segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A ditadura da UE | The EU dictatorship

A UE é – e sempre foi desde a sua origem -- um organismo supranacional de gestão e compatibilização dos interesses dos monopólios europeus. São os interesses dos monopólios que determinam as directivas económico-financeiras, as alegadas políticas “sociais”, os fundos de vários tipos, incluindo os ditos de “coesão” – numa UE onde a coesão é cada vez menor --, e regulamentos em várias áreas. O Tribunal da UE e o BCE, instrumentos de coerção da UE, estão também submetidos aos interesses dos monopólios.

Nas cúpulas da UE – isto é, os comissários da CE, as lideranças do Tribunal da UE e do BCE e de outras organizações menores e dependentes – encontram-se os testas-de-ferro dos monopólios europeus. Esses testas-de-ferro operam articuladamente com os chefões dos monopólios, em especial com os chefões do capital financeiro.

Esses funcionários de cúpula, não eleitos e não prestando contas a ninguém – a não ser, naturalmente, aos chefões dos monopólios – impõem como têm de viver os muito milhões, a esmagadora maioria, das populações trabalhadoras europeias. Isto é, para as massas trabalhadoras a UE é uma ditadura.

A “democracia” da UE é só democracia para a grande burguesia monopolista e seus serventuários, que encontram nas cúpulas da UE as arenas onde “democraticamente” defendem e procuram compatibilizar os seus interesses. É certo que existem eleições para o parlamento europeu (PE), mas as populações estão afastadas e na ignorância do que lá se passa e mais do que isso: esse parlamento não manda nada.

Dado ser uma ditadura dos monopólios a UE é irreformável num sentido democrático para as massas populares.

O PE é meramente uma máscara “democrática” destinada a anestesiar a opinião pública, a percepção das massas trabalhadoras. A única utilidade que a esquerda consequente pode encontrar no PE é usá-lo para arrancar as massas trabalhadoras da anestesia; paradenunciar publicamente todas as manobras anti-democráticas, fascizantes, de infracção de direitos, da deriva militarista, da reescrita da História, e das políticas anti-povo, que são prática sistemática dos serventuários da ditadura do supranacional capitalismo monopolista de estado da UE.

Um trabalho de interesse sobre este tema é: The EU, Brexit and class politics  de Robert Griffiths, Secretário-Geral do Partido Comunista da Grã-Bretanha. Apresentamos a seguir a tradução das cinco primeiras secções deste trabalho que são as de interesse mais geral. (As outras tratam da questão específica do Brexit.) O trabalho original encontra-se aqui.
The EU is -- and has always been since its inception -- a supranational organization for managing and harmonising the interests of European monopolies. It is the interests of the monopolies which determine the economic and financial directives, the alleged "social" policies, the various types of funds, including the so-called "cohesion" funds -- in an EU where cohesion is less and less – and regulations in several areas. The EU Court and the ECB, EU instruments of coercion, are also subject to the interests of monopolies.

At the EU top – i.e. EC Commissioners, leaderships of the EU Court and the ECB and of other lesser and dependent bodies -- stand the fronts of the European monopolies. These fronts operate in co-ordination with the big bosses of the monopolies, especially with the big bosses of financial capital.

These unelected and unaccountable officials -- except, of course, with respect to the monopolist big bosses -- enforce upon the many millions, upon the overwhelming majority of the European working populations how they are compelled to live. Therefore, the EU is a dictatorship for the masses of workers.

The "democracy" of the EU is only democracy for the monopolist big bourgeoisie and their servants, which finds in the EU heights the arenas where they “democratically” defend and seek the co-ordination of their interests. It is true that there are elections for the European Parliament (EP), but the people are far away and in ignorance of what goes on there. Furthermore, this parliament does not rule anything at all.

Since it is a dictatorship of the monopolies the EU is unreformable in a democratic sense for the popular masses.

The EP is merely a “democratic” mask destined to anaesthetise the public opinion, the perception of the masses of workers. The only utility that the consequent left can find in the EP is by using it to awake the working masses out of the anaesthesia; by publicly denouncing all its anti-democratic, pro-fascist manoeuvres, the infringement of rights, the militarist trend, the rewriting of history, and the anti-people policies, which are systematic practice of the servants of the dictatorship of the EU supranational state's monopoly capitalism.

A work of interest on this theme is: The EU, Brexit and class politics by Robert Griffiths, General Secretary of the Communist Party of Britain. This work can be found here. (We present below the translation into Portuguese of the first five sections of this work which are those of more general interest. The other ones deal with the specific issue of the Brexit.)


