'ath com o apoio de oficiais sírios nasseristas apodera-se do poder e declara o «estado de emergência». Durante o período de 1963 a 1966 os militares do Ba'ath evoluem no sentido da concentração do poder: ainda em 1963 afastam os nasseristas e tornam o Ba'ath o único partido oficial; em 1966 a facção de esquerda saneia os fundadores do Ba'ath (Aflaq e al-Bitar que se refugiam no Ba'ath iraquiano) e separa o Ba'ath sírio do iraquiano.
Em 1966, a facção de esquerda pró-marxista do Ba'ath (liderada por Salah Jadid) lança um vasto programa de nacionalizações e de reforma agrária; condena os países árabes reaccionários e prega a guerra contra Israel. As condições materiais e a liderança da classe operária para as transformações socialistas faltavam, porém. A indústria era quase inexistente. Seja como for, as transformações económicas iniciadas em 1966 proporcionam um impressionante aumento do PIB per capita nos anos setenta (um crescimento de 336% durante os anos setenta! [9]; ver também figura abaixo) e uma melhoria notável das condições de vida dos trabalhadores (principalmente dos trabalhadores rurais): saúde e educação grátis, habitação subsidiada. Tudo isto granjeou um largo apoio popular ao Ba'ath.
A preto, a evolução do PIB per capita da Síria ([10]) em dólares americanos correntes. A magenta, o PIB per capita tendo em conta a taxa de inflação do dólar, logo fornecendo uma estimativa mais realista, próxima da do PIB per capita em paridade de poder de compra.

A derrota da Síria na guerra dos seis dias com Israel ameaçou a posição do então ministro da defesa Hafez al-Assad, levantando-se vozes no Ba'ath para o seu afastamento no próximo congresso do Ba'ath. Este, que representava a ala conservadora do Ba'ath ([11]), antecipou-se aos opositores. Em Novembro de 1970 lidera o golpe dito «correctivo» («correcção» da via socialista) que leva à prisão o presidente al-Atassi, trava a «transformação socialista» e restabelece relações com países árabes reaccionários como a Arábia Saudita.
Hafez al-Assad rapidamente assume a construção de um Estado autoritário, onde a filiação no Ba'ath era condição necessária para arranjar empregos e ascender na carreira. Estabelece uma nova Constituição. Instala-se rapidamente um clima de clientelismo, em que a clique militar em torno de Assad controla as empresas nacionalizadas. Em 1972 Assad cria a Frente Nacional Progressista (FNP), organização de fachada que alberga os partidos «legais» dispostos a submeter-se ao Ba'ath, incluindo o Partido Comunista Sírio (PCS) e o fascista PSNS. (O PCS estalinista vem a ter, como veremos, uma evolução simplesmente lamentável: cinde-se em duas facções, uma que vem a aliar-se ao fascista PSNS e outra que vem a tornar-se social-democrata pró-ocidental.) Por esta altura separa-se do Ba'ath Jamal al-Atassi (um socialista pan-árabe, parente do Presidente Nureddin al-Atassi) que forma a União Democrática Socialista Árabe, prontamente ilegalizada pelo regime.
Eis os feitos do regime «socialista» Hafez al-Assad, tão gabado por certa esquerda (incluindo o nosso PCP):
- Hafez mantém o «estado de emergência» declarado em 1963 (ver acima) que perdurará até 19 de Abril de 2011, já em plena insurreição popular. Qualquer oposição ao Ba'ath é proibida. Cinco das agências de segurança criadas por Hafez têm como missão controlar a oposição política. O estado de emergência significa que tribunais especiais julgam os delitos políticos sem quaisquer contemplações por direitos humanos. Os presos são regularmente torturados.
- Em 1976 o exército Sírio intervém na guerra civil do Líbano em apoio dos cristãos maronitas, a ala direita pró-israelita do Líbano. Durante a guerra do Líbano o Ba'ath e o fascista PSNS verificaram ter muitos pontos em comum, tendo lugar uma aproximação entre os dois! Colaboraram na liquidação de todos os movimentos progressistas. O regime temia, em particular, o contágio de esquerda proveniente do Líbano. A Síria só abandonou o Líbano em 1990 e, entretanto, os serviços secretos sírios trataram de liquidar figuras progressistas como Kamal Jumblat.
