Os repositórios de dados do índice de Gini (IG) já mencionados no artigo anterior (http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/07/desigualdade-social-portugal-e-os.html ) e acessíveis na Internet -- muitos deles patrocinados por instituições de relevo -- não remontam no passado para além de finais do século XIX, mesmo para países desenvolvidos. Este facto dificulta a análise histórica da evolução do IG, análise importante, dado que complementa a informação do PIB per capita ajudando a objectivar a evolução das desigualdades sociais ao longo do tempo.
A documentação sobre a evolução da distribuição de rendimentos para tempo recuados parece-nos ser mais abundante para a França do que para qualquer outro país. A influência de investigações históricas sobre a Revolução Francesa e períodos imediatamente anteriores e posteriores poderá justificar este nosso parecer. Os dados de IG da França que conseguimos coligir ([1]) são representados graficamente na figura abaixo. Neste gráfico e seguintes de evolução temporal do IG será colocada uma barra cinzenta correspondente à metade central da distribuição mundial dos IGs; isto é, correspondente ao intervalo de 0,32 a 0,45. Recordemos que no artigo anterior tínhamos categorizado o IG em quatro escalões: IG inferior a 0,32: bom; entre 0,32 e 0,38: medíocre; entre 0,38 e 0,45: mau; finalmente, um IG superior a 0,45: péssimo.
Evolução histórica do IG da França.
A inspecção da figura revela quatro períodos de evolução do IG, dois correspondendo a quase estabilidade e outros dois correspondendo a descidas importantes. A caracterização que fazemos é a seguinte (ver tabela abaixo):
· No período de 1695 a 1788 (93 anos), véspera da Revolução Francesa, o IG é sempre péssimo. A sua variação (máximo menos mínimo) é de 0,15.
· No período de 1789 a 1830 (41 anos), que vai desde a Revolução Francesa até à chamada monarquia de Junho, o IG sofre uma descida importante (0,25) e, pela primeira vez, desce de péssimo para mau.
· No período de 1831 a 1963 (68 anos) a França atravessa várias vicissitudes (revolução de 1848, as guerras de Napoleão III incluindo a guerra franco-prussiana, duas guerras mundiais). O seu IG flutua em torno de 0,42, com pequena variação (0,11) e muitas excursões na zona do péssimo.
· No período de 1964 a 2010 (46 anos) o IG experimenta de novo uma descida importante (0,22) passando sucessivamente para níveis de medíocre e depois de bom.
Caracterização da evolução do IG da França.
Período
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Índice de Gini
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Média
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Mínimo
|
Máximo - Mínimo
| |
1695-1788
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0,62
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0,53
|
0,15
|
1789-1830
|
0,52
|
0,41
|
0,25
|
1831-1963
|
0,45
|
0,40
|
0,11
|
1964-2010
|
0,34
|
0,27
|
0,22
|
Destes quatro períodos é de destacar o período de 1789 a 1830. Face ao período de 1964 a 2009, em que também se observou uma descida do IG, o primeiro corresponde a uma descida mais acentuada (0,25 face a 0,22) e num período de tempo mais curto (41 anos face a 45 anos). A influência da Revolução Francesa e decorrentes lutas na defesa de direitos sociais, parece ter jogado aqui um papel de relevo.
A figura seguinte mostra a evolução temporal do IG na Grã-Bretanha ([2]) e nos EUA ([3]). Não se observa em nenhum destes países períodos de descida acentuada do IG num curto período de tempo. O IG da Grã-Bretanha só é classificado como bom no período de 1965 a 1985 e episodicamente noutros anos. No período entre 1920 e 1957 (37 anos) desceu apenas 0,13. A partir de 1985 mantém-se perto do limiar entre medíocre e bom. O IG dos EUA é sempre mau ou péssimo (ligeira excursão no medíocre em 1979-1980); inclusive nos últimos anos não anda longe dos valores que tinha nos tempos do far-west (0,474 em 2003-2004 e 0,475 em 1870).