A UE, Brexit e política de classe

Robert Griffiths

(Fevereiro de 2018)

A Guerra Fria nas Origens da União Europeia
Adesão da Grã-Bretanha às Comunidades Europeias
Uma Crónica dos Tratados da UE
O Carácter de Classe da UE
Crise Financeira e 'Troika”

A Guerra Fria nas Origens da União Europeia

Até meados da década de 1980, a maior parte do movimento trabalhista e da esquerda na Grã-Bretanha opunha-se à adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) ou "Mercado Comum", o precursor da União Europeia (UE). A esquerda via a CEE como anti-democrática, anti-classe trabalhadora e projectada para servir os interesses das grandes empresas, bloqueando o caminho para o socialismo.


A análise da maior parte da esquerda trabalhista, dos principais sindicatos e do Partido Comunista erra que a CEE surgira como um projecto anti-socialista no início da Guerra Fria, na segunda metade da década de 1940.

O primeiro componente da UE -- a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) -- foi criado em 1951. Tinha como finalidade coordenar o renascimento dos monopólios industriais pré-guerra da França, Alemanha, Bélgica e Luxemburgo num mercado interno sujeito a altas barreiras tarifárias. Com o tempo, essas corporações gigantes poderiam novamente competir contra os monopólios do carvão e do aço dos EUA.

Hoje esquece-se frequentemente que a CECA se destinava principalmente a construir e fortalecer a base económica de uns Estados Unidos da Europa capitalistas com as suas próprias dimensões políticas e militares; uma união para deter o avanço do socialismo e a esquerda não só na Europa Oriental, mas também na Europa Ocidental, onde os partidos comunistas tinham emergido da Segunda Guerra Mundial imensamente reforçados pelo seu papel na resistência antifascista na França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Itália.

Lenine previu essa possibilidade em meados da guerra imperialista de 1914-1918. Também viu a contradição no âmago de tal projecto. Os monopólios capitalistas de cada país exercem o poder político através do seu próprio Estado nacional ou -- no caso da Grã-Bretanha -- multinacional. O poder do Estado serve os interesses comuns destas corporações monopolistas, desde logo na competição contra os capitalistas e estados de outros países

No entanto, embora essa contradição [da competição] não possa ser abolida, ela pode ser moderada quando as classes capitalistas das potências imperialistas rivais compartilham um objectivo comum. Conforme Lenine expressou no seu artigo "Acerca do slogan dos Estados Unidos da Europa" (1915):

Do ponto de vista das condições económicas do imperialismo -- isto é, da exportação de capitais e da divisão do mundo pelas potências coloniais "avançadas" e "civilizadas" -- os Estados Unidos da Europa, sob o capitalismo, são ou impossíveis ou reaccionários ... Claro, acordos temporários são possíveis entre capitalistas e entre estados. Nesse sentido, uns Estados Unidos da Europa são possíveis como acordo entre capitalistas europeus, mas para que fim? Apenas com a finalidade de, em conjunto, suprimir o socialismo na Europa; de, em conjunto, proteger o saque colonial contra o Japão e a América.

Mesmo antes da CECA, a maioria dos seus estados membros fundadores (excepto a Alemanha Ocidental) tinha inaugurado a OTAN em 1949, sob o domínio dos EUA. Logo depois, políticos franceses de direita avançaram propostas para formar uma Comunidade Europeia de Defesa. De acordo com isso, os seis Estados da CECA, incluindo a Alemanha Ocidental, assinaram o Tratado de Paris em 1952. Os mesmos países elaboraram planos para uma Comunidade Política Europeia. Porém, os deputados franceses comunistas e gaullistas rejeitaram em Agosto de 1954 o tratado da Comunidade Europeia de Defesa e logo depois o projecto da Comunidade Política entrou em colapso.
A Alemanha Ocidental foi rearmada e admitida na OTAN em 1955, o que provocou a União Soviética e seus aliados europeus a formar o Pacto de Varsóvia.

Após a derrota dos seus planos de união militar e política da Europa Ocidental em 1954, os partidos de direita e social-democratas decidiram concentrar-se na criação da Comunidade Económica Europeia (CEE). Mas nunca desistiram do grande projecto original de construção de uns Estados Unidos da Europa capitalistas e militaristas.

A CEE foi fundada em 1957 pelo Tratado de Roma, com os seus princípios fundamentalistas exigindo a «livre circulação» do capital, bens e serviços e do trabalho através de um mercado comum europeu. Barreiras tarifárias elevadas limitariam as importações para o Mercado Comum de economias rivais, com excepção de alimentos e matérias-primas específicas de antigas colónias e semi-colónias europeias.

