quarta-feira, 24 de julho de 2013

Crónica da «Salvação Nacional» cavaquista

Ao fim de uma semana de negociações dos partidos do governo, PSD e CDS, com o PS, nenhum acordo foi alcançado. Gorou-se, assim, a iniciativa presidencial de Cavaco Silva para atrelar o PS ao carro do PSD-CDS com vista a um governo amplo da direita ao serviço da «salvação nacional», isto é, da salvação do grande capital nacional e europeu interessado na neocolonização de Portugal e, em particular, em sugar o povo trabalhador para manter o regabofe da banca.
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Em 9 de Julho p.p. Cavaco Silva parecia ainda disposto a apadrinhar um novo governo remodelado PSD-CDS, com Portas a assumir uma posição de maior preponderância. O Jornal de Notícias de 10 de Julho, por exemplo, descrevia tal posição sob o título «Cavaco apadrinha segunda lua-de-mel de Passos e Portas». Entretanto, todos os indicadores económicos estavam com perspectiva negativa: a taxa de crescimento do PIB português tinha ficado no final do 2.º trimestre em -4%, confirmando uma descida continuada do PIB ao longo de 5 trimestres!; o FMI previa uma contracção de 0,6% do PIB na Zona Euro, sublinhando que em 2014 a recessão iria ser pior do que inicialmente pensavam (caía, assim, a tese da recuperação económica para 2014); a taxa de crescimento do PIB dos EUA (com enorme influência na Europa) também recuava para +1,7% (em vez da estimativa anterior de +1,9%); os mercados bolsistas estavam geralmente em queda, com o PSI-20 em queda desde o início de Maio a cair de novo cerca de 5% em 10 de Julho; o crédito mal parado relativo às empresas mantinha-se em subida batendo recorde: 17 biliões de € (já assinalámos em artigos anteriores que usamos biliões em vez de mil milhões), representando 11,3% do total de empréstimos; ficou-se também a saber que as dívidas das empresas à Segurança Social tinham aumentado de 2011 para 2012 de uns espantosos 36,9% (de 7142 para 9779 milhões €) e as dívidas ao fisco de uns «meros» 292 milhões € (totalizando 18.205 milhões €!); os juros da dívida tinham subido para níveis próximos de 7%, embora no dia 9 registassem alguma diminuição que o governo de Passos Coelho aproveitou para acção de propaganda; a dívida pública e externa mantinham-se elevadas e com tendência de subida (ver (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/07/portugal-em-queda-livre.html).
Todo este cenário num quadro de grande corrupção (segundo a Transparência e Integridade, Associação Cívica, 80% dos portugueses pensam que a corrupção aumentou nos últimos 2 anos, com 11% a admitirem que já pagaram subornos nos serviços públicos) e escandaleira geral (Isaltino oficialmente a concorrer nas autárquicas estando preso, Mira Amaral com uma reforma de 18.000€/ano por uma ano e nove meses que esteve na CGD, etc., etc.; a corrupção, fraude e escandaleira dos sucessivos governos desde o 25 de Novembro de 1975 dariam para escrever vários volumes; e os dos governos Sócrates até ao actual ocupariam boa parte desses volumes num acelerar daquilo que já denunciámos como «após nós o dilúvio»).
A 11 de Julho, Cavaco, num discurso ao país, anuncia a sua intenção de chamar PSD, CDS e PS para conversações com vista a formar um governo ou «compromisso» de «salvação nacional» que poderia ser encabeçado por uma personalidade independente de prestígio. O que motivou Cavaco?
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No artigo supracitado tínhamos já chamado a atenção para o facto de que, com o aprofundar do descontentamento popular e com a evidente destruição da economia portuguesa, iriam surgir tendências para branquear as culpas do governo PSD-CDS. Nada melhor, com esse fim, do que a construção de uma frente governativa pró-troika, atrelando o PS ao carro PSD-CDS, e dando mais força à ideia de que não há alternativa à troika e, portanto, às políticas económicas e financeiras do governo. Ideia que, infelizmente, ainda colhe dividendos em largas camadas politicamente menos conscientes da população portuguesa; em particular, as submissas às pregações dominicais do clero.