Em nenhum destes países houve uma revolução sócio-económica com a profundidade da Revolução Francesa, inspiradora de posteriores reivindicações sociais em França. O movimento Cartista na Inglaterra (1838-1848), considerado o primeiro movimento reivindicativo dos trabalhadores a nível mundial, não deixou marcas na evolução do IG. O capitalismo nestes dois países evoluiu sem constrangimentos de relevo.
Evolução histórica do IG da Grã-Bretanha e dos EUA.
Vejamos agora o caso da Rússia ([4]). O respectivo gráfico de evolução temporal do IG é mostrado na figura abaixo. Antes de 1855 o IG da Rússia Imperial (Czarista) era péssimo e exibia um ligeiro decrescimento. Este acelera-se a partir de 1855, já no tempo do Czar Alexandre II (introduziu a reforma de emancipação dos servos em 1961). Em 1918 teve lugar a Revolução de Outubro que conduziu ao estabelecimento de um sistema económico socialista (o país, que integrava outros estados da Rússia Imperial, actualmente independentes, chamou-se então União Soviética ou simplesmente U.R.S.S.) o qual perdurou até final de 1991. De 1918 ao final da segunda guerra mundial o respectivo IG (apesar da guerra civil e de agressão externa, de bloqueio económico e, mais tarde, da guerra de agressão nazi) continuou a descer a um ritmo semelhante ao do período anterior, vindo a alcançar o nível de medíocre em 1939. Do final da guerra em 1945 e até 1970, isto é, no espaço de 25 anos, o IG sofre uma descida acentuada de 0,155, correspondendo a uma taxa de descida média quase igual à experimentada pela França no período pós-Revolução, de 1789 a 1830. O IG é agora de 0,23 (melhor que o da Suécia actual). A partir de 1970 o IG sofre uma ligeiríssima subida até à implosão da União Soviética em finais de 1991 e a sua transição para o sistema capitalista. A Rússia (Federação Russa, não englobando muitos dos antigos estados federados da U.R.S.S. que se tornaram por essa época independentes) vê então o seu IG subir a um ritmo provavelmente nunca antes verificado na História: um aumento de 0,134 no espaço de um ano de assalto desenfreado à privatização de bens do Estado! De um bom IG passa a um mau IG e mesmo com excursões mais recentes a níveis de péssimo.
O caso da China também é interessante. A evolução do IG é mostrada na figura abaixo ([5]) apenas a partir de 1953, quando começa a haver dados credíveis sobre a distribuição de rendimentos. Valores de IG para a China Imperial (antes de 1950) são praticamente inexistentes, com excepção de escassos estudos sobre a China rural em 1935-36 que permitem estimar o IG global como tendo um valor da ordem de 0,46 ([6]). A partir da declaração da República Popular da China em 1950 e o início do desenvolvimento de um sistema económico socialista, os dados existentes a partir de 1953 permitem inferir uma descida continuada do IG que passa de 0,561 (péssimo) em 1953 para 0,186 (bom) em 1977. Um espantoso decréscimo da desigualdade social com uma descida de 0,375 do IG em apenas 24 anos!
Em 1978 Deng Xiaoping ascende a Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês. Introduz, então, um novo rumo económico designado por «socialismo de mercado» (ou ainda, designação mais curiosa, «economia de mercado socialista com características chinesas») que mais não é do que a abertura à privatização de empresas estatais bem como à formação de empresas mistas de capitais do estado e capitais estrangeiros. Com os dirigentes que se seguiram a Deng as medidas de índole capitalista aprofundaram-se, com a criação de zonas económicas especiais onde surgiram empresas de capitais privados estrangeiras. O sector privado correspondia a 53,38% do total de empresas em 2005, e o número de capitalistas militantes do Partido Comunista Chinês (proprietários de empresas privadas) correspondia a 33,9% (!) em 2004. Em 2009 só um terço do PIB era produzido pelo sector estatal; isto é, a economia chinesa é actualmente predominantemente capitalista. Ora, a figura mostra precisamente uma continuada subida do IG (com algumas descidas episódicas) a partir de 1978 alcançando o nível de péssimo (0,47) em 2007, próximo do valor já mencionado para a China Imperial nos anos 1935-1936.