- Em 1980 Hafez restringiu severamente a actividade do PCS apesar de participar na FNP. O PCS (que sempre teve uma história lamentável) cindiu-se em dois: um, o PCS-(Bakdash), do nome do dirigente, continuou a colaborar com o Ba'ath dentro da FNP numa postura submissiva. Vê-lo-emos mais tarde a aliar-se ao fascista PSNS! O PCS-(unificado) veio a sair da FNP sofreu perseguições e acabou por se tornar um partido social-democrata. Enfim, uma história miserável de fraqueza ideológica e traição aos trabalhadores.
- Hafez al-Assad estimulou as rivalidades inter-étnicas e inter-religiosas («dividir para reinar») sob uma pretensa capa de «secularismo». O objectivo era legitimar o domínio da sua própria etnia (alauítas) juntamente com a dos cristãos, correspondendo conjuntamente a 20% da população, contra a oposição maioritária sunita ([12]). Em 1980 rebentaram revoltas de grupos muçulmanos em Alepo, Homs e Hama. O secular Hafez declarou-se defensor do Islão. Em 1982 a reaccionária Irmandade Muçulmana (IM) rebelou-se em Hama. Hafez aproveitou para os massacrar (entre 10 e 25 mil mortos e feridos). O massacre em Hama e noutras cidades foi de tal ordem que tornou impossível uma reconciliação com o sunitas. Hafez teve de abandonar a postura populista e governar pela força das armas.
- O regime procurou também, ao longo de vários anos, afastar os chefes tribais (sheiks) tradicionais, substituindo-os por chefes aliados a Hafez. Note-se que a organização tribal tem ainda hoje uma grande importância na Síria (constituem 50% da população, [13]), existindo confederações de tribos com milhões de pessoas. A maior parte das tribos abandonou o nomadismo (pastorícia) e estabeleceu-se em áreas suburbanas. Muitas das tribos acabaram por ter uma posição anti-regime: tinham as maiores taxas de desemprego e analfabetismo e nenhum acesso a cuidados de saúde ([14]).
- Hafez sempre se declarou contra o Ba'ath iraquiano e contra o Irão (apesar dos alauítas serem um ramo xiita; o Ba'ath veio a aliar-se só em anos recentes ao Irão). Na guerra da coligação liderada pelos EUA contra o Iraque em 1990 o socialista Hafez juntou-se à coligação (juntamente com outros estados árabes reaccionários) fornecendo apoio logístico e tropas de reserva.
- Hafez foi sempre inimigo da OLP. Durante um encontro com a OLP em 1976 referiu-se à Palestina como uma região da Síria, a Síria do Sul. Disse assim aos representantes palestinianos ([15]): «vocês não representam a Palestina tanto quanto eu. Não esqueçam isto: não existe povo palestiniano, entidade palestiniana, só existe a Síria! Vocês são parte integrante do povo sírio e a Palestina é parte integrante da Síria. Logo, somos nós, autoridades sírias, os verdadeiros representantes do povo palestiniano.»
- Uma vez no poder, o nepotismo instalou-se. Hafez preencheu todos os postos importantes da administração com irmãos, sobrinhos e elementos do mesmo clã alauíta. Os alauítas dominaram o complexo militar e, em particular, os serviços de segurança. Alguns elementos sunitas foram admitidos também na entourage desde que demonstrassem total lealdade a Hafez al-Assad ([2]).
- Todas as indústrias nacionalizadas passaram a ser geridas por uma pequena clique leal a al-Assad que se comporta como uma mafia. Os trabalhadores são proibidos de organizar sindicatos. Todas as organizações comunistas são suprimidas e perseguidas ([16]) apesar de nominalmente o PCS fazer parte da FNP! O PCS veio a tomar tantas posições oportunistas que acabou por perder a confiança dos trabalhadores. Entretanto, a economia que tinha experimentado um crescimento significativo durante os anos setenta, rapidamente estagna com os métodos de Assad e o PIB sofre um decréscimo brutal nos anos oitenta (ver figura acima). Já a partir de 1972 a travagem imposta ao programa da ala de esquerda do Ba'ath se fez sentir no aumento da desigualdade social. Em 1980 o sector privado representava já 73% do PIB ([17]). No que diz respeito à agricultura (um sector ainda hoje importante) revela um estudo ([18]) que a percentagem de rendimento para os trabalhadores era de 7,9% em 1963, 12,8% em 1970 e 5,1% em 1975. Isto é, tinha regredido.
A partir do início dos anos noventa o regime de Assad voltou-se abertamente para uma via capitalista de expansão do sector privado (de que se aproveitou a elite do regime) e abertura às corporações estrangeiras. As desigualdades sociais rapidamente aumentaram.
