A Amnistia Internacional divulgou no passado mês de Maio a sua apreciação anual sobre os direitos humanos em Portugal ([1]). Um dos temas em destaque é o do «uso excessivo da força» por parte da polícia portuguesa.
Não é de agora que a polícia portuguesa «se distingue» pela repressão violenta dos cidadãos mesmo quando estes se limitam a exercer os seus direitos. Pese, embora, a formação de sindicatos entre as forças policiais e algum arejamento de ideias que tal possa ter trazido, a população ainda vê -- e não é por acaso -- as forças policiais como algo exógeno à sociedade, ao povo comum, de que há apenas a esperar repressão violenta. Sente-se que ainda existe uma mentalidade fascistóide entre as forças policiais, sempre prontas a reprimir violentamente o cidadão comum quando este apenas faz uso dos direitos que as leis lhe outorgam. E, em contraste, prontas a dar tratamento distinguido ao cidadão bem enfarpelado dos círculos poderosos do dinheiro e influências.
Mais: existe uma percepção clara de que a repressão, mesmo a de maior ferocidade e terminando em homicídios, terá cobertura e merecerá a impunidade das autoridades se os fins forem do agrado dessas mesmas autoridades. De facto, desde o fascismo que a burguesia no poder sempre tem cultivado em Portugal, entre as instituições judiciais e policiais, uma mentalidade de que «os fins justificam os meios», quaisquer meios. Olhe-se, por exemplo, para as mortes de dois jovens manifestantes, filhos do povo, ocorridas na sinistra carga policial acontecida na noite de 30 de Abril para 1 de Maio de 1982 no Porto ([2]), perto do autor destas linhas. Mortes gratuitas, filhas do «terror branco» ao serviço da burguesia, dos poderes reaccionários instituídos em Portugal desde o 25 de Novembro de 1975 representados pelo PS, CDS e PSD. Homicídios que passaram impunes, sem investigação e sem julgamento. Homicídios assinalados nas ruas do Porto e não esquecidos.
Mas, voltemos a tempos recentes.
Assinala a Amnistia Internacional (AI) como exemplo de violência policial o que ocorreu nas manifestações de 22 de Março e de 14 de Novembro de 2012, em Lisboa. Em Março, num dia de greve geral e protestos contra a austeridade, «dois jornalistas receberam tratamento médico depois de, alegadamente, terem sido espancados pela polícia». A 14 de Novembro a carga policial injustificada infligida sobre os que se manifestavam em frente à Assembleia da República resultou em «48 feridos».
Recentemente onze jovens militantes do PCP foram presos no Porto por pintar um mural exigindo a demissão do governo de Passos Coelho ([3]). Quatro foram algemados. Levados os onze para a esquadra, foi impedida a entrada aos jornalistas com a falsa alegação de que o espaço estava sobrelotado. A Lusa constatou, contudo, que a esquadra tinha apenas uma dezena de pessoas no átrio. Foram libertados no dia seguinte, dois deles sido acusados de resistência à autoridade. Os jovens, como muito bem assinala o comunicado do PCP, estavam apenas a exercer um direito: «a pintura mural é um direito constitucionalmente consagrado. O que é ilegal é a detenção destes jovens […]». É claro que para a PSP tudo que seja defender o exercício de um direito, mesmo a simples argumentação oral na defesa desse direito, é tido como «resistência à autoridade». Não nos enganemos. Os onze jovens foram detidos porque estavam a pintar um mural político contra o governo. Se estivessem a fazer um qualquer grafiti fútil provavelmente não teriam sido detidos. Se se tratasse de jovens da JSD ou da Juventude Centrista a fazer um mural incensando Passos Coelho certamente não seriam detidos. Não, eles foram detidos porque estavam a fazer uma denúncia do carácter retrógrado, injusto e explorador da sociedade portuguesa às mãos de um dos mais reaccionários governos da burguesia.
Na greve geral da passada quinta-feira ocorreu pelo menos um incidente de uso de «excesso de força» por parte da PSP para quebrar um piquete de greve ([4]). É um de muitos incidentes que têm decorrido ao longo de todos estes anos pós-25 de Abril. Nalguns, a polícia efectuou mesmo cargas violentas sobre trabalhadores, comparáveis às que tinham lugar no regime fascista. Podem-se apresentar disso muitos exemplos. Desta vez, segundo Marco Marques da associação Precários Inflexíveis, o que o piquete estava a fazer era «atrasar ao máximo» a saída dos autocarros que circulavam em serviços mínimos, e a «conversar com os trabalhadores» que iam chegando para o serviço. Ora, «o director da estação [da Musgueira] impediu as pessoas do piquete de entrar nas instalações da empresa», para falar com os trabalhadores. «Não vimos a polícia a agir a esse respeito», diz Marco Marques. «Houve demasiada força para uns e pouca ou nenhuma para uma situação que está no limite da lei.». Um vídeo do incidente ([5]) mostra agentes da polícia de intervenção a empurrar de forma vigorosa os elementos do piquete de greve, quando estes já tinham sido afastados da saída da estação. Perto do final dos três minutos de vídeo (aos 2:45), vêem-se dois agentes a fazer rodar um dos elementos do piquete sobre uma barreira com cerca de um metro – que é amparado pelos outros, em protesto. «Ele vai cair», ouve-se alguém a gritar, no meio da confusão.