Na mesma altura, em 1957, os Estados da CECA e da CEE instituíram a Comunidade Europeia da Energia Atómica ("Euratom") para desenvolver a energia nuclear. Embora tenha sido alegado que seria um projecto para produzir energia mais limpa, segura e barata para os civis, sabemos agora que era principalmente para produzir urânio enriquecido e plutónio para armas nucleares.

Estes três organismos [CECA, CEE, Euratom] vieram a juntar-se em 1965 nas Comunidades Europeias (CE).

Adesão da Grã-Bretanha às Comunidades Europeias

O governo Tory [Conservador] de Edward Heath levou a Grã-Bretanha a entrar na CE em 1973 sem referendo (ao contrário da Irlanda e da Dinamarca -- ou da Noruega, que rejeitou a entrada). O Partido Trabalhista, juntamente com a maioria dos sindicatos, opôs-se à união da Grã-Bretanha, e por isso o governo trabalhista de Harold Wilson venceu duas eleições em 1974 com promessas num manifesto de renegociar a adesão à CE e colocar a questão para o povo decidir.

Na campanha do referendo de 1975, a TUC [Trades Union Congress, confederação sindical], a maioria dos sindicatos, a esquerda trabalhista e o Partido Comunista apelaram aos eleitores que rejeitassem a CE por ser um "clube dos patrões". Para o Plaid Cymru [partido nacional de Gales] e o SNP [partido nacional escocês], em particular, a CE era um aparelho centralista não democrático em que o País de Gales e a Escócia seriam marginalizados. Wilson e a maioria de seu gabinete juntou-se aos conservadores, liberais, grandes empresas e à imprensa de direita para fazer campanha para votar por ficar [na CE], e ganharam.

Nos dez anos seguintes, materializaram-se muitos dos temores sobre a adesão à CE. As importações irrestritas desempenharam um papel importante no enfraquecimento das indústrias e dos empregos, enquanto o levantamento dos controlos de capital pelo governo de Margaret Thatcher, em 1979, agravou a crise do sub-investimento interno.

No geral, entre 1973 e 2007 (na véspera do crash e da recessão), a contribuição da indústria da Grã-Bretanha para o seu resultado económico caiu para quase metade, para 19%  a preços constantes (e apenas 12% se a inflação extra no sector de serviços for tomada em conta). O número de empregos na indústria caiu de 7,4 milhões para 3 milhões. Foi de longe a mais acentuada descida de todas as economias capitalistas do G7. Tendo tido um superávit comercial ao longo da maioria dos anos de 1950 e 1960, o défice comercial da Grã-Bretanha com o resto da Europa aumentou desde que se juntou à CE, de £ 2 mil milhões em 1974 para £ 82 mil milhões em 2016.

As políticas regionais mais eficazes da Grã-Bretanha, que restringiam o desenvolvimento de actividades industriais e administrativas nas áreas mais prósperas, direccionando o capital para as mais carenciadas, foram desmanteladas em conformidade com os princípios da "livre circulação" da CE.

O sistema britânico de apoio agrícola introduzido pelo governo do Partido Trabalhista no pós-guerra, baseado em subsídios à produção e investimento foi desmantelado, empobrecendo muitos pequenos agricultores e suas comunidades locais. Em vez disso, a Política Agrícola Comum da CE comprou produtos agrícolas "excedentários" e armazenou-os ou destruiu-os, o que, juntamente com as altas tarifas contra as importações da Comunidade Britânica, levou a preços mais altos nas lojas.

Por outro lado, receberam acesso preferencial as importações agrícolas e de minérios das colónias britânicas e de outros países europeus na África, Caribe e Pacífico, mantendo-as no seu papel subserviente como produtores primários super-explorados, enquanto os bens manufacturados de países em desenvolvimento foram mantidos de fora.

A Comissão da UE e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) vieram até a dissolver, através do governo Tory em 1994, o Milk Council Board [Administração da Junta do Leite], deixando os agricultores e consumidores de lacticínios à mercê dos gigantes dos supermercados.

A adopção do Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA) foi outra condição para ingressar na CE. Os preços no consumidor aumentaram à medida que o IVA foi alargado a mais bens e serviços e as taxas do IVA aumentadas.

Não surpreende, portanto, que o apoio público da Grã-Bretanha à adesão à CE tenha diminuído nos anos após a entrada em 1973. Todavia, paradoxalmente, a oposição à CE no movimento trabalhista britânico esboroou-se em meados da década de 1980.