- O ponto forte da aliança sovieto-síria estabelecida por Hafez al-Assad consistiu no seguinte: o estabelecimento de um contrato com a URSS em 1971 nos termos do qual a URSS dispunha da importante base naval de Tartus (a sul de Latakia, capital do governorado alauíta) no mediterrâneo; a única de que dispunha a URSS no mediterrâneo. Em troca, a URSS forneceu armamento e perdoou ¾ da dívida síria.
*    *    *
Hafez al-Assad faleceu em Junho de 2000 e foi substituído (como na monarquia) pelo filho Bashar. No Verão de 2000 Bashar lançou uma campanha de abertura política, libertando 600 presos políticos e legalizando a IM. Constituíram-se grupos e fóruns de discussão, incluindo um movimento pró-reforma. Foi, porém, uma campanha de curta duração. Passado um ano, Bashar reassumiu o despotismo do pai, suprimindo o movimento pró-reforma e prendendo opositores. Em 2005 surgiu um novo movimento oposicionista que qualificava o regime de «autoritário, totalitário e cliquista»; os dirigentes foram presos e condenados a muitos anos de prisão, acontecendo o mesmo aos defensores dos direitos humanos. Entretanto, no mesmo ano, o fascista PSNS era legalizado e passou a ser o segundo maior partido da Síria ([19]).
Onde Bashar se destacou foi na entrega da economia ao sector privado, embarcando numa via neoliberal que liquidou o sector público e aumentou o saque de bens da Síria pela clique cliente de Bashar, clique extremamente corrupta ([20]), associada ao capital estrangeiro. Os serviços públicos degradam-se. Para dar um exemplo da entrega aos privados, o petróleo e gás foram entregues à Shell (Reino Unido), Total (França), National Petroleum Company (China) e Stoytangaz (Rússia). Um dos amigos próximos de Bashar, Rami Makhlouf, tornou-se um dos mais poderosos figurões no controlo da economia, controlando o investimento estrangeiro, a maior companhia de telecomunicações (Syriatel), o sector da construção, bancos, transportes aéreos e comércio de retalho. Bashar conseguiu também aliar a si a burguesia sunita urbana. Abd-al-Halim Khaddam, era um dos poucos sunitas da clique de Bashar; foi vice-presidente de 1984 a 2005. Era um dos duros «socialistas» que defendia com unhas e dentes o «estado de emergência». Pois bem: tornou-se imensamente rico e acabou por fugir para Paris em 2006, passando a «oposicionista» e (pasme-se!) «defensor dos direitos humanos», isto é, defensor dos direitos humanos dele à fortuna pessoal. Oposicionistas deste calibre foram todos para o estrangeiro entenderem-se com os imperialistas.
A contribuição da agricultura em 2011 para o PIB era de 17%; da indústria, 27%; e dos serviços, 56%. (Em Portugal as respectivas contribuições são 2,6%, 23% e 74,5%). Note-se o peso ainda importante do sector agrário.
Como já dissemos, a clique próxima de Bashar tornou-se imensamente rica (a firma Maserati abriu uma agência em Damasco em 2010 para fornecer carros aos ricos), contrastando com a terrível pobreza da população, por esta altura extremamente descontente com o Ba'ath. As relações de Bashar com o imperialismo foram oscilantes; o imperialismo ianque via-o com maus olhos dada a aproximação que, entretanto, tinha operado com o Irão e devido também ao caso do assassinato de Rafic Hariri, magnata e ex-primeiro-ministro libanês. Mas a partir de 2008 Bashar tinha-se entendido perfeitamente com o imperialismo; tinha visitado Sarkozy em Paris e os EUA tinham passado a considerar a Síria como um parceiro nas negociações israelo-palestinianas. Um enviado especial dos EUA tinha visitado Bashar em 2009 e em 2010 estava de novo a funcionar a embaixada americana em Damasco depois de um interregno de cinco anos.