Várias figuras da direita se pronunciaram no sentido de uma ampla frente PSD-CDS-PS. É uma ideia que já vem de longe (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/10/a-direita-cerra-fileiras-no-ataque-aos.html ). Um tal «governo de salvação nacional», com uma base social ampla, tornaria mais «credíveis» as políticas de ataque ao povo trabalhador. Isto é, a capacidade de ludíbrio das massas populares por parte do grande capital cresceria enormemente. Daí que, quando Cavaco anunciou a sua iniciativa, surgiram logo declarações exultantes das associações do grande patronato (CIP, CCP) e dos latifundiários (CAP). De assinalar, também, o apoio da UGT (Carlos Silva: «é um repto interessante aos partidos»; achou «interessante» e pelos vistos «partidos» para ele são só os da direita) e de um economista pró-direita (Daniel Bessa). Parece que o parecer de Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, também pesou na decisão de Cavaco.
Inicialmente o PS mostrou hesitações, dizendo, por um lado, que estava disponível para dialogar (embora insistindo em eleições antecipadas) e, por outro lado, com Alberto Martins a dizer que o PS não «apoiará ou fará parte de qualquer governo» sem a vontade expressa pelos portugueses em eleições. (É, portanto, legítimo presumir destas afirmações que se em próximas eleições o PS não tiver maioria absoluta não está posta de parte a aliança com o PSD e/ou CDS. O que não espanta.)
A 12 de Julho os media divulgavam que Cavaco tinha em mente ter como mediador do acordo o chefe militar da contra-revolução do 25 de Novembro de 1975, Ramalho Eanes, adepto da ideia da «salvação» PSD-CDS-PS. Claro! O PS continuava a dizer que «sim», «mas»: «disponível para negociação mas não para servir de "muleta"». Bom, se se negoceia com alguém é porque se admite chegar a acordo com esse alguém. Como é que o PS poderia estar «disponível» para negociar sem servir de "muleta" (isto é, dar apoio ou pelo menos credibilizar as políticas pró-troika) é um dos muitos mistérios a que o PS nos habituou. Perante a anunciada «salvação» a troika babada adiou o regresso a Portugal para Setembro. Mas uma coisa é trazer para o lado da troika a pequeno burguesia pela mão do PS, outra coisa são as preocupações prioritárias da grande burguesia («Será que o PS quer restringir o regabofe?»): o PSI-20 caiu logo 2% e os juros dos títulos de dívida pública a 10 anos subiram outra vez para perto dos 7% (6,9%).
A 13 de Julho Seguro diz que procura garantias de apoio interno do PS para avançar. Pelos vistos, obteve esse apoio e garantias para a negociação com vista ao «compromisso de salvação nacional» porque avançou. A 14 de Julho tinha lugar a 1.ª reunião. A 15, Cavaco enviou um emissário às conversações dos partidos PSD, CDS e PS; os chamados «partidos do arco de governação». Na democracia burguesa é assim: há os que são do «arco» porque servem os interesses do capital, e os que estão fora dele. Tudo -- meios de comunicação, apoios financeiros, aparelho político, aparelho religioso da Igreja de condicionamento ideológico, modo de apuramento de votações, subornos, legislação, sistema judicial, órgãos de repressão, etc., etc. -- está concebido, estruturado e solidificado para reproduzir constantemente o mesmo sistema; o sistema capitalista e, em particular, em Portugal (e noutros países), o sistema que melhor protege os interesses do grande capital financeiro, os interesses egoístas de menos de 1% da população (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/11/os-1-do-topo.html ): a ditadura da grande burguesia (menos de 1% da população) exercida por um sistema parlamentar «democrático». Para isso aí está a «alternância democrática» rodando sempre, de X em X anos, o governo entre os mesmos dois partidos ou coligações: um, puro e duro de direita (plano A da grande burguesia); outro, de direita mas com umas pinceladas de esquerda (plano B) para enganar os trabalhadores politicamente pouco conscientes, quando o plano A não consegue funcionar. Em Portugal os planos A e B são representados, respectivamente, pelo PSD+CDS (ou PSD sozinho) e pelo PS; nos EUA pelos Republicanos e Democratas; no Reino Unido, pelos Conservadores e Trabalhistas; na França, pelo UMP e PS; na Alemanha, pela CDU e SPD; na Holanda, pelo CDA+VVD (ou CDA sozinho) e pelo PvdA; etc., etc. Na Europa e desde a 2.ª Guerra Mundial o sistema conseguiu proporcionar um bom nível de vida aos trabalhadores de vários países enquanto a rendibilidade do sector produtivo esteve em alta («Estado Social» da época de ouro do capitalismo até cerca de 1975: ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-i.html ); as leis económicas, que vêm determinando um cada vez pior funcionamento do sistema, gerando cada vez mais exploração e opressão aberta dos trabalhadores, acabarão por ditar o seu fim.