Esta reviravolta ocorreu no contexto da derrota, recuo e desmoralização quando, na sequência das vitórias dos Tories de Thatcher nas eleições gerais de 1979, 1983 e 1987, foram privatizados os serviços públicos, reduzidos os impostos para os ricos e grandes empresas, dominadas as greves dos trabalhadores das siderurgias, dos mineiros, professores e tipógrafos e introduzida uma barragem de leis anti-sindicais.

Foi argumentado pelos media e comentaristas eleitorais -- e mesmo por alguns até então intelectuais de esquerda -- que nunca mais haveria um governo de maioria trabalhista na Grã-Bretanha. Era impossível -- assim alegaram eles -- não apenas politicamente, mas também aritmeticamente. O chamado "thatcherismo" era quase invencível e, diziam-nos, só poderia ser posto em xeque por uma aliança eleitoral entre os trabalhistas com os ferrenhos liberais pró-CE e o Partido Social-Democrata (uma organização pró-CE, pró-OTAN e anti-socialista que saiu do Partido Trabalhista em 1981).

Enquanto muitos líderes e activistas sindicais rejeitaram qualquer aliança eleitoral, começaram a olhar para a CE e a sua perspectiva de "Europa Social" como a única possível, uma alternativa progressiva face ao governo Tory. O Presidente da Comissão Europeia Jacques Delors (que tinha sido um político de direita do Partido Socialista da França) disse aos delegados da Conferência da TUC em Bournemouth em 1988 que os sindicatos britânicos tinham na CE e na sua Comissão Europeia um firme aliado.

A maioria dos sindicatos caiu nas lisonjas de Delors, apesar da sua prometida dimensão da "Europa Social” de um "Mercado Único" europeu não ter valido o papel em que foi escrita. O sindicato dos trabalhadores dos governos locais, NALGO, o sindicato dos trabalhadores dos transportes (Transport & General) e alguns sindicatos menores permaneceram cépticos, mas não puderam impedir a TUC e o partido trabalhista de aderir à UE (como veio a ser chamada a CE em 1993).

Contudo, até mesmo antes da conversão do movimento trabalhista britânico em 1988, o carácter de classe capitalista da UE estava a tornar-se mais claro.

Foi por isso que a primeiro-ministro Thatcher defendeu o Acto Único Europeu (AUE) em 1986, que definiu os passos concretos para a União Económica e Monetária (UEM), um mercado interno único europeu e o desenvolvimento de uma política externa comum da UE. O AUE também acabou com o direito de veto dos Estados membros em áreas de tomada de decisões da UE, prometendo políticas para promover o desenvolvimento regional, o meio ambiente, a saúde e a segurança no trabalho.

Thatcher, ao mesmo tempo que entendia que qualquer chamada "Europa Social" entregaria muito pouco aos trabalhadores e suas famílias, considerava as menores concessões sociais como indesejáveis ​​e desnecessárias. Ao contrário de muitos políticos conservadores e cristão-democratas da França, Alemanha e Itália, a sua abordagem às relações de trabalho, sindicalismo e política social era mais de confronto de classes do que de colaboração de classes.

Thatcher também não percebeu todas as implicações para a soberania da Grã-Bretanha da tomada de decisão centralizada da UE e o compromisso do AUE com uma "união sempre mais forte". Só quando a agenda de Delors para os Estados Unidos da Europa se tornou mais clara, expressou as suas preocupações em Bruges, poucas semanas depois da sua aparição na TUC e do seu "Não! não! Não!” no discurso nos Comuns em Outubro de 1990. Poucas semanas depois, foi expulsa do 10 de Downing Street por insistência dos rivais conservadores pró-UE e dos doadores do mundo de negócios para os conservadores pró-UE.

Estes acreditavam que o tipo de União Europeia previsto sob o AUE poderia resolver a contradição principal levantada pelo sufrágio universal -- entre a democracia e o capitalismo monopolista. A massa de eleitores da classe trabalhadora poderia votar por reformas radicais do capitalismo -- talvez até pelo socialismo.

 A "solução" da UE é transferir os poderes de decisão política, económicos, financeiros e sociais, para o topo, dos parlamentos e governos nacionais democraticamente eleitos para o nível da UE. Lá, a Comissão Europeia, não eleita, pode elaborar e policiar as políticas impostas pelo Tribunal de Justiça da UE e consagradas pelos tratados e directivas da UE. O Parlamento Europeu, em grande parte sem poder, constituído por deputados que representam vastos círculos eleitorais sem ligação orgânica com os eleitores, cobre de um falso verniz democrático tais arranjos.