Que se passava, entretanto, com a população trabalhadora? O último estudo sobre a pobreza na Síria foi realizado pela United Nations Development Programme em 2005; revelou que 11,4% da população (2 milhões) era extremamente pobre, não tinha acesso às necessidades básicas (alimentares e outras) e que a desigualdade social tinha aumentado entre 1997 e 2004 ([21]); A Síria tornou-se ainda mais desigual que o Egipto por volta de 2005 ([20]). Estimativas mais recentes apontavam para 13% de extremamente pobres e de entre 33% a 40% abaixo do limiar de pobreza (60% da mediana da distribuição do rendimento). A força de trabalho (cerca de ¼ da população) tinha uma taxa de desemprego da ordem de 10% (20% segundo outras fontes) sendo muito maior entre a juventude ([16, 22]). O Banco Mundial e o FMI expressaram, contudo, a sua satisfação com a ditadura de Bashar al-Assad (!) por esta ter cortado nos subsídios e serviços sociais. Os trabalhadores não dispunham de sindicatos independentes. A única central sindical (GFTU) estava controlada pelo Ba'ath sendo o respectivo presidente um membro do Ba'ath. Na prática os trabalhadores não dispunham de direito a greve nem de quaisquer direitos contratuais. O estatuto de cidadãos de 2.ª categoria das populações tribais não se tinha praticamente modificado.
Já dissemos que na Síria não existiam organizações políticas dos trabalhadores (apenas pequenos grupos na clandestinidade) e que os sindicatos eram controlados pelo governo. Para além disso, uma onda de greves em 1980-81 (espontâneas e sem apoio do PCS) tinha levado à prisão centenas de activistas sindicais dando um rude golpe à organização embrionária dos trabalhadores. A acrescentar a isto, temos que, segundo estimativas de 2004, de 600.000 empresas 500.000 empregavam menos de cinco trabalhadores ([20]). Isto é, os trabalhadores estavam em geral muito isolados em pequenos empresas. Segundo a mesma estimativa 60% das empresas de Damasco e Alepo tinham menos de 14 trabalhadores. Homs e Hama, importantes centros industriais, tinham 80% de empresas com mais de 14 trabalhadores.

Actividades económicas da Síria. Fonte: www.lib.utexas.edu, 1993.

O sector industrial empregava, em 2010, apenas 16% dos trabalhadores, enquanto o sector de serviços (bancos, seguros, serviços) empregava 67%. Os restantes 17% trabalhavam na agricultura. As duas únicas refinarias de petróleo eram em Banias e Homs (Baniyas, Hims, no mapa acima). A indústria têxtil estava concentrada em Alepo, Damasco, Homs e Hama. Para além destas cidades eram centros industriais importantes Latakia e Deir-az-Zor (Dair az-Zawar).
Na véspera da revolução continuava a vigorar no país o estado de emergência (em vigor desde 1963; ver acima) que restringia a liberdade de expressão, organização e associação. A Internet estava restringida; a wikipedia, YouTube, Facebook e Amazon bloqueadas ([23]). Certas etnias, como os Curdos eram considerados apátridas dentro do seu próprio país ([24]).

[1] O positivismo não é mais do que um «casamento» entre o materialismo e o idealismo (entre muitos que têm surgido ao longo da História). Defende que todo o conhecimento é relativo, querendo com isso significar que a «essência» dos fenómenos está fora do conhecimento humano. Um exemplo, em termos simples: para o positivista, se não existisse a humanidade com conhecimentos experimentais e parciais sobre a Terra, a Terra poderia nem sequer existir. Lenine expressa bem o que significa o positivismo na filosofia quando diz que o mesmo é «[…] um agnosticismo que nega a necessidade objectiva da natureza que existe antes e à margem de todo o «conhecimento» e de todo o homem […] uma astúcia lamentável, um desprezável partido centrista na filosofia, que confunde em cada problema isolado a tendência materialista e a idealista». O idealismo do positivismo leva, em política, à rejeição de  que existem interesses materialmente antagónicos entre as classes e a pregar a «solidariedade social», isto é, a colaboração de classes. Muitos dos grandes defensores teóricos do capitalismo são positivistas.
[2] John F Devlin (1991) The Baath Party: Rise and Metamorphosis. The American Historical Review, vol. 96, 5:1396-1407. Também vale a pena ler a wikipedia (versão inglesa) sobre o tema.
[3] Chama-se «bonapartismo» a uma ditadura militar (embora ornamentada por instituições civis parlamentaristas) que estabelece o «equilíbrio» entre os interesses conflituosos da burguesia e dos trabalhadores. O neologismo provém do papel desempenhado por Napoleão Bonaparte no período pós Revolução Francesa. A burguesia patrocina as soluções bonapartistas quando não vê outra saída face a dois perigos: o da reacção feudal-latifundiária e o da revolução das camadas mais desfavorecidas, incluindo a revolução proletária.