Um outro incidente no dia da greve geral foi o da detenção de um grupo de 226 manifestantes (!) acusados de cortar o acesso à Ponte 25 de Abril depois da concentração de quinta-feira em frente ao Parlamento na sequência de um desfile em direcção ao viaduto Duarte Pacheco. Detidos em «flagrante delito», foram identificados e libertados de seguida, com notificação para comparecerem em tribunal. No comunicado, os manifestantes apresentam a sua versão dos factos. «Nós, os manifestantes detidos hoje, 27 de Junho de 2013, no bairro da Bela Flor, saímos em manifestação espontânea a partir de S. Bento, com a polícia constantemente a acompanhar-nos sem nos dar qualquer tipo de indicações. Durante todo o percurso, os manifestantes foram pacíficos e não causaram qualquer tipo de danos». «Após a passagem pelo Centro Comercial das Amoreiras, quando nos aproximámos do acesso para a Ponte 25 de Abril, pela primeira vez, as autoridades comunicaram connosco para nos indicar que enveredássemos para o acesso à Ponte 25 de Abril. Fomos encurralados por dezenas de membros e carrinhas do corpo de intervenção que esperavam fora de vista, e então dirigidos para o bairro da Bela Flor, sempre rodeados pelo corpo de intervenção». «Ficámos detidos na rua desde as 19 horas (passa já das 23 horas e só agora estamos aos poucos a ser libertados), sem acesso a água ou sanitários. Após identificação e revista um a um dos cerca de 200 manifestantes, foram-nos apresentados documentos para assinar ao mesmo tempo que se dificultava o acesso a advogados [um comportamento recorrente nas esquadras da PSP]. Acabámos por saber que teremos que comparecer todos amanhã, 28 de Junho, às 10 da manhã no Campus da Justiça do Parque das Nações. Pedimos a presença e solidariedade de todos para os procedimentos».
Os factos relatados na versão da PSP não desmentem os relatados no comunicado dos manifestantes, que termina assim «mais uma vez, o Governo procura formar um escândalo para tentar abafar o impacto da greve geral. Aqui não há criminosos mas há arguidos; no Governo não há arguidos, há criminosos.». De facto, «abafar o impacto da greve geral» terá sido um dos objectivos do incidente ([6]).
De realçar que, embora o comunicado da PSP afirme que o grupo de manifestantes (depois de ter abandonado as imediações da AR em direcção ao Viaduto Duarte Pacheco), terá procedido a um «corte da via de trânsito» no acesso à Ponte 25 de Abril, esta versão não é confirmada pelos manifestantes, que dizem ter sido conduzidos pela polícia até àquele local, onde foram isolados. Uma agente de viagens de 57 anos, que integrava o grupo, disse à Lusa que a polícia foi «sempre à frente e a abrir caminho»; «Pensava que íamos até às Amoreiras e depois para o Marquês de Pombal. E depois conduziram-nos para a ponte 25 de Abril. Ninguém fez corte de trânsito, algumas pessoas saltaram para uma faixa de rodagem e gritaram para os carros apitarem». Isto é, tudo indica estar-se em presença de uma provocação policial.
Entretanto, logo no dia seguinte (28/6) a Ordem dos Advogados declarou apoiar juridicamente os 226 detidos no dia da greve geral ([6]). O presidente do Conselho distrital de Lisboa afirmou que este iria fazer escala especial para «este recorde de detenções em Portugal» (!). Acrescentou «Não é normal que sejam detidas mais de 200 pessoas numa noite» no contexto de uma manifestação pacífica.
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Uma das tarefas prioritárias de um governo de esquerda e verdadeiramente patriótico consistirá no saneamento dos quadros da PSP e de outras forças policiais responsáveis por comportamentos fascistas, contra os direitos dos cidadãos.
Em consonância com muitos democratas e patriotas, exprimimos aqui:
-- A nossa solidariedade àqueles que, no exercício de direitos democráticos e na luta contra a reacção, são vítimas da repressão e violência policial.
-- O nosso louvor à Ordem dos Advogados pela rápida postura de apoio jurídico aos «manifestantes da Ponte 25 de Abril».
-- O nosso louvor aos militares das associações de sargentos e de oficiais das forças armadas que afirmaram claramente que «estão ao serviço do povo português e não de instituições particulares» e «Que ninguém ouse pensar que as Forças Armadas poderão ser usadas na repressão à convulsão social que estas medidas [da austeridade] poderão provocar» (Outubro de 2011).
(Colaboração de Carlos Marques.)
[1] Rita da Nova, «Amnistia Internacional aponta "uso excessivo da força" por parte da polícia portuguesa», Público, 23/05/2013.
[2] Ver o excelente artigo http://www.esquerda.net/artigo/1%C2%BA-maio-1982-entraram-na-cidade-como-cowboys-no-far-west/22966.
[5] A acção da polícia está documentada no seguinte vídeo: https://www.facebook.com/photo.php?v=10151669116137570