Em 1990, apoiado por deputados trabalhistas pró-UE, o primeiro-ministro conservador John Major integrou a Grã-Bretanha no Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio (MTC), como um passo em direcção à UEM. Isso atrelou a libra super-valorizada ao marco alemão, forçando a subida das taxas de juros e dos preços de exportação britânicos e destruindo em consequência um milhão de empregos industriais. Só depois da Grã-Bretanha ter saído da UEM na "Quarta Negra" de 1992, é que as taxas de juros caíram, a libra esterlina se desvalorizou e se iniciou uma recuperação económica.

Foi nessa altura, quando o bilionário pró-UE George Soros e outros especuladores com taxas de câmbio revelaram a insensatez de Thatcher que esta se voltou contra todo o projecto da UE. Thatcher temia a perda da soberania britânica e do "relacionamento especial" do imperialismo britânico com o imperialismo norte-americano, que só este pode militarmente proteger os interesses mundiais do capitalismo britânico.

Uma Crónica dos Tratados da UE

O Tratado de Maastricht de 1992 aprofundou as preocupações dos Tory, embora Major tenha conseguido assegurar a opção de desistência britânica da união monetária e do seu débil "Capítulo Social". O Tratado comprometeu os Estados-Membros da UE empenhados não só à UEM e a uma moeda única europeia (o «Euro»), mas também a políticas monetaristas rigorosas, uma “economia de mercado competitiva”, uma Política Externa e de Segurança Comum e uma cooperação militar mais estreita. O Banco Central Europeu (BCE) seria estabelecido para gerir o “euro”, controlar os bancos centrais dos estados-membros da zona do euro e para ajudar a impor políticas monetaristas. O BCE seria independente de quaisquer órgãos eleitos a nível nacional ou europeu.

Assim, o Tratado de Maastricht acelerou o desenvolvimento do capitalismo monopolista de estado a nível europeu, construindo um aparelho de estado embrionário da UE cujo poder político -- e depois militar -- pudesse articular com o poder económico dos monopólios capitalistas da Europa. Por estas razões, o Partido Comunista, Tony Benn, Dennis Skinner e outros da esquerda pediram a rejeição do tratado num referendo.

Embora o Partido Trabalhista se tenha oposto à opção de desistência do Capítulo Social, recusou-se a pedir um referendo sobre Maastricht. Na Dinamarca, os eleitores rejeitaram o tratado, antes de o aprovar na segunda vez com opções de desistência. Na França, o Partido Comunista liderou uma campanha de referendo que quase derrotou o Tratado de Maastricht.

O Tratado de Amesterdão de 1997 da UE incluía um notório "Pacto de Estabilidade e Crescimento". Este exigia limites para défices fiscais do governo e da dívida, respectivamente de 3% e 60% do PIB, para todos os estados membros da UE. Como resultado, todos os governos têm de submeter um “Programa de Convergência” anual à Comissão da UE, indicando como vão implementar uma estratégia de redução de défices para alcançar orçamentos equilibrados ou excedentários.

Em 2001 o Tratado de Nice reformou as estruturas e procedimentos dos principais órgãos decisórios. Quando o povo da República da Irlanda votou a favor de rejeitar a transferência para a UE da sua soberania nacional duramente conquistada, foi realizado um segundo referendo para assegurar o seu consentimento.

Em 2004, um projecto de Constituição Europeia consagrou novos e enormes poderes nas mãos da Comissão Europeia e do BCE, proibiu os bancos centrais dos Estados membros de emissão de obrigações para financiar o investimento do sector público, proibiu o auxílio estatal às indústrias em quase todas as circunstâncias, alinhou com a OTAN a futura política externa e de segurança comum da UE e criou novas estruturas para acelerar o rearmamento e a coordenação militar.

Depois que os povos da França e da Holanda rejeitaram o projecto de Constituição em referendos, foram canceladas as consultas na Grã-Bretanha e noutros países.

Um documento quase idêntico foi então reintroduzido em 2007 como Tratado Constitucional (ou "de Lisboa"). Mais uma vez, o povo irlandês rejeitou um tratado da UE e foi considerado que votaram erradamente, obrigando-os, com base em várias ameaças e promessas, a chegar à resposta correcta numa segunda consulta. Nenhum outro estado membro permitiu aos seus cidadãos votarem antes de ratificar o Tratado de Lisboa, incluindo a Grã-Bretanha, onde o governo de Tony Blair do Novo Trabalhismo tinha prometido realizar um referendo sobre quaisquer grandes reformas.

A longa saga dos tratados da UE impostos a populações relutantes ilustra um desprezo pela democracia que permeia todo o projecto da UE.

