quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Sete mitos sobre a URSS



Em prol desse esforço apresentamos abaixo a tradução do artigo «Sete mitos sobre a URSS» da autoria de Stephen Gowans, escritor canadiano e activista político de esquerda que reside em Ottawa, cujos artigos podem ser encontrados em vários sites heterodoxos, comunistas e não, da Internet (Counterpunch, Media Monitors, ML-Today, etc.) e no seu próprio site, What's Left?

Sete mitos sobre a URSS
Stephen Gowans
23 de Dezembro de 2013
Original:
https://gowans.wordpress.com/2013/12/23/seven-myths-about-the-ussr/

A União Soviética foi dissolvida há 22 anos, em 26 de Dezembro de 1991.


Acredita-se por todo o lado fora das antigas repúblicas da URSS que os cidadãos soviéticos desejavam isso fervorosamente; que Estaline era odiado como um déspota infame; que a economia socialista da URSS nunca funcionou; e que os cidadãos da antiga União Soviética preferem a vida que têm hoje sob a democracia capitalista, aquela que, no linguajar febril de jornalistas, políticos e historiadores ocidentais, era o governo repressivo e ditatorial de um estado de partido único que presidia a uma economia socialista esclerótica, problemática e impraticável.

Nenhuma dessas crenças é verdadeira.


Mito 1. A União Soviética não tinha qualquer apoio popular.

Em 17 de Março de 1991, nove meses antes do fim da União Soviética, os cidadãos soviéticos foram às urnas para votar num referendo que perguntava se eram a favor da preservação da URSS. Mais de três quartos votaram sim. Longe de favorecer a dissolução da União, a maioria dos cidadãos soviéticos queria preservá-la. [1]


Mito 2. Os russos odeiam Estaline.


Em 2009, Rossiya, um canal de TV russo [pró-capitalista -- JMS], passou três meses a inquirir mais de 50 milhões de russos para descobrir quem, na opinião dos inquiridos, eram os maiores russos de todos os tempos. O príncipe Alexander Nevsky, que repeliu com sucesso uma tentativa de invasão ocidental da Rússia no século XIII, surgiu em primeiro lugar. O segundo lugar foi para Pyotr Stolypin, que serviu como primeiro-ministro do czar Nicolau II, e promulgou reformas agrárias. Em terceiro lugar, atrás de Stolypin em apenas 5.500 votos, estava Joseph Estaline, um homem que os líderes de opinião ocidentais rotineiramente descrevem como um ditador implacável, com o sangue de dezenas de milhões nas suas mãos. [2] Ele pode ser denegrido no Ocidente, o que não é de surpreender já que nunca foi do agrado das grandes corporações que dominam o aparaelho ideológico do Ocidente, mas, segundo parece, os russos têm uma visão diferente -- que não alinha com a noção de que os russos foram vitimados, em vez de elevados, pela liderança de Estaline.


Num artigo de Maio/Junho de 2004 da Foreign Affairs [revista teórica do imperialismo americano -- JMS] (Flight from Freedom: What Russians Think and Want [Fuga da Liberdade: o que os Russos Pensam e Querem]), o historiador anti-comunista de Harvard, Richard Pipes, citou um inquérito no qual os russos foram solicitados a listar os 10 maiores homens e mulheres de todos os tempos. Os inquiridores procuravam personagens relevantes de qualquer país, e não apenas dos russos. Estaline ficou em quarto lugar, atrás de Pedro o Grande, Lenine e Pushkin [grande poeta russo -- JMS]... o que muito irritou Pipes. [3]


Mito 3. O socialismo soviético não funcionou.


Se isso é verdade, então o capitalismo, por qualquer medida igual, é um fracasso indiscutível. Desde a sua criação em 1928, até ao ponto em que foi desmantelado em 1989, o socialismo soviético nunca uma vez, excepto durante os anos extraordinários da Segunda Guerra Mundial, tropeçou em recessão, nem deixou de proporcionar pleno emprego. [4] Qual foi a economia capitalista que sempre cresceu, incessantemente, sem recessão, e gerando empregos para todos, num período de 56 anos (o período durante o qual a economia soviética era socialista e o país não estava em guerra, 1928-1941 e 1946-1989)? Além disso, a economia soviética cresceu mais rapidamente do que as economias capitalistas que estavam num igual nível de desenvolvimento económico quando Estaline lançou o primeiro plano de cinco anos em 1928 -- e mais rapidamente que a economia dos EUA na maior parte da sua existência como sistema socialista. [5] Certo, a economia soviética nunca alcançou ou ultrapassou as economias industriais avançadas do núcleo capitalista, mas iniciou a corrida mais atrás; não foi ajudada, como ocorria nos países ocidentais, por histórias de escravidão, pilhagem colonial e imperialismo económico; e foi incessantemente objecto das tentativas ocidentais, e especialmente dos EUA, de sabotá-la. Foi particularmente prejudicial ao desenvolvimento económico soviético a necessidade de desviar recursos materiais e humanos da economia civil para a militar, para enfrentar o desafio da pressão militar ocidental. Foi a Guerra Fria e a corrida armamentista, que enredaram a União Soviética em batalhas contra um inimigo mais forte, e não a propriedade estatal e o planeamento, que impediram a economia socialista de ultrapassar as economias industriais avançadas do Ocidente capitalista. [6] E, no entanto, apesar dos incansáveis ​​esforços do Ocidente para incapacitá-la, a economia socialista soviética produziu um crescimento positivo em todo e qualquer ano sem guerra da sua existência, proporcionando uma existência materialmente segura para todos. Qual a economia capitalista que pode reivindicar sucesso igual?