De 16 a 19 de Julho as conversações prosseguiram com o PS a colocar como obstáculos a sua recusa ao corte de 4,7 biliões de euros na despesa do Estado (desejada pelo PSD-CDS), ao aumento dos despedimentos na função pública, ao ataque às pensões da função pública e à aplicação da TSU aos pensionistas. Os media anunciavam «conversações emperradas», «impasse nas negociações», etc. Ora, quando o PS iniciou as conversações já sabia que elas não iriam alcançar qualquer «compromisso de salvação nacional». De facto, do ponto de vista do PS, porquê entrar num acordo comprometedor, que iria servir apenas o PSD-CDS, quando está seguro de vencer as próximas eleições e «dar as cartas» como quer (inclusive aplicar medidas que agora, por razões eleitorais, diz que recusa), aparecendo como «salvador» e como se não tivesse culpa pelo estado a que chegou o país? A simples lógica eleitoralista está na base da rejeição por parte do PS de qualquer acordo, no momento actual, com a restante direita. No fundo, as conversações serviram apenas a campanha eleitoral do PS; ao longo das mesmas aproveitou para propagandear os aspectos que o separam do PSD-CDS (no entender do PS, claro) e o que irá fazer como governo: tudo fazer para baixar o IRS (não custa nada dizer que se «vai fazer tudo para…»), recuperação económica, produzir mais, falar com a troika, etc.
A 19 de Julho o «compromisso» era declarado impossível e a 21 Cavaco anunciava ao país que iria manter o governo moribundo do PSD-CDS devidamente remodelado, embora sujeito à vigilância de Cavaco. (Safa! O que seria sem a vigilância de Cavaco?! E das preces à N. S. de Fátima?!) Cavaco disse ainda que lamentava a falta de acordo (entre o PSD-CDS e PS) mas que acreditava que ele seria inevitável no futuro. E neste aspecto Cavaco marcou um ponto. Mesmo que o PS ganhe as eleições com maioria absoluta é muito provável que o aprofundar da crise venha a ditar a aliança do PS com o PSD (e/ou CDS). Teríamos, assim, o «arco de governação» completo a tratar-nos da saúde.

O anúncio de Cavaco de que mantinha o governo fez logo subir o PSI-20 e diminuir os juros das obrigações de dívida pública. (A grande burguesia não anda a dormir.)
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Como factos colaterais a estas andanças assinale-se a fingida indignação do PS pelo facto do PCP ter proposto conversações com o BE, Verdes e Intervenção Democrática. Disse o PS: «Fizeram mal. Agora em competição, cada um deles lança o seu processo. O PS não entra neste jogo partidário». Como se sabe «jogos partidários» não são com o PS. José Lello do PS chegou mesmo a dizer que se o PS «aceitou estar à mesa com a direita, não podia negar-se a dialogar com a esquerda». Como vemos, o PS vai a todas. É o «centrão». Ou, como diria o almirante Pinheiro de Azevedo, o PS é um partido que tanto é de direita com táctica de esquerda como de esquerda com táctica de direita.
De facto, o PS durante as negociações de «salvação nacional» até recusou o convite do BE para dialogar, dizendo que «só negoceia com a maioria». Numa breve reunião do BE com o PS o bloquista Fernando Rosas saiu da sede do PS dizendo-se convencido que o PS «prefere explorar o entendimento com o governo a voltar-se para uma alternativa à esquerda» (pelos vistos, o BE, sempre disponível a aliar-se ao PS – se este merecer um atestado de bom comportamento, é claro --, ainda não tinha dado por isso; santa ingenuidade!).
Quem também ficou muito zangada de não ser convidada pelo PCP foi a Renovação Comunista (RC), pequeno grupo que inclui ex-membros do PCP sob a égide de Carlos Brito e outros mais, que se afirma marxista e comunista. Quando se esperava que, de facto, renovassem teórica e praticamente o pensamento marxista e comunista, constata-se afinal que tal «renovação» não existe. Existe, sim, a «regressão» às ideias da social-democracia em torno da ideia central da aliança com o PS. O grande feito histórico da RC até hoje foi o apoio expresso ao candidato do PS à Câmara do Porto. O PS agradeceu. É claro que não são os votos dos «renovadores» que irão alterar a votação no PS; mas um apoio de «marxistas» e «comunistas» não deixará de servir ao PS na sua continuada campanha de embuste aos trabalhadores; e por aí, sim, poderá ganhar mais alguns votos. Pensamos não ter de falar mais nesse grupo irrelevante que é a RC (irrelevante do ponto de vista de uma contribuição positiva a uma alternativa de esquerda em Portugal). O seu papel -- felizmente! -- está definido: apoiar as manobras de embuste do PS.