Este desprezo reflecte-se também nos enormes poderes da Comissão Europeia, consagrados nos dois tratados básicos da UE, corrigidos pelo Tratado de Lisboa; a saber, o Tratado de Roma sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e o Tratado de Maastricht sobre a União Europeia (o TUE).

A Comissão da UE goza agora do direito exclusivo de elaborar quase todas as propostas (TFUE 17.2); pode até recusar-se a fazê-lo em qualquer assunto específico solicitado pelo Parlamento Europeu (TFUE 225), o qual não tem esse poder. Além disso, os Comissários podem dirigir-se ao parlamento sempre que o peçam (TFUE 230) e até mesmo negar permissão para criar uma comissão de inquérito.

Seria esta situação tolerada em qualquer país que afirma ser uma democracia? Que o serviço civil se possa recusar a elaborar um projecto de lei parlamentar quando solicitado a fazê-lo pelos representantes eleitos!? Que os altos funcionários públicos têm o direito de se dirigir ao Parlamento eleito sempre que o peçam!?

Esta contradição entre o poder burocrático da UE e a democracia representativa não pode ser resolvida, porque o Parlamento da UE não é democrático, a não ser num sentido puramente formal. Com um deputado para meio milhão ou mais de votantes, a representação está numa escala muito grande para ser significativa. Não é possível haver uma ligação estreita entre eleitores e eleitos -- e é por isso que a maioria dos eleitores da Grã-Bretanha e resto da UE não tem a menor ideia de quem os representa na festa móvel que é o Parlamento da UE, alternando dispendiosamente entre Bruxelas e Estrasburgo.

Além disso, sem inverter totalmente os dois tratados básicos da UE, qualquer tentativa de dar ao Parlamento da UE mais poderes só pode ser à custa dos poderes dos parlamentos eleitos e dos governos nacionais. O chamado "défice democrático" na UE representa, portanto, uma contradição insolúvel: só pode ser resolvida ao nível continental, reforçando os poderes de um organismo que tem a forma mas não a substância da democracia.

Até que ponto os parlamentos eleitos e governos nacionais se tornaram sujeitos à soberania da UE foi demonstrado na véspera do referendo da Grã-Bretanha.

As directivas da UE estabelecem taxas mínimas para o IVA numa ampla gama de produtos que não pode ser reduzida. As directivas também proíbem -- excepto nas circunstâncias mais extraordinárias -- a abolição do IVA sobre um produto após a sua classificação. O desejo unânime do parlamento e do governo de Westminster era abolir o IVA sobre os produtos sanitários das mulheres. Mas isso requeria permissão da UE. Assim, assistimos ao espectáculo de um governo britânico eleito a dirigir-se a comissários não eleitos em Bruxelas para pleitear serem autorizados a fazê-lo. A taxa zero foi finalmente concedida só três meses antes do referendo de 2016. Quelle surprise!

O Carácter de Classe da UE

O carácter antidemocrático da UE desenvolveu-se a fim de reforçar o seu carácter de classe fundamental. Os tratados, regras e instituições da UE destinam-se a servir os interesses comuns dos monopólios capitalistas da Europa.

É por isso que o Tratado da União Europeia (TUE) efectivamente proíbe economias planificadas, insistindo em que cada Estado membro tenha “um mercado altamente competitivo” (artigo 3.º) e também por isso o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) exige repetidamente que os Estados membros operem "uma economia de mercado aberta, de livre concorrência” (artigos 119.º, 120.º e 127.º). Na realidade, quase todos os ramos da economia nos países capitalistas mais avançados da UE é dominada por não mais de seis ou sete corporações gigantes. Isto significa que, de vez em quando, a UE e os governos nacionais tomam relutantemente débeis medidas contra práticas de monopólio para manterem a ficção de que têm "uma economia de mercado aberta, de livre concorrência”. Significativamente, a UE toma medidas mais firmes contra os monopólios rivais dos EUA.

O TFUE também insiste num mercado interno único com a "livre circulação de bens, pessoas, serviços e capitais” (artigo 26º) -- fazendo eco ao Tratado de  Roma (1957). Desta forma, as corporações empresariais podem movimentar livremente capital e trabalho através da Europa, a fim de maximizar o lucro. O mesmo tratado também declara que "todas as restrições sobre os movimentos de capitais entre os Estados-Membros e entre os Estados-Membros e países terceiros são proibidos” (artigo 63.º). Não surpreende, por isso, que a UE lidere na Organização Mundial do Comércio (OMC) o movimento para abrir outros países à penetração do capital monopolista europeu, ajudando as empresas sediadas na UE a controlar os sectores da água, electricidade, transporte, mineração e agricultura de muitos países menos desenvolvidos e em desenvolvimento em todo o mundo -- muitas vezes com pouco ou nenhum benefício para as populações locais.