Mito 4. Agora que passaram por isso, os cidadãos da antiga União Soviética preferem o capitalismo.


Pelo contrário, preferem o planeamento estatal do sistema soviético, isto é, o socialismo. [O autor usa aqui uma definição «curta» de socialismo -- JMS] Inquiridos numa sondagem recente sobre o sistema socio-económico que preferem, os russos responderam [7]:


• Planeamento e distribuição estatais, 58%
• Propriedade e distribuição privadas, 28%
• Difícil dizer, 14%
• Total, 100%

Pipes cita uma sondagem na qual 72% dos russos «disseram que queriam restringir a iniciativa económica privada». [8]

Mito 5. Vinte e dois anos depois, os cidadãos da antiga União Soviética vêem o fim da URSS como mais benéfico do que prejudicial.

Errado de novo. De acordo com uma recém divulgada sondagem Gallup, por cada cidadão de 11 ex-repúblicas soviéticas, incluindo Rússia, Ucrânia e Bielorrússia, que acha que o colapso da União Soviética beneficiou o seu país, dois acham que causou danos. E os resultados são mais fortemente inclinados para a visão de que o rompimento foi prejudicial entre aqueles com 45 anos ou mais, ou seja, as pessoas que conheciam melhor o sistema soviético. [9]


De acordo com outra pesquisa citada por Pipes, três quartos dos russos lamentam a morte da União Soviética [10] – coisa que dificilmente se pensaria de pessoas libertadas de um estado retratado como alegadamente repressivo e com supostamente uma economia artrítica e pesada.


Mito 6. Os cidadãos da ex-União Soviética estão melhor hoje.


Alguns seguramente estão. Mas estará a maioria? Dado que preferem mais o antigo sistema socialista ao actual capitalista, e pensam que o rompimento da URSS fez mais mal do que bem, podemos inferir que a maioria não está melhor -- ou pelo menos, que não se vêem como tal. Esta opinião é confirmada, pelo menos no que diz respeito à esperança de vida. Num artigo na prestigiada revista médica britânica The Lancet, o sociólogo David Stuckler e o investigador médico Martin McKee mostram que a transição para o capitalismo na antiga URSS precipitou uma queda acentuada na esperança de vida e que «só pouco mais de metade dos ex-países comunistas recuperaram os seus níveis de esperança de vida pré-transição.» A expectativa de vida masculina na Rússia, por exemplo, era de 67 anos em 1985, sob o comunismo. Em 2007, foi de menos de 60 anos. A esperança de vida caiu cinco anos entre 1991 e 1994. [11]


A transição para o capitalismo causou na altura incontáveis ​​mortes prematuras -- e continua a causar uma taxa de mortalidade maior do que previsivelmente teria prevalecido sob o sistema socialista (mais humano). (Um estudo de 1986 de Shirley Ciresto e Howard Waitzkin, baseado em dados do Banco Mundial, concluiu que as economias socialistas do bloco soviético produziam resultados mais favoráveis ​​em medidas de qualidade de vida física, incluindo esperança de vida, mortalidade infantil e ingestão calórica, do que as economias capitalistas do mesmo nível de desenvolvimento económico, e tão boas quanto as economias capitalistas de um nível mais alto de desenvolvimento. [12]

No que diz respeito à transição de um estado de partido único para uma democracia multipartidária, Pipes aponta para uma pesquisa que mostra que os russos vêem a democracia como uma fraude. Mais de três quartos acreditam que «a democracia é uma fachada para um governo controlado por cliques de ricos e poderosos». [13] Quem disse que os russos não são perspicazes?


Mito 7. Se os cidadãos da antiga União Soviética realmente quisessem um retorno ao socialismo, votariam nisso.


Se isso fosse assim tão simples. Os sistemas capitalistas são estruturados para fornecer políticas públicas que interessam aos capitalistas, e não o que é popular, se o que é popular é contra os interesses capitalistas. Obamacare à parte, os Estados Unidos não têm seguro de saúde público completo [um SNS -- JMS]. Porque razão? Segundo as sondagens, a maioria dos americanos quer isso. Então, porque não votam nele?