[4] A história da Síria entre 1936 e 1949 é complexa devido à rápida sucessão de presidentes e de governos, alguns de efémera duração. A Síria obteve um tratado de independência da França em 1936, o qual foi recusado pelo Parlamento francês. Entre 1940 e 1941 a Síria esteve sob controlo do governo francês de Vichy, colaboracionista com os nazis. De 1941 a 1943 teve vários presidentes que oscilavam entre alinhar-se com os turcos ou com o «Bloco Nacional» que propugnava uma via nacionalista. A wikipédia (versão inglesa) contém informação detalhada e, em grande parte, fidedigna sobre este período, incluindo as menções às interferências da CIA e dos EUA.
[5] Quwatli foi um lutador consequente da causa síria, tendo enfrentado as piores torturas nas prisões turcas e uma condenação à morte pelo governo francês.
[6] O PSNS tem uma estrutura hierárquica ao modo dos partidos fascistas, encimada por um chefe poderoso (princípio do führer). O emblema do PSNS tem semelhanças com a suástica. O hino é uma adaptação do Deutschland über alles. Vários historiadores concordam em caracterizar o PSNS como partido fascista.
[7] Uma boa descrição deste período encontra-se em: Mediawerkgroep Syrië. (Onafhankelijk Media en Ondersoekswergroep) : http://mediawerkgroepsyrie.files.wordpress.com/2012/04/de-bath-partij-1.pdf
[8] Os alauítas tinham-se distinguido como guerreiros esforçados ainda durante o protectorado francês. Seguidores de um ramo específico da religião xiita, tinham um forte sentimento autonomista. Tal como os drusos, formavam dentro da Síria como que uma espécie de elite militar. Os alauítas sempre enfrentaram a oposição religiosa de outras correntes muçulmanas (em particular dos sunitas) pois eram vistos como heréticos (para dar uma analogia, tal como os judeus vêem os cristãos e vice-versa).
[9] Ver Syria Economics na wikipédia (versão inglesa).

[10] World Macroeconomic Research:  http://kushnirs.org/macroeconomics/

[11] O pai de Hafez, Ali Sulayman, colaborou com a administração francesa tendo obtido um posto oficial. Em 1936 foi um de 36 notáveis alauítas a assinar uma carta dirigida ao primeiro-ministro francês dizendo que «O povo alauíta rejeitou a ligação à Síria e deseja permanecer sob protecção francesa». Por esta demonstração de coragem (?) foi denominado al-Assad («o leão») pela população da sua tribo.
[12] Aron Lund. 2012. Divided They Stand. Foundation for European Progressive Studies. The Olof Palme International Center.
[13] Letter from a Syrian Socialist. IMT, 25 de Março de 2011.
[14] Haian Dukhan Tribes and tribalism in the Syrian revolution. Open Democracy, Free Thinking of the World. 19 December 2012. http://www.opendemocracy.net/haian-dukhan/tribes-and-tribalism-in-syrian-revolution
[15] http://www.danielpipes.org/174/palestine-for-the-syrians
[16] Farshad Azadian, Basel Sulaiman (2012) In Defence of the Syrian Revolution: The Marxist position on the revolution ans Assad's so-called "anti-imperialism". IMT.
[17] Mousa Laqdani. Syria: Open ended general strike gains ground – a major clash is being prepared. IMT, 14/12/2011
[18] Hanna Batatu (1999) Syria's Peasantry, the Descendants of its Lesser Rural Nobles, and Their Politics. Princeton University Press.
[19] wikipedia (versão inglesa). Citado noutras fontes.
[20] Jonathan Maunder (2012) The Syrian Crucible, International Socialism, 135. A Transparência Internacional colocava a Síria em 69.ª posição em 2003 e em 93.ª posição em 2006 (escala de a 179; quanto mais alto na escala mais corrupto).
[21] A desigualdade social, medida pelo índice de Gini (valor no intervalo de 0 a 1 e tanto mais alto quanto maior a desigualdade), tina subido de 0,33 em 1997 para 0,37 em 2004.
[22] As estatísticas da Síria são escassas e tendenciosas (pró-regime).
[23] Karin Leukenfeld. Syria: A Historical Perspective on the Current Crisis. Maio de 2011. O estatuto discriminatório dos curdos na Síria é também referido noutras fontes.
[24] Várias fontes referem este problema. Aliás, não são só os curdos que levantam um problema nacional não resolvido na Síria.