As grandes corporações empresariais encontram-se mais ou menos em sessão permanente com os Comissários a UE e persistentemente procuram influenciar o Parlamento da UE. Cerca de 50 das maiores empresas industriais do continente organizaram-se desde 1983 na Mesa Redonda Europeia de Industrialistas, propondo e moldando muitos dos aspectos económicos e políticas sociais prosseguidas pela Comissão da UE. Desde 2003, a Mesa Redonda Europeia de Serviços Financeiros exerceu influência semelhante em nome de 21 ou mais bancos e outras sociedades financeiras. Daí o lento e fraco progresso das medidas da UE para regular o sector financeiro, supervisionadas pelo presidente da Comissão, Juncker. Anteriormente, como primeiro-ministro de direita do Luxemburgo, Juncker presidiu a uma enorme fraude de evasão fiscal corporativa internacional para tornar o seu país um lucrativo paraíso fiscal.

A colaboração entre a Comissão da UE e as grandes empresas resultou numa série de iniciativas para defender idades mais elevadas para pensões do Estado, a “liberalização” de pensões profissionais, mais transportes rodoviários para mercadorias, e o Esquema de Comércio de Emissões da UE (que sustenta um mercado altamente lucrativo em licenças de poluição). Outras directivas exigiram a fragmentação, a "marketização" e a "liberalização" de serviços públicos e estatais nacionalizados, preparando o terreno para a privatização da electricidade, dos caminhos-de-ferro e dos serviços postais em particular. Os resgates financiados pela UE exigiram privatizações radicais como condição de empréstimos a estados membros com dívidas a bancos alemães, franceses e britânicos.

Embora a nacionalização não seja explicitamente proibida pelos tratados e directivas da UE, elas proíbem medidas preferenciais que "distorçam" o mercado ou violem critérios comerciais. Assim, qualquer tipo de tratamento preferencial para o sector das empresas públicas é proibido, incluindo políticas relativas a subsídios estatais, preços de compra e venda, obrigações de investimento do sector público e cumprimento de contratos. O TJE também deixou claro que o "direito de estabelecimento" implica que os monopólios nacionalizados não podem permitir a exclusão de empresas do sector privado da maioria dos sectores das economias dos estados membros.

Em matéria de leis do trabalho é também muito clara a base de classe dos tratados, directivas e decisões do tribunal.

O TFUE proíbe expressamente a legislação da UE de promulgar ou aplicar o direito de greve ou de aderir a um sindicato, a um salário mínimo estatutário ou à protecção dos trabalhadores contra lock-outs (artigo 153). A UE não fez absolutamente nada para proteger os trabalhadores Grã-Bretanha das, no mínimo, doze leis Tory anti-sindicato desde 1979.

Muitas medidas da UE, como a directiva relativa ao tempo de trabalho e à licença parental estão cheias de furos, ficando aquém das provisões obtidas pela luta e governos progressistas em muitos estados membros. As directivas da UE não puseram fim à disparidade salarial entre géneros na Grã-Bretanha, não limitaram a semana média de trabalho a 48 horas, não aumentaram as férias remuneradas para o nível da média europeia. Para isso só se pode confiar na acção sindical e na legislação nacional.

[O autor enumera aqui uma série de direitos obtidos pelos trabalhadores ingleses através da luta sindical. Omitimos aqui essa enumeração.]

Assim como o carácter antidemocrático da UE serve os interesses do capitalismo monopolista, também o fundamentalismo neoliberal da UE restringe ainda mais a democracia a todos os níveis. Em particular, as regras financeiras da UE, as da "livre circulação" e do "direito de estabelecimento" restringem enormemente a capacidade dos representantes eleitos de intervir na economia no interesse dos trabalhadores, das pessoas em geral e das suas comunidades locais.

Em 2015, por exemplo, o governo SNP em Edimburgo foi obrigado a transferir a gestão e financiamento de dezenas de projectos de investimento de um órgão público “sem fins lucrativos" -- o Scottish Futures Trust -- para o sector privado. Caso contrário, todo o empréstimo inicial teria de ser incluído nas contas do sector público ameaçando, assim, violar as regras da UE do défice e dívida do governo. Em resultado disso o programa de infra-estrutura do governo escocês acabará custando três vezes mais em encargos unitários ao longo de 40 anos do que o valor das respectivas novas escolas, estradas, hospitais e clínicas.