A resposta, claro, é que existem poderosos interesses capitalistas, principalmente companhias de seguros privadas, que usam a sua riqueza e conexões para bloquear uma política pública que diminuiria os seus lucros. O que é popular nem sempre, ou nem mesmo frequentemente, prevalece em sociedades onde aqueles que detêm e controlam a economia podem usar a sua riqueza e conexões para dominar o sistema político, para vencer em disputas que colocam os seus interesses de elite [de facto, de classe -- JMS] contra os interesses das massas. Conforme escreve Michael Parenti,

O capitalismo não é apenas um sistema económico, mas toda uma ordem social. Uma vez enraizado não é «votado fora» por meio da eleição de socialistas ou comunistas. Eles podem ocupar cargos públicos, mas a riqueza da nação, as relações básicas de propriedade, a lei orgânica, o sistema financeiro e a estrutura da dívida, juntamente com os media nacionais, o poder policial e as instituições do Estado [já] foram reestruturadas a nível fundamental. [14]


É muito mais provável que um retorno russo ao socialismo aconteça da maneira como aconteceu na primeira vez, através de revolução e não de eleições -- e as revoluções não acontecem simplesmente porque as pessoas preferem um sistema melhor ao que têm actualmente. As revoluções acontecem quando a vida não pode mais ser vivida da maneira antiga -- e os russos não alcançaram o ponto em que a vida como é vivida hoje não é mais tolerável.


Curiosamente, uma sondagem de 2003 perguntou aos russos como reagiriam se os comunistas tomassem o poder. Quase um quarto apoiaria o novo governo, um em cada cinco colaboraria, 27% aceitariam, 16% emigrariam e apenas 10% resistiriam activamente. Por outras palavras, para cada russo que se opusesse activamente a um golpe comunista, quatro apoiá-lo-iam ou colaborariam com ele, e três aceitá-lo-iam [15] – não esperaríamos que fosse assim se pensássemos, como nos disseram ser, que os russos estão contentes por ter escapado ao fardo do governo comunista.


Assim, o falecimento da União Soviética é lamentado pelo povo que conhecia a URSS em primeira mão (não por jornalistas, políticos e historiadores ocidentais que conheciam o socialismo soviético apenas pelo prisma de sua ideologia capitalista). Agora que tiveram mais de duas décadas de democracia multipartidária, iniciativa privada e uma economia de mercado, os russos não acham que essas instituições são as maravilhas que os políticos e os meios de comunicação de massa ocidentais consideram ser. A maioria dos russos preferiria um retorno ao sistema soviético de planeamento estatal, isto é, ao socialismo.


Mesmo assim, estas realidades são escondidas por detrás de uma tempestade de propaganda, cuja intensidade aumenta a cada ano de aniversário do óbito da URSS. Querem que acreditemos que onde foi tentado, o socialismo foi popularmente desdenhado e nada deu ao povo -- embora nenhuma destas afirmações seja verdadeira.


É claro que não surpreende as visões anti-soviéticas terem status hegemónico no núcleo capitalista. A União Soviética é ultrajada por quase todos no Ocidente: pelos trotskistas, porque a URSS foi construída sob a liderança de Estaline (e não dos seus homens); pelos social-democratas, porque os soviéticos abraçaram a revolução e rejeitaram o capitalismo; pelos capitalistas, por razões óbvias; e pelos meios de comunicação de massa (que são propriedade dos capitalistas) e as escolas (cujos currículos, orientação ideológica e investigação política e económica são fortemente influenciados por eles).


Assim, no aniversário da morte da URSS, não devemos surpreender-nos por descobrir que os inimigos políticos do socialismo teriam de apresentar uma visão da União Soviética que está em desacordo com o que aqueles no terreno realmente vivenciaram, com o que uma economia socialista realmente realizou, e com o que aqueles privados dela realmente querem.


Referências: 


1.”Referendum on the preservation of the USSR,” RIA Novosti, 2001,http://en.ria.ru/infographics/20110313/162959645.html
2. Guy Gavriel Kay, “The greatest Russians of all time?” The Globe and Mail (Toronto), January 10, 2009.
3. Richard Pipes, “Flight from Freedom: What Russians Think and Want,” Foreign Affairs, May/June 2004.
4. Robert C. Allen. Farm to Factory: A Reinterpretation of the Soviet Industrial Revolution, Princeton University Press, 2003. David Kotz and Fred Weir. Revolution From Above: The Demise of the Soviet System, Routledge, 1997.
5. Allen; Kotz and Weir.
6. Stephen Gowans, “Do Publicly Owned, Planned Economies Work?” what’s left, December 21, 2012.
7. “Russia Nw”, in The Washington Post, March 25, 2009.
8. Pipes.
9. Neli Espova and Julie Ray, “Former Soviet countries see more harm from breakup,” Gallup, December 19, 2013, http://www.gallup.com/poll/166538/former-soviet-countries-harm-breakup.aspx
10. Pipes.
11. Judy Dempsey, “Study looks at mortality in post-Soviet era,” The New York Times, January 16, 2009.
12. Shirley Ceresto and Howard Waitzkin, “Economic development, political-economic system, and the physical quality of life”, American Journal of Public Health, June 1986, Vol. 76, No. 6.
13. Pipes.
14. Michael Parenti, Blackshirts & Reds: Rational Fascism and the Overthrow of Communism, City Light Books, 1997, p. 119.
15. Pipes.