Evolução histórica do IG da China.
As implicações do que vimos até aqui, nomeadamente a diminuição da desigualdade social na sequência de revoluções que levam a um sistema superior de relações sociais de produção, parece-nos evidente. Estamos aqui apenas a analisar a evolução do IG, mas a evidência aumentaria se incluíssemos outros indicadores de desigualdade, como o nível de pobreza, e se analisássemos outros países. Por exemplo, em Cuba o IG era de 0,35 em 1962 (poucos anos depois da revolução cubana) e em 1978 já era de 0,27. Durante os escassos três anos da evolução socialista do Chile de Allende o IG desceu; só aumentou depois do golpe militar fascista, encabeçado por Pinochet, que derrubou o regime democraticamente eleito de Allende. O tão apregoado milagre económico de Pinochet (patrocinado por Milton Friedman) foi um milagre para os ricos. Na Venezuela de Chávez a taxa de pobreza (< 2 dólares de 2005/dia) passou de 42,8% para 26,5% de 1999 para 2011 e a taxa de extrema pobreza (< 1,25 dólares de 2005/dia) de 16,6% para 7%. O IG passou de 0,476 em 1999 para 0,453 em 2010 (dados do Banco Mundial). E podíamos continuar com os exemplos.
Inversamente, poderíamos apresentar muitos exemplos (para além da URSS, da China e do Chile que vimos acima) que uma regressão para um sistema inferior (retrógrado) de relações sociais de produção leva a um aumento da desigualdade social.
Passemos a Portugal. A evolução do IG no período de 1963 a 2011 é mostrada na figura abaixo. Não se nota nenhum período de quebra acentuada, mas sim uma diminuição diminuta com altos e baixos. A revolução do 25 de Abril foi apenas «meia revolução» e não deixou quaisquer marcas no IG, na desigualdade social. Não houve uma mudança de sistema sócio-económico. Era capitalismo monopolista antes do 25 de Abril e assim voltou a ser depois do golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro. Constata-se um período de estagnação do IG oscilando entre de níveis de mau e níveis de medíocre, terminando em 2011 com um valor, também medíocre, de 0,342 que inflecte a tendência de descida. Veremos mais tarde o que nos dizem os dados para 2012. Os seguintes países europeus, que em 1963 partiram de um IG superior a 0,4, tal como Portugal, alcançaram em 2011 um IG de bom: Chipre (0,291), Itália (0,312), Malta (0,274). Só a Espanha apresenta uma evolução do IG parecida com a de Portugal: em 1963 o seu IG era de 0,406 e chega a 2011 com um IG de 0,34. A Grécia chegou a 2011 com um IG de 0,335, ligeiramente abaixo do de Portugal.
Evolução histórica do IG de Portugal.