Os tratados da UE proíbem toda uma série de outras políticas que os governos podem querer implementar no interesse da classe trabalhadora e da sociedade em geral. Mas nada ilustrou melhor a base de classe da UE do que a sua resposta ao crash financeiro de 2007-08.

Crise Financeira e 'Troika”

O carácter capitalista, anti-trabalhador e pró-monopólio da UE foi dramaticamente confirmado quando os bancos e o sistema financeiro tiveram de ser salvos da sua própria ganância e corrupção. Todos os compromissos da UE com os princípios do "mercado livre" imediatamente saíram pela janela. De repente, tornou-se perfeitamente aceitável para os governos emprestarem em grande escala para socorrer o capitalismo financeiro com subsídios e até com nacionalizações. Em consequência disso, quando os estados membros da UE se colocaram em posições de insolvência e bancarrota iminente, as principais instituições da UE intervieram para refinanciar os resgates em quatro casos principais.

Em 2010, a Comissão Europeia e o BCE juntaram-se ao Fundo Monetário Internacional (a “Troika”) para lançar uma série de empréstimos e “swaps de obrigações” (com o BCE a assumir riscos de incumprimento) aos governos da Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Chipre. Estes [empréstimos e swaps] permitiram a esses governos honrar os títulos emitidos para financiar despesa pública (incluindo os resgates dos bancos dos seus próprios países).

Os verdadeiros beneficiários das intervenções da Troika foram os bancos alemães, franceses, britânicos e italianos, que tinham sido os principais detentores de títulos.

No total, a UE encontrou cerca de € 433 mil milhões (£ 377 mil milhões) para salvar governos de oito países membros. Isso equivale ao total de gastos da UE em todas as despesas sociais, programas regionais, de infra-estrutura, I & D, educação, formação e cultura da Europa nos próximos cinco anos.

As intervenções da Troika também tiveram outro preço. Lideradas pela Comissão da UE e o BCE, foram exigidos severos cortes de austeridade em programas sociais e de bem-estar, aumentos do IVA e de outros impostos regressivos (em especial em Chipre), reformas do mercado de trabalho para reduzir os direitos dos trabalhadores (nomeadamente em Espanha) e medidas radicais de privatizações (especialmente na Grécia).

Quando o governo social-democrata do PASOK em Atenas ameaçou realizar um referendo contra as exigências da Troika de ainda mais austeridade como condição para um segundo resgate, foi ameaçado com sabotagem financeira e o primeiro-ministro Papandreou foi removido. Em Novembro de 2011, os restantes social-democratas aderiram a uma coligação de direita liderada por um "tecnocrata" não eleito, o ex-vice-presidente do BCE Lucas Papademos.

Nesse mesmo ano, o governo italiano de direita de Silvio Berlusconi não conseguiu ter uma acção suficientemente dura para impor medidas de austeridade e reduzir os direitos dos trabalhadores. A pressão dos bancos, dos mercados obrigacionistas, da Comissão Europeia e do BCE obrigou-o a sair do gabinete sob ameaça de falência financeira. Um regime de tecnocratas não eleitos governou a Itália a partir de Novembro de 2011 por 18 meses, liderado pelo ex-Comissário da UE Mario Monti.

Após a eleição de um novo governo na Grécia em Janeiro de 2015, liderado pela coligação do Syriza supostamente de esquerda, um referendo mostrou que 61% das pessoas se opunham a nova rodada de medidas de austeridade e privatizações exigidas pela Troika. Contudo, a liderança do Syriza capitulou para a UE depois de ganhar eleições parlamentares, chegando a concordar com as "reformas" do mercado de trabalho que tornava mais fácil despedir trabalhadores e acabar com acordos de negociação colectiva com sindicatos.

As consequências para as vítimas destas agressões punitivas da UE foram severas. As medidas de austeridade da Troika mergulharam as economias numa recessão mais profunda e mais longa, destruíram milhões de empregos, eliminaram serviços públicos e reduziram padrões de vida da classe trabalhadora -- em 40% e até mais no caso da Grécia.

Esta experiência tem desempenhado um papel significativo na mudança de algumas organizações sindicais, socialistas e forças comunistas para uma atitude mais céptica em relação à UE. Isto é certamente verdade para os partidos comunistas e operários na França, Espanha, Chipre e Alemanha, que agora consideram a UE irreformável. Os partidos comunistas da Grã-Bretanha, Irlanda, Dinamarca, Hungria, Grécia e Portugal continuam a opor-se à UE como construção capitalista, imperialista. Outras forças de esquerda, como o Partido da Esquerda Sueco, o Partido Socialista Holandês, o Partido de Esquerda na França e o Bloco de Esquerda em Portugal também são profundamente eurocépticos.