[1] Para além das fontes já citadas no artigo anterior () obtivemos dados históricos dos seguintes dois trabalhos: Morrisson, C., Snyder, W. (2000) The income inequality of France in historical perspective, European Review of Economic History, 4, pp.59-83; Morrisson, C., Snyder, W. (2000) Les inégalités de revenues en France du XVIIIeme siècle à 1985. Revue économique, vol. 51, nº 1, pp. 119-154. Os dados destes trabalhos da distribuição de rendimentos em França nos séc. XVIII e XIX referem-se a estimativas para agregados familiares, mas para agregados em que o «chefe de família» pagava imposto, isto é, para «cidadãos activos». Os IG reais deviam ser, portanto, algo maiores do que os possíveis de calcular. Isto é reconhecido pelos autores. No primeiro trabalho os autores referem a escassez de dados para a França nos séc. XVIII e XIX em comparação com outros países. Contudo, não é essa a impressão que se fica a partir de um volume considerável de trabalhos por nós consultados e disponíveis na Internet. Entre muitos outros trabalhos consultados os seguintes pareceram-nos de interesse: Bourguignon, F., Morrisson, C. (2002) Inequality among World Citizens. The American Economic Review, vol. 92, nº4, pp. 727-744; Daniel Martin (2009) Les inegalités sociales en France (http://www.danielmartin.eu/Politique/I negalites-en-France.htm). Para o período de 1695 a 1779 os dados históricos disponíveis só permitem calcular um valor de IG constante em cada um dos seguintes sub-intervalos: [1695, 1704], [1705, 1747], [1748, 1759], [1760, 1779]. Acima de 1780 foram realizadas interpolações para certos períodos.
[2] Para além das fontes gerais já citadas foram também consultados os seguintes trabalhos: Morrisson C., Cazenave P. (1974) La redistribution des revenus en Grande-Bretagne, en France et aux Etats-Unis. Revue Economique, vol. 25, nº 4, pp.635-671; Atkinson A. B. (2010) Income inequality in historical and comparative perspective Opening Conference of the Gini Project; Crafts N. F. (2000) Development History. London School of Economics (working paper); Saito O. (2010) Income Growth and Inequality over the Very Long Run: England, India and Japan Compared. Slavic Research Center (SRC); Brewer M, Sibieta L, Wren-Lewis L (2008) Racing Away? Income inequality and the evolution of high incomes. The Institute for Fiscal Studies, Briefing Note no. 76. O trabalho de Lindert P. H. (1998) Three centuries of inequality in Britain and America. Dept of Economics, University of Califórnia, revised working paper no. 97-09, apesar da informação de interesse que reporta não esclarece se os dados de desigualdade se referem a famílias ou agregados familiares.
[3] Para os EUA foi consultado: De Navas-Walt C, Proctor BD, Smith JC (2011) Income, Poverty, and Health Insurance Coverage in the United States: 2010. US Census Bureau. O valor de 0,469 foi divulgado pelo US Census Bureau para 2010.
[4] Para além das fontes gerais e do GPIH Group, Institute of Governmental Affairs, UC Davis (http://gpih.ucdavis.edu/Datafilelist.htm#Europe), consultaram-se os seguintes trabalhos: Baten J et al. (2009) World income Inequality 1820-2000 (working paper); Flemming J. (2007) Income Distribution, Economic Systems and Transition. In Handbook of income distribution, Volume 1Editors: A.B. Atkinson, François Bourguignon. North Holland; Alexeev M V, Gaddy C G (1993) Income Distribution in the USSR in the 1980s. Review of Income and Wealth, Ser. 39, no. 1, pp. 23-36; Kortchagina I e tal. (2005) Conditions de vie et pauvreté en Russie. Economie et Statistique, nº383-384-385; Numa Mazat (2008) A Rússia dos anos 90: crônica de um desastre anunciado. Coletivo Crítica Económica.
[5] Para além das fontes gerais, consultou-se: Rawski TG, Lillian M L (1992) Chinese History in Economic Perspective. University of Califórnia Press.
[6] Uma discussão extensa sobre este assunto encontra-se em: Rawski TG, Lillian M L (1992) Chinese History in Economic Perspective. University of California Press.
[7] Entre vários trabalhos consultados o que a seguir se indica apresenta dados detalhados referindo fontes fidedignas: Zheng H, Yang Y (2009) Chinese Private Sector Development in the Past 30 Years: Retrospect and Prospect. China Policy Institute, Univ. Nottingham (discusssion paper).
[8] As principais fontes são o Eurostat e o já mencionado repositório da Universidade do Texas.